Uma crônica de Marilia Kubota
Marilia Kubota é autora de Diário da vertigem (2015), micropolis (2014) e Esperando as Bárbaras (2012) e organizadora das antologias Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle Franco (2018), Blasfêmeas: Mulheres de Palavra (2016) e Retratos Japoneses no Brasil (2010).
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OS BONSAIS
Na casa dele havia milhares de bonsais. Milhares, exagero. Centenas. Ele cultivava e vendia. Fui buscar um, a pedido de Miyoko. Na comunidade conheciam o Sensei. Não só mestre no cultivo de bonsai. Pintava, desenhava, fotografava, escrevia. Poucos com talento igual.
Conhecia minha mãe, a quem arrumou emprego de zeladora de um clube. Sabia que não nos dávamos. Por mais que quisesse, não conseguia tratá-la bem. Sentia mágoa por meu pai tê-la abandonado. Eu sabia que ela não teve culpa. Mas não conseguia perdoá-la.
Sensei perguntou: “Vai viajar pro Japão?” “Sim. Ele foi trabalhar numa fábrica de auto-peças. Também vou.” Na semana anterior, eu havia entrado em contato com um agenciador. Ele explicou o que era ser um trabalhador avulso. O trabalho na fábrica. Passagem e alojamento descontada do salário. Não voltar antes de um ano. Trabalho de chão de fábrica. “Aguenta?”
“Aguento. Ainda sou jovem.”
“Se está tudo certo, por que está contando?” perguntou Sensei. “Quase tudo ok. Só que penso: e ela?” “Ela quem, a mãe? Não vai ficar?” “Vai. Será que fica bem?” “Vai, é . Todo dá uma olhada nela.”
Veio à cabeça a imagem da velha encurvada lavando o chão do clube. “Em algum dia, há trinta anos, meu pai se foi. Depois de chorar dias, ela se aprumou. Me criou sozinha. Recebia ajuda de um padre budista. A comunidade a olhava com desprezo. Uma mulher abandonada. Não podia ser diferente. Meu pai era gaijin.”
“Será que vou encontrá-lo no Japão?” “Sabe aonde ele está ?” “Hamamatsu.” “Ah. Vai encontrar ele, dar um abraço, ficar em paz. Depois, vai comprar uma casa boa pra tua mãe morar.” Ah! Podia vislumbrar o encontro. Toca a campainha. Atende uma menina de cabelo curto. Faz uma pergunta em japonês. Ele não entende. Fala o nome do pai. Ela vai chamar. Aparece um homem grande, cabelos brancos, calção e chinelos. Faz um gesto pra menina vir perto dele. “Ele diz que vem do Brasil e precisa conversar.” O homem estranha : “Conversar o quê?” “O senhor sabe quem é Miyoko Uehara?”
O homem ouve minha história. Ficamos horas conversando. Não sinto emoção, como pensava que sentiria. Na despedida, o velho, comovido, me abraça com força. Nos despedimos, trocamos telefones. Promete ligar. Nunca mais voltamos a falar.
“Se sabe que vai ser assim por que encontrar ele?” “Sei lá, Sensei. Parece que, na real, o lance não é com ele. É com a mãe.” “Com a tua mãe?” “ Só quero ver a cara dele e depois adeus.” “É.”
Sensei ficou introspectivo.
“Acha que devo ir?” “Acho que sim.” “Porquê?” “Só pra ver a cara dele e depois adeus.”
Sensei riu. Me deu um bonsai. “Árvore da felicidade: se cuidar bem, vai ter felicidade por anos.” “Tá.”
Deu dois vasos. Um pra levar pro pai.
Ivy Menon
Comovente de tão linda!