Uma resenha de Ana Maria Lopes
“Outono para sempre” de autoria de Ana Maria Lopes é mais uma resenha da série da Livraria do Mulherio, em que autoras cadastradas resenham as obras umas das outras. Dessa vez, o romance resenhado é Outono (2018) de Lucília Garcez.
Ana Maria Lopes é jornalista, poeta e resenhista. Têm três livros de poemas publicados: Conversa com Verso (LGE), Risco (Libris) e Mar Remoto (Maria Cobogó). Participa de várias antologias de poemas e prosa, bem como de e-books. Integra o Coletivo Editorial Maria Cobogó.
Lucília Garcez é doutora em Letras pela PUC-SP e professora aposentada do Instituto de Letras da Universidade de Brasília. Coordenou o Praler/MEC – Ensino para Formação Continuada de Professores; elaborou o material de língua portuguesa do Projovem – Programa Nacional de Inclusão de Jovens; participou da coordenação da avaliação das redações do ENEM no Cespe. Atua ainda como resenhista de literatura e em bancas de concursos públicos e em qualificação de professores e incentivo à leitura. Tem vinte livros publicados nas áreas infantil, jovem e didática. Outono é seu primeiro romance.
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OUTONO PARA SEMPRE
O esforço de se apagar a história não encontra eco na literatura que a escritora Lucília Garcez nos apresenta em um novo livro, seu primeiro romance, Outono (Outubro Edições, 2018). É a romancista que se revela além da doutora em Letras.
A história é narrada em primeira pessoa e aponta uma variedade de experiências e questionamentos de sua personagem central, Angela. Angela trava um combate pela identidade de uma mulher madura no esplendor da feminilidade de seu outono. É a luta constante e veemente de uma mulher à procura do respeito e da valorização ante os direitos do ser humano e sua imposição diante da vida. A personagem faz da existência sua própria bandeira e assume, com suavidade, o controle de seu rumo.
A narrativa de Lucília Garcez tem dupla temporalidade. O tempo presente e o passado se unem naquilo que o historiador Walter Benjamin definiu como “uma reivindicação da memória como instância reconstrutora do passado”.
Percorrendo um período de sombra da história recente do Brasil, Lucília coloca – entre dois amores – o compromisso com a verdade, o direito ao conhecimento do passado e a luta cotidiana e revolucionária do século XX.
No rastro de autores que retratam o período da ditadura militar na América Latina (Eduardo Galeano, Julián Fux, Beatriz Leal, Rosângela Vieira Rocha, Ferreira Gullar, Ignácio de Loyola Brandão, Luiz Fernando Emediato, entre outros) Lucília Garcez mostra que escrever sobre o passado tenebroso é uma função crítica e necessária e, melhor ainda, pautada pelo distanciamento. Sua reconstrução, mesmo sob a base de uma coerência imaginária, possui o crédito da verdade.
Outono é um romance ficcional histórico, mas Angela, sua personagem, é em muitos aspectos o espelhamento de sua criadora. Essa afirmação é refletida na construção de delicadezas (“…saio arrastando comigo as antigas, indeléveis marcas na alma.”), no romantismo (“Planejar um jardim exige sempre visualizar o seu futuro, o desenvolvimento das plantas e sua combinação no espaço. Esse exercício é formado pela mesma matéria abstrata da imaginação. Temos que prever o vir a ser do que foi plantado.”), nos questionamentos (“Em que medida as coisas carregam fragmentos de seus donos?”) e nas certezas (“Sempre temos medo de ter medo”). Além dessas qualidades e não sendo um romance auto-biográfico, a protagonista carrega também outras características da autora. As inúmeras e cultas referências literárias dominam o livro mostrando o universo de Lucília provocando e instigando o leitor a seguir essa trilha. Da mesma forma e dada a proximidade da autora com o cinema, há mais de uma dezena de citações cinematográficas, um verdadeiro e excelente roteiro da produção do cinema contemporâneo.
Talvez daí venha o ritmo da narrativa de Outono. É quase cinematográfico em seu texto ágil e nas sequências que alternam o passado e o presente.
Na trilha sonora de Outono (sim, há uma trilha sonora) Lucília elenca e permeia seu texto com os maiores sucessos musicais que fizeram parte e caminharam com a resistência e a militância política do período.
D. Paulo Evaristo Arns afirmou, certa vez, que “os povos que não podem ou não querem confrontar-se com seu passado histórico estão condenados a repeti-lo”. No momento em que a frágil democracia brasileira encontra-se ameaçada, o livro Outono, de Lucília Garcez nos faz lembrar – com a história de Angela, Danilo e Francisco – que uma outra humanidade é possível.
Para os que viveram o período, o livro é um importante documento, além do prazer e da beleza de seu enredo. Para os mais jovens, uma lição de história e de vida, de amor e de renúncia.
Vale aqui lembrar e refletir sobre as palavras da escritora e ativista Susan Sontag: É mais importante entender do que lembrar, embora para entender também seja preciso lembrar”. Lucília Garcez caminhou nessas águas e nos presenteia com a delicadeza, a agilidade e a contundência de seu Outono. Sua personagem, tal como a autora, afirma: “Mas em literatura o que vale é a percepção do leitor, a emoção, a sensibilidade.” Nesse romance o leitor vai descobrir esses sentimentos e constatar o nascimento de Lucília Garcez, a romancista que há muito existia dentro dela.