Uma resenha de Anderson Lucarezi
Anderson Lucarezi (São Paulo, 1987) é professor e tradutor de língua inglesa. Publicou Réquiem (Ed. Patuá, 2012), livro vencedor do Programa Nascente USP 2011, e Constelário (Ed. Patuá, 2016). Como tradutor, dedica-se a trazer para o português as obras de poetas norte-americanos como Hart Crane, Jerome Rothenberg, John Gould Fletcher, entre outros. Faz, atualmente, mestrado em Letras Estrangeiras e Tradução na Universidade de São Paulo.
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Cruz e Sousa: memória, esquecimento, desterro
No ano de 2007, quase cento e dez anos depois do ponto final, os restos mortais do poeta Cruz e Sousa estavam sendo transferidos do Rio de Janeiro para a cidade de Florianópolis, nome pelo qual a terra de origem do escritor, inicialmente chamada Desterro, passou a ser conhecida a partir de 1894.
Diferentemente daquele final de março de 1898, quando seu corpo, morto por conta da miséria e da tuberculose, retornou de Minas para o Rio em um vagão destinado a animais, Cruz e Sousa estava, nesse novo traslado, envolto em pompas. No caminhão de bombeiros que conduzia a urna funerária ao palácio do governo de Santa Catarina, uma câmera. Tratava-se da lente dos diretores Cláudia Cárdenas e Rafael Schlichting, cujo objetivo era, mais que registrar, modular a cerimônia.
No curta-metragem resultante do dia em questão, Cruz e Sousa: a volta do desterrado, o olhar cinematográfico revela, ao primeiro contato com o evento, interesse. Ao som extradiegético da leitura do poema “Marche aux Flambeau”, de autoria do homenageado, a filmagem desce do cortejo e adentra o edifício, na porta do qual autoridades e fotógrafos esperavam. A câmera dedica-se, por algum tempo, a pôr em foco o coral presente, a organização do salão nobre, a disposição dos convidados e os dragões catarinenses protetores da caixa funerária. Logo, porém, dispersa-se, dirigindo-se para salas adjacentes do palácio, prendendo-se a detalhes das paredes e dos móveis, girando, rodopiando em desvario como se o que estivesse passando na ala central, isto é, o evento em si, não fosse relevante ou estivesse aquém do poema lido ao fundo.
Por meio de seu ritmo, a filmagem evidencia, então, uma fenda entre o tom oficialesco da homenagem em andamento e a vida-obra de um escritor marginalizado por ser filho de escravos alforriados. Levando em conta esse contraste, o curta contrapõe ao fausto funéreo versos do próprio poeta, como: “Com toda intrepidez hercúlea de acrobata / vou sobre eles soltar, gloriosa, intemerata, / a sátira que tem esporas de galhardo / cavaleiro ideal que joga a lança e o dardo”.
Vê-se, perante essa configuração rítmica, que a película consegue, em vinte minutos, expor uma chaga histórico-social ainda aberta. Concebido para ser inaugurado em 2008, no aniversário de 110 anos da morte do autor, o Memorial Cruz e Sousa, instituição destinada a guardar a memória e as cinzas do poeta, foi inaugurado em 2010, mas terminou interditado pouco tempo depois por apresentar risco aos visitantes. Uma reportagem de 2017 noticiou que o prédio da instituição encontrava-se em evidente estado de abandono, enquanto a urna permanecia em uma pequena sala do palácio. No mesmo ano, noticiou-se que as obras de reforma seriam iniciadas, mas informações de 2019 confirmaram a imobilidade do projeto; o desenrolar depende, pelo que consta, de decisão judicial.
Em um país onde as construções já são ruínas, o caso de Cruz e Sousa é, infelizmente, regra. Para deixar a situação ainda mais simbolicamente trágica, há, de acordo com Luiz Carlos Amorim, indícios de que o local escolhido para abrigar os restos mortais do poeta tenha sido a senzala do casarão posteriormente transformado em sede governamental catarinense.
Diante de tal panorama, Cruz e Sousa: a volta do desterrado revela-se uma obra cinematográfica antecipatória por, ao lançar mão de uma forma tensionadora, apontar já na partida, o germe do fracasso da empreitada.
Apesar de ainda estar fisicamente emparedado em uma sala diminuta, o poeta do desterro continua a denunciar, inclusive por meio de refrações artísticas como o curta-metragem de Cárdenas e Schlichting, a “eterna bacanal ridícula da História”.