Uma resenha de Alexandra Vieira de Almeida
“A criação artística na era do pós-tudismo em Horses, de Agnaldo de Assis Nascimento” é um resenha de Alexandra Vieira de Almeida sobre o romance Horses de Agnaldo de Assis Nascimento.
Alexandra Vieira de Almeida é poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta. Tem Doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Atualmente é professora da Secretaria de Estado de Educação (RJ) e tutora de ensino superior a distância (UFF). Tem cinco livros de poemas, sendo o mais recente A serenidade do zero (Penalux, 2017). Publica regularmente em antologias e revistas do Brasil e exterior.
Agnaldo de Assis Nascimento nasceu em Diadema em 1988 e atualmente reside em São Paulo. Cursa Letras na USP, toca guitarra e canta na banda Versus Mare. Como escritor, participou da Mostra de Artes de Diadema, ficando em 1º lugar em três edições, na categoria conto. Seu romance de estreia, Horses (2019), foi contemplado pelo 1º Edital para publicação de obras inéditas da Prefeitura da São Paulo.
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A criação artística na era do pós-tudismo em Horses, de Agnaldo de Assis Nascimento
O professor universitário e crítico literário Ítalo Moriconi disse, no seu livro Como e por que ler a poesia brasileira do século XX, com referência ao Pós-Modernismo: “…nada de novo havia a fazer ou dizer, depois de um século inteiro de experimentações”. O poema “Pós-tudo”, de Augusto de Campos foi polêmico, pois abordou essa temática ao dizer, através de uma poesia visual, o fim de tudo. Já para o campo da política, no livro Pós-tudo e a crise da democracia, publicado em 2018, e, organizado por Maria Cristina Castilho Costa e Patricia Blanco, temos de ter o cuidado para que não se impere a censura, onde a liberdade de expressão é ameaçada. Por isso, Horses, romance de estreia de Agnaldo Assis Nascimento, revela-se como um livro Manifesto, não só no campo artístico, mas saindo da questão literária, e extrapolando os limites do texto, para abarcar nossa realidade circundante, um grito de crítica e reflexão sobre nossa sociedade, onde o capitalismo massacra as pessoas através de uma mídia corrosiva e destruidora, da violência e truculência com tudo o que há de postura crítica e ácida com relação às esferas de poder. E é a partir da juventude, cuja metáfora são os cavalos, que esses animais indomáveis simbolizam, freneticamente, a liberdade em meio à suposta “ordem” social. O título em inglês, “Horses”, traduz a influência da cultura de língua inglesa em nossa sociedade, aqui, nesse livro, principalmente, a partir do rock que embala os personagens no seu grito libertador.
O romance de 426 páginas de Agnaldo é composto por uma introdução (ou antes que os cavalos), e mais cinco capítulos com títulos originalíssimos: Fúria-calma, Desterro & Microfonia, Filosofia nostálgica subterrânea, O escorpião engarrafado e Deixando um rastro de poeira. A introdução, em primeira pessoa, assinada por Bruno A. C. está em forma de um diário resumido numa parte pequena introdutória com a referência aos dias e meses. Ela começa assim: “A QUESTÂO É QUE PRECISO compor para sair da lama. Desfazer o nó do enforcado antes que. Antes que o quê? E o que vem a ser essa armação de vento, esse antes?” Na verdade, Agnaldo interrompe a frase, dando um tom enfático à escrita. Ele utiliza frases abruptas ao longo do livro, com a acidez da escrita. A aridez do deserto buscando o oásis da percepção do leitor, que deverá construir os sentidos, após estas doses de copos vazios e também plenos de álcool. O narrador dessa introdução diz: “Hoje, os relatos são superficiais. E, pior, ficam disponíveis para milhares de pessoas num diário-vitrine, o diário que se recusa a ser secreto. O antidiário.” Aqui, não é o caso do livro de Agnaldo, utilizando a marca de sua ironia forte e sarcástica. O seu livro faz uma complexificação e problematização da linguagem. Um desses exemplos é o uso de metáforas inusitadas, no seu processo, no seu ato de compor, criar.
Outros elementos são a utilização de uma caracterização externa, do adolescente, para analisar a escrita. Como podemos encontrar em: “Agora é como espremer cravos. Nojento”. Com interrupções e cortes no meio da frase, o fluxo dos pensamentos se dissolve na escrita. Ao mesmo tempo em que temos um diário aqui nessa introdução, o narrador coloca Sem data. Sem essa datação, essa precisão, não especificando, o narrador produz um rasgo no tempo, uma rasura temporal, retraduzindo o diário como num espelho invertido. No ato da composição, temos um criador na introdução. Seria um narrador fictício, falando e contando coisas da vida? Ou seria um alter-ego de Agnaldo a mostrar, para nós, leitores, os processos de composição e a arte de narrar/musicar. As datas, épocas, seguem uma suposta linearidade. Em “fade away”, na música, suas referências estrangeiras revelam-nos seu cosmopolitismo. Temos, assim, a influência internacional no narrador e nas personagens, dando ainda relevo a uma linguagem comum e cifrada entre várias artes como o teatro, a pintura, a poesia e a música. Assim, encontramos uma universalidade, pontos de encontro entre as artes, que pareceriam estanques para um viés mais teórico tradicional. O livro explora o vanguardismo, é um livro experimental, à la Joyce, Rosa e Clarice. Mas, em meio às experimentações dos outros, Agnaldo cria suas próprias linhas artísticas se fiando nas suas particulares teias de aranha a tecerem um véu de liberdade e originalidade.
Barthes, no seu livro Aula, já nos falara sobre o poder da gramática formal, que pode ser desconstruído. A quebra da estrutura gramatical em Agnaldo é recorrente. Assis, por exemplo, faz o uso da adição do “e” sem vírgulas. Além desses elementos estruturais, no campo da semântica, Agnaldo é imbatível. Ironiza o próprio título de seu livro a partir da rapidez, pois se seu livro é extenso, mas produz o tropel dos cavalos em sua celeridade, há outros mecanismos mais rápidos, num processo de autoironia, como só recorrente aos grandes escritores, que não têm medo de se autorrefletirem, pois sabem de sua importância no cenário literário: “A morte deve vir mais cedo nesses caos, em uma moto, em vez de vir a cavalo”. E, assim, continua, ironizando até os consagrados: “A história da literatura já comprovou tal agilidade: Proust, etc.” A doença também como processo criativo comparece em toda sua potência originária: “Mas não deve ser somente pela via do delírio febril que se toca tal profundidade”. O processo de criação, a urdidura poética, também se dá em certa hora mágica e encantatória: “Só com o cair do dia no colo morno da noite, só no finzinho da tarde é que começo a despertar meus gafanhotos interiores”. As composições interrompidas, as interrupções da criação, também podem ser interpretadas como os lapsos que são necessários, os vazios, os espaços em branco que encerram todas as potencialidades. Os cortes sangram e produzem as cicatrizes que são as escritas do ser. Em Kakfa, por exemplo, num de seus contos, ele disse que se não fossem as noites de insônia não escreveria.
A música e a literatura são outras relações cheias de possibilidades e encontros, pois, a partir da música, Agnaldo também tem suas influências para compor seu romance. Agnaldo também é músico e exímio conhecedor dos ícones de sua paixão musical, tendo até uma banda. Neil Young, que é citado, foi um músico e compositor canadense, que se caracterizava pela vanguarda, a partir de sua distorção. Assim como o compositor, o romance magistral do escritor por ora aqui apresentado tem a fragmentação não realista, o real é distorcido pelas cores nobres da arte mais fecunda e criativa. A assinatura de Bruno A. C. na introdução poderia nos parecer como a força do anonimato na sua escrita. O sobrenome é abreviado para não ser conhecido.
A parte um “Fúria-calma” já começa em terceira-pessoa com a introdução do personagem principal, o adolescente Helter, que está numa fase de transição para a maturidade, a vida adulta. Ele tem 17 anos. Ele acredita encontrar aquilo que será o “Verbo”, pois Helter se caracteriza, psicologicamente, por seus silêncios meticulosos. Às vezes, a palavra não sai. Ou seria o processo criativo estancado, engarrafado? As referências ao punk são constantes, este rock ágil e pesado, que influencia também a escrita de Agnaldo. O “Verbo” é escrito em letra maiúscula, revelando-nos o poder da palavra, sua onipotência de escrita e fala. Diz-se, na primeira parte: “De-fi-ni-ti-va-men-te não”. Com a separação de sílabas, temos uma ênfase nas letras e sua força de dizer o não dito. Uma demora, uma pausa em meio à agilidade dos cavalos-página. Raduan é o melhor amigo de Helter. E em meio ao caos, temos a ordem da linguagem. O ambiente de criação é de bagunça universal: “Como todas aquelas ocupações artísticas espocando em prédios inóspitos e condenados”. A ambientação de decadência e pós-apocalipse no livro aparece em diversos momentos. Ou seja, a juventude em meio à destruição, eis o paradoxo da desconstrução e revolta. A marca de cigarro preferida de Helter é Lucky Strike. Assim, temos as marcas dos estrangeirismos, a globalização e influência da cultura de fora nessa juventude. E mais uma vez um paradoxo, a revolução em meio à incorporação do que vem dos impérios dominantes. É algo para se pensar, refletir.
Outros macetes experimentais da linguagem aparecem em Agnaldo, revelando-nos seu grandioso conhecimento da língua. Pois para que haja a subversão é necessário um conhecimento anterior, uma bagagem tradicional, da norma culta. Ele diz: “quemsabequemsabequemsabe…” Aqui, ele une as mesmas frases, numa mesma frase, dando agilidade ao seu estilo vertiginoso e frenético. Como numa vertigem, somos levados por esta viagem rica pela linguagem. Além dessas estruturações, no âmbito narrativo, Agnaldo nos confunde belamente, misturando a narrativa em terceira pessoa, com o monólogo interior e fluxo da consciência em primeira pessoa. Temos assim outro estilo, sem a pontuação usual. Temos o início com letra minúscula no parágrafo, mostrando-nos o fluxo dos pensamentos. Temos a mescla entre parágrafos maiores com menores, apenas uma frase, algumas vezes, reticências várias. Assim, o “Verbo” se cria e recria, tanto o da criação quanto o da fala com o outro. Na despedida de Helter e Raduan é assim. Será que a figura materna ausente, a morte da mãe e outros traumas vividos por Helter, como na infância, causaram esse lapso lingual? Por isso, por vezes, o narrador não termina a frase, deixando-a no ar com uma incógnita. Do lado oposto, temos o manejo perfeito de metáforas impactantes e inusitadas: “Aranhas de sol e sombra brincavam na ferrugem-cara de Mikael”. Também, após se despedir de Raduan: “O sol, agora uma gargalhada fria”.
Temos também uma única palavra no parágrafo que comparece constantemente em sua narrativa colossal: “Etcetera”. Isso é uma forma de dizer que muito ainda está por vir. Mais coisas estão germinando, acontecendo, sem que saibamos. E, por isso, como dito anteriormente, o oásis criativo do leitor que deverá preencher este deserto árido e inóspito. Além disso, temos a união, na sua escrita, de uma linguagem metafórica brilhante e ao mesmo tempo seca, direta e ácida, mostrando-nos o pluriestilismo do autor. Encontramos, também, diálogos cotidianos em meio a discussões intelectuais a fazer inveja aos filósofos. E, por último, a mistura inusitada entre o intelectual e o sensório. Agnaldo, às vezes, não completa a frase, dando um tom de mistério, do vazio que é a experiência literária e a vivência de Helter, regada por uma “música calada”, como disse o místico e santo católico San Juan de la Cruz: “Abre aspas, música sem instrumentos, fecha aspas, traço, vinte e nove de abril”. Há uma grande riqueza de figuras de linguagem, como a hipérbole, a metáfora, a aliteração, a assonância, introduzindo o ritmo da poesia na prosa; “…pupilas do tamanho de pneus de caminhão”. Tem uma parte genial no seu romance quando num parágrafo inteiro e longo, sem pontuação no meio do texto e só o ponto final no fim dele todo. É um parágrafo que aborda a repetição dos gestos e palavras, dizendo que há nada de original (o pós-tudo?). Tudo é repetitivo e sem sentido, os hábitos que cumprimos. E, para falar desses hábitos, nada melhor como a ruptura da língua, subvertendo margens.
Temos também um intenso lirismo ao falar da perda da mãe: “Era o ano da morte da mãe de Helter, e ele decidiu que guardaria para si todo o fiapo de silêncio que pudesse encontrar. Treinava, dia após dia, capturando vazios imensos na concha dos ouvidos com que os meninos da sua idade capturavam insetos”. Com apenas 7 anos, tem a experiência da perda e também do descobrimento do comportamento ignóbil na vida da irmã Rose, que não cabe aqui destacar. O pai deixa a casa após a morte da mãe de Helter: “A fúria-calma do pai extraviado, igual a dele mesmo”. Vejamos o que nos dizem os dicionaristas de símbolos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant sobre o vocábulo “cavalo”: “Uma crença, que parece estar fixada na memória de todos os povos, associa originalmente o cavalo às trevas do mundo ctoniano, quer ele surja, galopante, como o sangue nas veias, das entranhas da terra ou das abissais profundezas do mar. Filho da noite e do mistério, esse cavalo arquetípico é portador de morte e de vida a um só tempo, ligado ao fogo, destruidor e triunfador, como também à água, nutriente e asfixiante.” O pai não se iguala totalmente ao filho, apesar desta fúria-calma dos cavalos, o pai de Helter utiliza a violência doméstica e bate nele de forma violenta até esfolá-lo. Por isso, a fuga de casa e o encontro de outros amigos jovens, mas já adultos. Esse livro fala das casas suburbanas. Dos personagens que vivem nos subúrbios: “As listas de afazeres e reparos nas casas suburbanas eram quase tão inexecutáveis quanto promessas de ano novo”. E Helter, com tantas experiências intragáveis “vomitou aquele cavalo inteiro, mas as patas ainda faziam cócegas em sua garganta”. E, continua, na sua vivência de menino, o gosto da morte e da imoralidade: “O único alívio que sentia era ter vomitado parte de sua inocência”.
O romance de Agnaldo é repleto de referências literárias, musicais, pictóricas, filosóficas, entre outras, como: Shakespeare, Machado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Burowski, Leminski, Ramones, Turner, Nietzsche, etc. Essa riqueza, intertextualidade não é uma simples imitativo, mas uma conversa, um diálogo com os antecedentes e contemporâneos do autor, fazendo pontes, intersecções e ressignificações na sua escrita criativa. Outro tema importante é para a comunidade LGBT com o homoerotismo. Deixo aos leitores a descoberta destas veredas homoafetivas. Além do erotismo latente em sua obra, é forte a recorrência ao sagrado como as referências à Bíblia, à maçonaria, ao hinduísmo, à mitologia grega, etc. Temos, assim, o livro sagrado, nas coisas do mundo, roçando a carnadura do real. O sagrado está exposto na carne do mundo, eis o paradoxo da natureza sacro-profana do místico. Esse não é algo que vai além do humano. É uma experiência “(al) química” transformadora da vida ao redor destes personagens. Temos, em certas passagens, a fusão com o todo, não a união com Deus, mas com o mundo, com todos que o habitam: “Pois eu sou o subúrbio que corre em suas veias de latão.”
No romance excepcional de Agnaldo, é recorrente a utilização de neologismos, com a ressignificação e criação de novas palavras compostas como em “raizestufada” e “gola-goela”. Essa novidade, esse “neo” se casa com a subversão dos jovens que Helter encontra, como os irmãos Davi e Victor, e as mulheres Val (Felina) e Sofia. Toxicodependentes, abusando do álcool, do fumo, das drogas e do sexo, essa geração é anti-conformista, se negando a seguir os padrões tradicionais. É presente aqui a influência que perdura até na nossa contemporaneidade da geração beatnik norte-americana que se iniciou no final dos anos 40, pós segunda-guerra, com figuras como Holmes, Ginsberg e Kerouac, que desafiavam o materialismo opressor. Jack Kerouac disse em Aftermath:The Philosophy of the Beat Generation: “A Beat Generation, que foi uma visão que nós, John Clellon Holmes e eu, e Allen Ginsberg tivemos, numa maneira ainda mais selvagem, no final dos anos 40, de uma geração de loucos, iluminados hipsters, fez subitamente a América ascender e avançar, seriamente a vadiar e a pedir boleia em todo o lado, esfarrapada, beatificada, bonita de uma nova forma graciosamente feia — uma visão colhida da forma como ouvimos a palavra “beat” pronunciada nas esquinas da rua em Times Square e na Village, na noite dos centros de outras cidades da América pós-guerra — beat, que significa em baixo e de fora mas cheio de uma convicção intensa. Nós até ouvimos o velho 1910 Daddy Hipsters das ruas falar na palavra dessa forma, com um sorriso de escárnio melancólico. Nunca quis dizer delinquentes juvenis, significa características de uma espiritualidade especial que não agia em conjunto mas eram Bartlebies solitários olhando para fora da janela da parede nua da nossa civilização…”
É belíssima, mais adiante na narrativa, o ritual do fogo no quintal da casa de Davi e Victor, onde vários personagens ficam em volta de um latão com fogo flamejante para se desapegarem de suas criações artísticas e jogarem fora seus bens materiais para fora dos padrões ocidentais. Há aqui uma recorrência às místicas orientais que ensinam o desapego e à geração jovem americana dos anos 50 e 60 que são antimaterialistas. A descrição do bar, por outro lado, na narrativa, trabalha com as sensações, é sinestésica em toda sua potência metafórica. Uma descrição na primeira década do ano dois mil: “grotesca e decadente”. A referência à mitologia grega em meio a um bar decadente é espetacular, dando um tom sublime ao que é mais chão. Homero comparece várias vezes em sua narrativa, não só a partir da Ilíada, com seu cavalo de Tróia, entre outras coisas, assim como Odisseia. Davi se contrapõe ao seu irmão Victor. Esse se baseia no mundo do sensório, a partir de sua culinária. Davi, um intelectual, é cheio de referências, como Agnaldo, fazendo a ponte com as mulheres, que não deixam nada a desejar aos homens, em seus diálogos reflexivos, feministas e empoderados, atacando o machismo nas figuras masculinas do livro. Davi é baixista e toca numa banda. Victor é segurança do bar. A vida noturna é pulsante em sua narrativa. Temos o jogo no bar da confissão de mesa (emocional, o sentir) e as maldições de Davi aos seres madrugadores (intelectual, o pensar). Aqui, a partir das rodas de conversas entre amigos e amigas, temos o tom confessional explorado também na narrativa. Portanto, Agnaldo congrega, num mesmo livro, vários estilos de escrita, dando riqueza e perfeição à sua obra literária.
As imagens da destruição e decadência são recorrentes: “hábitos nojentos da humanidade”, “casa caindo aos pedaços”, “quarto-calabouço”, os irmãos Davi e Victor, como “órfãos”. Por vezes, a voz do narrador se confunde com a das personagens. O Victor é pura contemplação. E, já, na segunda parte do livro, “Desterro & Microfonia”, na boca do personagem Davi, Agnaldo tece uma teorização sobre a escrita através do personagem Davi, conversando com Camilo. Davi fala, por exemplo, que seu irmão escreve à mão. O manuscrito vence a tecnologia então. A antiguidade no meio da era da internet. Numa época em que as certezas foram domesticadas, o romance de Agnaldo é uma verdadeira epopeia da pós-verdade. É um momento pós-apocalíptico em que Davi tece referências ao grande Drummond: “É mais uma pedra no meio do caminho, compreende?” Nas modas e nas músicas que vêm de fora, na importação para os jovens, Agnaldo narra a influência estrangeira nos jovens brasileiros do subúrbio.
E podemos fazer um link com o teórico Karel Kosik, a de Victor, no seu itinerário na feira, onde se reflete sobre o trágico, a violência, as guerras. Segundo Kosik, ao analisar o livro A metamorfose, de Kafka, a época moderna seria hostil ao trágico, sendo caracterizada pela catástrofe, sendo a era do grotesco. Na narrativa Horses, temos: “Como consigo escolher abacates com essa pilha de mortos sobre os ombros”. Ou ainda: “O sangue dos jornais embrulhando a mãe terra”. Há a utilização de intensas metáforas gastronômicas, como “peixeira-excalibur”, dando um tom de criatividade ao corriqueiro e banal, do nosso dia a dia. O trabalho em Agnaldo é com a linguagem, profunda e complexa, como nesse exemplo que vemos aqui: “olhadela-dela”. Nesse romance frondoso e robusto, temos as linguagens, as vozes e alfabetos próprios de cada ser-personagem, um verdadeiro aprendizado pela expressão linguística de cada um. Tudo isso regado ao rock e a mulheres sensuais como Val-Felina e Sofia, que encantam os homens deste enredo admirável por sua escrita contundente. Temos as reflexões a partir de vidas cotidianas, trabalhadas com maestria por Assis. Além disso, encontramos, aqui, os artificialismos das mulheres, Sofia e Val. Há trocas açoitantes verbais entre essas duas e entre elas e os homens e entre os próprios homens, como os irmãos Davi e Victor, espelhando a agressividade das línguas, das bocas e intelectos. São frases cheias de ironia e escárnio. O lado zombeteiro dos jovens na sua linguagem ácida e atroz, como o correr dos cavalos e sua fúria.
A parodização do sagrado comparece, ao mesmo tempo em que seu enaltecimento é exposto em outros momentos, como nos cavaleiros e damas da dúvida e da paradoxização: “No princípio, nunca foi o Verbo…” Outras vezes aparecem a palavra “Etcetera”, com várias conotações. Aqui, como economia verbal. Em outros momentos, como o que podemos falar e não sabemos, a continuidade. Entre estes jovens e suas famílias também temos a distância, a frieza nas relações entre pais e filhos. O “envenenamento verbal” entre as personagens é cortante como um gelo seco, através de um cinismo arrebatador. E eles utilizam a arte para infringir regras. A arte é esse estado de liberdade e manifesto. Apesar da agressividade desses jovens-cavalos, a amizade os une a partir da arte e do intelecto. Há uma exuberância desta linguagem de florestas sígnicas. A linguagem dos gestos, das roupas e dos corpos também está presente, como o vestuário do rock em que comparecem os ídolos desta juventude. Temos o choque entre a linguagem intelectual e o uso de palavras de baixo calão, com linguagem coloquial e palavrões. Além disso, a crítica aos hábitos da sociedade contemporânea massificada. E, por isso, entre os jovens, a utilização da palavra “Experimento”. Na realidade, um projeto, no qual um dos experimentos é o ritual do fogo do desprendimento, já falado anteriormente, onde, por outro lado, imperam, em nossa sociedade, o mundo da obviedade e da imbecilidade com suas informações inúteis. Assim, temos o mundo midiático da performance X o mundo intelectualizado. No romance de Agnaldo, não é só a religião cristã que está presente. Encontramos também, aqui, a religião afro, o hinduísmo e a mitologia grega, num diálogo aberto e dinâmico. Um mix cultural na era do pós-tudo. Temos, assim, a realidade sacro-profana do mito: “A morte e seus haréns e seus améns”.
Em sequências de frases com perguntas das personagens num tom rítmico e circular, temos uma geração alienada que é contestada a partir da revolução juvenil. A arte seria esse espaço de contestação a partir de sua dimensão mais corrosiva e crítica. Os personagens desse livro são comparados a cavalos, na sua animalidade ctônica. O lado selvagem, livre. Podemos perceber, dessa forma, uma liturgia embriagada, uma espécie de rito juvenil, desregrando as amarras sociais. O filósofo indiano Krishnamurti dizia que nossa sociedade nos escraviza com seus mecanismos de distração. E Val “evocava a natureza primitiva da dança”. Seria um estágio primevo, anterior à ordem social, à sociedade sistematizada. Nesse carpe diem juvenil, nessa roda viva de prazeres esses jovens vivem e revivem nas suas farras e festas, carregadas à cerveja ruim, revelando-se, assim, um mosaico caleidoscópico da festa, a partir de suas galáxias. Encontramos aqui vários tons e cores, imagens originais se formando nas reentrâncias da escrita. Temos também o asco e o nojo, através dos vômitos e do mundo do eu e dos outros, como eles se chocam e colidem num amor-guerra rebelde. Uma verdadeira “festa pagã dos sentidos”. Cada personagem é ator e espectador. Atua e analisa criticamente, apesar dos porres. Além disso tudo, percebemos em sua narrativa uma análise do rock. Uma aula sobre esse gênero musical, sem ser uma informação superficial, mas uma análise minuciosa, como as lembranças das discussões entre Helter e Raduan. Faz-se também uma análise sobre os ruídos do mundo, os ruídos diários. O rock vai contra a opressão, é um símbolo, uma analogia com a liberdade. A relação entre a música e a literatura está no ritmo, no experimentalismo e revolução. Podemos nos enveredar também no seu livro por uma sexualidade nua e crua, à flor da pele, sem nenhum disfarce, apesar das intensas imagens e lirismos mesclados nela. No sexo, há o cavalgamento. Há a mistura entre a linguagem chula e a metafórico-lírica. O gozo é um mistério e o orgasmo é ao mesmo tempo poético e pornográfico. Apesar desse viés orgástico, com suas alegrias e farras, os jovens passam por uma angústia, uma melancolia. A chamada nostalgia rebelde, com sua teenage angst, como iremos encontrar, mais firmemente e teoricamente, na parte três.
Na parte três, “Filosofia nostálgica subterrânea”, a questão do tempo passa por uma análise em meio à carnalidade do mundo, ao sexo, unindo o abstrato e o concreto. Temos a fantasmagoria do sexo. Aqui, temos mulheres que pensam, mulheres que são ativas. Elas têm discursos dissertativos no meio da narrativa metafórica. Marcela, por exemplo, uma personagem feminina que aparece depois, na sua relação com Davi. Mas as frequências do sexo são embaladas pelas ondas da rádio, música e sexo. Enquanto ele tem referências antigas, com a mitologia grega e seu Ulisses, nela, vemos a referências pós-tudistas, o filme “Meia-noite em Paris”. Isso revela a polivalência de olhares e pontos de vista. No último capítulo da parte três, temos narradores-personagens, uma polifonia de vozes, com as vozes autônomas deles. Aqui, encontramos visões diversas, um mosaico de partes divergentes e complementares. Um dos narradores-personagens diz, em tom bíblico, comparando-os aos doze apóstolos, pois são exatamente doze narradores que vão narrar. O sol vai iluminando as faces das personagens. A ordem dos nomes dos narradores não segue uma sequência de importância na narrativa, mas como se as sensações e reflexões se sucedessem aletoriamente, sem seguir regras. Vem assim: Davi, Bruno, Helter, Sofia, Mathias, Marcela, Johnny, Rose, Luca, Val, Guto e Victor.
De forma original, Agnaldo começa a quarta e penúltima parte com uma canção, com a formatação no branco da página por meio de versos. Na canção, temos o processo da escrita e como ela se dá, através da vida (biografia) e da obra (literatura). A canção, em primeira pessoa, no seu eu lírico, conjuga essa fusão entre o real e o ficcional. E na quarta parte, ainda se continua o “Experimento”: “A SUPOSIÇÂO DE QUE A REALIDADE é composta por retalho de inverdades meio que persiste, apesar das lesões causadas por quedas de escada no momento de desinstalar um pássaro neon de uma altura considerável.” E, finalizando, na parte cinco, “Deixando um rastro de poeira”, encontramos um final inusitado onde vemos o desfecho, precisamente, com o personagem principal da trama, Helter. Aqui, temos, novamente, belas metáforas, como “sol empoeirado” e o objetivo principal da narrativa, que é “libertar os cavalos todos”. O romance termina com algumas frases belíssimas em que temos a palavra “horses”, repetidamente, a ecoar o acorde dos libertos e daqueles que se manifestam pela vida e pela verdadeira arte, que pulsa com vitalidade, que só os indomesticáveis cavalos podem nos proporcionar.
Portanto, nesse romance de Agnaldo de Assis Nascimento, temos as distorções, as dissonâncias e desarticulações no esqueleto matemático e exato da narrativa. Encontramos nele, a força e potência idiomáticas, uma caligrafia linguística e de riqueza vocabular. Mesmo com as experimentações, Agnaldo está por cima do experimental e é um ser, um artesão de uma escrita inaugural, na era do pós-humano e do pós-tudo. No romance de Assis, percebemos o trotar fulgurante dos personagens que se apresentam meteoricamente com grande potência e beleza. O escritor Agnaldo tem um conhecimento sólido sobre a música e nós, leitores, aprendemos com ele e sua narrativa grandiosa. Seu romance é uma epopeia linguística monumental, que se assemelha aos livros dos autores consagrados.