Uma microantologia de Lucinda Nogueira Persona
Lucinda Nogueira Persona nasceu em Arapongas, Paraná, mas está radicada em Cuiabá desde 1965. Poeta, ficcionista, cronista, ocupa a cadeira nº 4 da Academia Mato-grossense de Letras. Graduada em Biologia (UFMT), Mestre em Histologia e Embriologia (UFRJ), com estágios profissionais na Universidade do Chile. Professora aposentada (UFMT / UNIC). Livros publicados (Poesia): Por imenso gosto. Massao Ohno, 1995; Carlini & Caniato, 2018. Ser cotidiano. 7Letras, 1998. Sopa Escaldante. 7Letras, 2001. Leito de Acaso. 7Letras, 2004. Tempo comum. 7Letras, 2009. Entre uma noite e outra. Entrelinhas, 2014. O passo do instante, Entrelinhas, 2019.
***
EXPOSTA À TARDE
Exposta à tarde
nos lugares públicos
e ruas apinhadas
uma esquina
não tem mesmo nenhum significado
A banda encardida da sua dobra
o seu dobrar de tudo ou nada
a desproporção das sombras
atrás dos seus corpos apressados.
In: Por imenso gosto, 1995, 2018.
*
EDIFICAMOS SÓLIDOS ANOS
Edificamos sólidos anos
ao nosso redor
Raramente
descemos à minúcia da palavra
nesta casa enorme
Nem foi necessário discutir
o nome de um filho
Transitamos mudos
entre as paredes de silêncio
tijolos de afeto
(e ainda não estamos cansados!)
In: Por imenso gosto, 1995, 2018.
*
OS RESTOS MORTAIS DO CERRADO
Rajadas de um vento quente
depois das queimadas
trazem os restos mortais do cerrado
para dentro de casa. Todos os anos.
Por isso
já não me intimido mais
quando aranhas estorricadas
descem por meus cabelos
ou orquídeas em pó assomam à minha face;
quando de meus dedos pendem
abrasadoras samambaias.
Nem me assombram os bicos de seriemas
levitando pelas salas
sem os olhos sem as penas sem as vozes.
Choro tudo: a resina o carvão
os ossos à tona das cinzas.
Choro também os homens. Todas as vezes.
In: Ser cotidiano, 1998.
*
IDENTIDADE
Não entendo nada
deste mapa traçado
na palma da mão.
Terá sido com ponta de faca
ou diamante?
O que sei destas múltiplas linhas?
Algumas tão fortes
outras fraquinhas
retas e tortas (mais tortas)
longas e curtas
paralelas e cruzadas
apontando para qualquer lado
e todas sem saída.
Afinal, essas linhas,
como num mapa meteorológico,
anunciam frio ou calor? Chuva ou sol?
Indicam brisas? Ciclones?
Vida intensa ou sossegada?
Não sei. Desde sempre
quando olho este mapa veemente
olho de frente as coisas mais vagas:
o instante perdido
o silêncio antecipado
uma ausência a caminho.
Talvez este mapa
(que a Vênus de Milo não tem)
não represente nada que não seja
o sistema circulatório da identidade.
In: Ser cotidiano, 1998.
*
LÍNGUA
Floresce
na pia de aço
um enorme buquê
de couve-flor.
Floresce
é um modo de dizer
com nervos
com saliva
com céu
e com palavras
da minha língua deslumbrada.
A língua que ajuda
a empurrar à digestão
o cotidiano.
In: Ser cotidiano, 1998.
*
VENDAVAL
Depois do vendaval
e da vida lançada por terra
elas se entregaram
ao penoso trabalho
de arrumar a vida.
Laboriosas
foram aos instrumentos óbvios
indispensáveis àquela realidade:
água e sabão
vigor e flanela
paciência e vassoura
aspirador e lavandas.
Já cansadas se voltaram
para a expressão máxima
de um modo supérfluo e adereços.
E mal se acomodaram
nas polidas casas
veio outro vento
mais forte que todos.
O que ficou de pé
tinha profundas raízes.
In: Ser cotidiano, 1998.
*
VAZIO
Na última hora da tarde
e nenhum sinal de vida ao redor
o homem disse baixinho:
me acho vazio, inteiramente vazio
era uma frase de bíblia
era uma frase de oração
era das ruas tal frase.
Como dissera aos seus botões
(aos botões indiferentes de uma indiferente camisa)
não teve resposta
e a palavra se perdeu
num turbilhão que nem existia.
Um maravilhoso silêncio flutuou
sobre seus erros mais perdoáveis
estava vazia a casa
vazio estava o bairro
talvez até a cidade
e assim permaneceu o homem
como se estivesse no fim de tudo.
Quando o distante sol se apagou de vez
e a sombra mais escura
tocou seu ombro
ele já pensava o seguinte:
deste vazio eu não morro.
In: Sopa escaldante, 2001.
*
PEQUENO SER VIVO
(deste vazio eu não morro)
eu
pequeno ser vivo
as vértebras doendo
olhando o firmamento
começa neste instante
a esboçar-se a noite
é raro que eu não dê atenção ao fato
é raro que eu não chore um pouco
é raro que eu não tenha um desejo
diante do crepúsculo
num canto particular do mundo
reconheço
que muitos e muitos
já publicaram o assunto
e felizes foram e felizes foram
que modo simples e maior existiria
para eu ser feliz como aqueles?
qual é
ainda não sei
In: Sopa escaldante, 2001.
*
SEGUNDO DOMINGO COMUM
Segundo domingo comum:
aberto na ausência de um sol
parado na rosa em seu cálice
inatingível
como as mães que já se foram
Segundo domingo comum:
entrando pela porta da igreja
saindo pela porta do cinema
impensável
fora da vida e das coisas
Segundo domingo comum:
seu material é sempre o mesmo
vejo pássaros chegando aos frutos
insetos à flor
fiéis aos deveres litúrgicos
Segundo domingo comum:
meu dia de folga
meu dia de Deus
igual a outros domingos
como iguais são os ovos.
In: Leito de acaso, 2004.
*
A SEDUÇÃO DE CERTOS MOVIMENTOS
Em pleno velório
indócil à rigidez da morte
estudo o seu inverso: a vida
a voracidade
a sedução de certos movimentos ansiosos
das chamas que se agitam
Quero tudo
que não esteja parado
nem tenha entrado em descanso
Quero tudo
que não se deite
em posição tão paralela ao horizonte
Depois de o tempo se fartar das velas
(nos quatro cantos do funeral)
dou graças a mais um pormenor
que enfim me conforta:
os lagos de parafina
no fundo dos pires
(sempre fui assim)
In: Leito de acaso, 2004.
*
CERRADO EM CINZAS
A vida hoje
está mais difícil do que nunca
Contra o céu não visto
se ergue a fumaceira das queimadas
O asfalto lá fora (como chapa quente) coagula ovos
e a minha roupa incendiou-se ao meio-dia
Seria o coração do inferno
se a tristeza não operasse
em gotas de esperança e súplica
ao que ainda resta
Essa macabra fuligem
dentro de casa e da vida
Essa névoa escura do cerrado em cinzas
folhas à morte
penas de seriema
pelos de anta
películas de cobra
Sou como sou
Não dou um passo sequer à dissimulação.
In: Tempo comum, 2009.
*
PEDAÇO DO TEMPO
E por último
(depois de todos)
este momento
tão sem forma e tom
De passagem
como o vento
que não vejo por dentro
que não vejo por fora
este momento
tão alheio à vida e à morte
Assemelha-se ao pólen
solto na floresta
este momento
pedaço do tempo
profundamente escondido
em todo lugar
Que trabalho
não posso apanhá-lo
com palavra alguma.
In: Tempo comum, 2009.
*
AI DAQUELE QUE FICAR SÓ
Na vida a dois
há uma ordem que não muda
Um
sempre irá menos longe
do que o outro
Quem fica
(único habitante da casa)
não raro
acorda antes da alvorada
pedindo contas do que se passa
Não há criança dormindo
Não há café a ferver no fogão
Só há o que é maior do que ele
Ai daquele que ficar só.
In: Entre uma noite e outra, 2014.
*
FOLHA DE ALFACE
Tomo as dores
de tudo aquilo
que em sua constituição
se revele efêmero
mas camuflado de esperanças
Não posso comer
uma folha de alface sequer
sem me aproveitar
um pouco mais da matéria
(tenho isso)
Trama nenhuma
escondo ao mundo
A folha é tenra
já está morta
mas me enche de hortas.
In: Entre uma noite e outra, 2014.
*
QUEM ESTÁ VIVO
O que foi era nada, porque a porta se fechou logo. (…).
Os pratos levados erguem a voz de água e louça
Fernando Pessoa
Tão óbvio e incontestável
(é que neste instante assim me parece e
concordo com o pregador)
só o morto não faz coisa nenhuma
Quem está vivo acorda muito cedo
alonga-se um pouco e estuda o ar ainda escuro
Mal o sol se expõe, começa o cotidiano
Quem está vivo dispara ao horizonte operário
ao passo que o outro, o morto, não vai a parte alguma
Só quem está vivo percebe
que o amarelo da tarde tem potência estranha
e que os sapatos usados
são mais cômodos do que os novos
Só quem está vivo se desfaz
do pó trazido pelo vento
e sabe que há na casa
um lugar para onde se atiram
as coisas inúteis, as cascas, os cascos, as sobras
Quando morre o dia
quem está vivo
(e sabe que há de morrer)
estende a mesa, janta
e premeditadamente
(quando não quer ouvir a voz de água e louça)
empilha os pratos no canto da pia
Só quem está vivo
vagueia pelas horas e pode atravessar
sem dar um passo sequer
a paisagem que vem de dentro.
In: O passo do instante, 2019.