Uma resenha de Claudine M. D. Duarte
“De amor e outras histórias” de Claudine M. D. Duarte é mais uma da série de resenhas da Livraria do Mulherio das Letras, em que as autoras cadastradas escrevem sobre as obras umas das outras. Dessa vez, a obra resenhada é o livro de poemas Deslocamentos (2019) de Lucília de Almeida Neves Delgado.
Claudine M. D. Duarte é escritora, dramaturga e ativista na formação de leitores. Finalista do Prêmio Jabuti 2018. Seu primeiro livro, Desencontos (2018), tem o selo do Coletivo Editorial Maria Cobogó, do qual é uma das fundadoras.
Lucília de Almeida Neves Delgado nasceu em São João Del-Rey, Minas Gerais. É historiadora e poeta. Autora dos livros de poemas: Jardim do tempo (Ed. Del Rey), Amor e Asas (Autêntica/Gutemberg Editora) e Noites Solares (Ed. Sete Letras). É Mestre em Ciência Política (UFJF) e Doutora em Ciências Humanas (USP), e autora de inúmeros artigos e livros nas áreas de História e Ciência Política, entre os quais: História Oral: memória, tempo e identidades e a coleção O Brasil Republicano. Foi professora na UFMG e na PUC, em Belo Horizonte, e na UnB, em Brasília, onde mora. Integra o movimento cultural Mulherio das Letras.
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De amor e outras histórias
“Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem.”
Sophia de Mello Breyner Andresen
Ele chegou numa manhã de outubro e tinha um quê de chá da tarde na casa dos avós, com bule, flores e uma dedicatória inebriante que falava de “fragmentos de um todo chamado vida”. Assim me tocou as mãos e o coração o novo livro da querida Lucília de Almeida Neves Delgado inundando o meu cotidiano de poesia.
Deslocamentos é seu quarto livro de poemas e carrega no nome a referência a viagens, travessias e movimentos… Talvez pela conexão da autora com o estudo da História, suas dores, marcas e consequências, seja premente eternizar amores, lugares e afeições ao revisitar (reviver?) momentos de outras eras.
A poeta nos fala de olhares lançados ao mundo, questiona tempos e certezas. Como um rio que percorre a vida e (pres)sente a existência de seus afluentes – inexoráveis, os poemas de Lucília carregam reminiscências de perdas e de auroras.
Em cada página, passado e presente entrelaçados, sem excessos… Deslocamentos nos apresenta uma poesia disposta com cuidado: memória e sentimentos bailam imperturbáveis, mesmo correndo o risco de sobressaltos como em seu Desafio: “Por mais que andasse / Subisse altos picos / Mergulhasse em rios de correntezas / Decifrasse possíveis aventuras / Mirasse horizonte oceânico / Não conseguia descolar / Do lugar que fora orgasmo”.
Os poemas nos fisgam, simples e intuitivamente, e nos arrastam por desdobramentos sobre cidades mineiras, pelos cerrados e até por cantos ancestrais que conferiram à autora o indubitável saber de sempre ter sido poeta. Suas raízes estão no amor à arte e ao voo. Lucília mostra sua coragem em Voar: “Em uma tarde de revoada / Também voou / Havia rompido elos / Nunca soube pousar”.
Ainda que fale de saudade, de solidão e do medo de não saber chorar, a poeta corre o risco da vida, revolve o seu passado como uma arqueóloga dos afetos e se percebe no carinho dos pais e de amigos queridos num distante Teorema: “Colhemos no infinito dos números / Afetos de eternidade”.
Recebi o livro de Lucília como um abraço de alguém que conspira a favor da vida, assume todos os ontens e dedica seus textos-presente aos que vieram (e virão) depois. Deixa um alerta em sua Carta a Francisco, Isabela e Lúcia: “Saber quando e por que desistir ou deslocar é ato de coragem. Fortalece”.
Com um olhar de quem já viu muito e se fartou de guerras, desastres e mentiras, a poeta confere a seus descendentes (e leitores) um legado: um amor pela vida e por outras manhãs… Como diria Valter Hugo Mãe ao homenagear seu avô em As mais belas coisas do mundo: “Desenhei-nos a rir. E desenhei uma linha que queria dizer amanhã, para haver amanhã”.
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Três poemas de Lucília Neves, in Deslocamentos:
DESEJO
Nas perdas
Descobriu ser forte
Mas o que mais queria
Era saber chorar
*
PEDRA-SABÃO
Deixou-se moldar como pedra-sabão
Nunca mais soube de si
*
INSUFICIÊNCIA
Nada cala tua voz
Nenhuma luz anula o gosto ácido do vazio
Na saudade não cabem nossos mergulhos
No silêncio ressoa o tempo que em nós ferveu
Não há paz que acolha tua ausência
*
DESLOCAMENTOS
de Lucília de Almeida Neves Delgado
Outubro Edições, 2019
125 páginas – R$ 35