Uma resenha de Demétrio Panarotto sobre dois livros de Leonardo Tonus
Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura (UFSC) e professor de roteiro no curso de Cinema da UNISUL. Músico, roteirista, poeta, escritor e idealizador do programa Quinta Maldita (na webrádio Desterro Cultural) e do PIPA Festival de Literatura (na companhia de Juliana Ben). Publicou, dentre outros, Mas é isso, um acontecimento [Editora da Casa, 2008, poemas]; Ares-Condicionados [Nave Editora, 2015, contos]; A de Antônia [Miríade, 2016, infantil]; 18 Versos para o funeral de Demétrio Panarotto [Papel do Mato Oficina Tipográfica, 2018, poemas], Tratamento da Imagem [Patifaria, 2018, conto]; Arquipélago [Patifaria, 2018, infantil], Lotação [Medusa, 2018, poemas]; Vozes e Versos [Martelo Casa Editorial, 2019, poemas, com Ana Elisa Ribeiro e Marcelo Lotufo], Cerzindo e Cozendo [Butecanis Editora Cabocla, 2020, poemas], Privado [Butecanis Editora Cabocla, 2021, contos] mais alguns discos e alguns filmes. Reside em Florianópolis-SC, Brasil.
Leonardo Tonus é professor em literatura brasileira na Sorbonne Université (França). Em 2014 foi condecorado pelo Ministério de Educação francês Chevalier das Palmas Acadêmicas e, em 2015, Chevalier das Artes e das Letras pelo Ministério da Cultura francês. Curador do Salon du Livre de Paris de 2015 e da exposição Oswald de Andrade: passeur anthropophage no Centre Georges Pompidou (França, 2016). É o idealizador e organizador do festival Printemps Littéraire Brésilien e do Projeto MIGRA. Publicou diversos artigos acadêmicos sobre autores brasileiros contemporâneos e coordenou, entre outros, a publicação de Samuel Rawet: ensaios reunidos (José Olimpio, 2008), do volume 4 da Chiricú Journal: Latina/o Literatures, Arts, and Cultures (Indiana University Press, 2020) e das antologias La littérature brésilienne contemporaine — spécial Salon du Livre de Paris 2015 (Revista Pessoa, 2015), Olhar Paris (Editora Nós, 2016), Escrever Berlim (Editora Nós, 2017) e Min al mahjar ila al watan – Da Terra de Migração Para a Terra Natal (Revista Pessoa/ Abu Dhabi Departement of Culture and Tourism/Kalima, 2019). Vários de seus poemas foram publicados em antologias e revistas nacionais e internacionais. É autor de duas coletâneas de poesia: Agora Vai Ser Assim (Editora Nós, 2018) e Inquietações em tempos de insônia (Editora Nós, 2019).
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De onde falamos
sou um corpo em desânimo,
dócil (des)presença poética
que estorva.
(Leonardo Tonus)
O lugar de fala, o lugar de escuta, o lugar de observação, o não lugar, outros tantos lugares (quais?). É óbvio que não conseguimos dar conta deles, afinal nossa capacidade de percepção é, desde que nascemos — em casa, na escola, no lazer —, moldada para que sigamos validando as estruturas vigentes a partir de um olhar pretensamente unificado, todavia envolto em disciplinas. Ainda, há o fato de que somos constantemente atravessados pelo improvável que, contraditoriamente, amplia e reduz nossa capacidade de observação. Restam, no entanto, tentativas de nos colocarmos em pontos de diálogos.
Conversas.
Proposições.
Somente.
O ponto de partida, para tanto, são os argumentos presentes em dois livros de poemas de Leonardo Tonus — Agora vai ser assim (2018) e Inquietações em tempos de insônia (2019) —, que problematizam questões, dentre outras, em torno da língua e da pátria. São esses o ponto e o recorte que me interessam, por ora, na poesia de Tonus.
Antes disso, porém, uma reverência à importância de Os Lusíadas (1572) como marco da literatura de língua portuguesa e, por extensão, como defesa da pátria lusitana: “Temos uma língua”, “temos uma Literatura”, “somos uma pátria”, essas eram as vozes possíveis para a libertação de Portugal do domínio espanhol, de 1580 a 1640. Se Camões havia alçado a língua portuguesa ao mesmo patamar das demais línguas de origem latinas, Portugal via-se no direito de buscar autonomia política. Não obstante, se Dante Alighieri havia feito a defesa da língua italiana (das línguas francesas e da língua espanhola por extensão), Camões — um provável tradutor de Petrarca para o português (um dos primeiros nomes a se expressar poeticamente em uma língua românica) — havia dado um argumento genuíno para a libertação portuguesa da corte espanhola. Todavia, a beleza da língua, naquele caso como ato de libertação, impõe-se como manto escravizador a outros povos — o exemplo do Brasil é monumental, este terreno opressor e de muitos conluios, pois foi o último grande país a abrir mão da escravidão.
Fico em dúvida sobre o quanto essa questão não passa de um paradoxo ou, simplesmente, de uma doxa, afinal os reflexos do período escravocrata, bem sabemos, permanecem em solo brasileiro até hoje. Não é difícil sinalizar para o modo como a língua portuguesa falada em solo brasileiro se mantém mais forte como manto escravizador do que como promessa libertadora. Talvez esse sentido de libertação (da imposição europeia), de abolição (da escravatura) nunca tenha passado de uma maquiagem na história cultural, social e econômica brasileira.
Leonardo Tonus, no poema “de onde não falo” — na terceira parte, (des)reencontros), do livro Inquietações em tempos de insônia[1] —, reprocessa a ideia da língua como pátria quando diz
minha língua não é minha pátria
língua não tem pátria.
não tem dono a língua que me domina.
minha língua é violência.
estuprou a primeira índia.
escravizou negros.
torturou oponentes a regimes.
assassinou artistas de minha pátria,
minha língua, em nome de uma pátria,
em sua língua-pátria.
O primeiro verso, “minha língua não é minha pátria”, já enquadra o problema. Em um primeiro momento, num olhar rápido, poderíamos interpretá-lo a partir da aparente obviedade: a língua é a pátria portuguesa, ou seja, a língua não é a pátria brasileira. Mas, essa situação se reconfigura e ganha outra potência no verso seguinte: “língua não tem pátria”. Com esse verso, Tonus problematiza a associação direta da palavra língua com a palavra pátria — como dito acima, um argumento que aparentemente se sustenta na relação entre língua e Portugal, mas que, no caso do Brasil, só é possível por uma associação moderna, capitalista, que se diz laica, mas que segue sendo governada pela religião e os versos “minha língua é violência” traduzem o sustentáculo social.
Em se tratando de Brasil, o conceito de Comunidade Imaginada, de Benedict Anderson, talvez ajude a lidar com esse ponto, pois com Anderson há a reconfiguração do conceito de pátria (justificável na associação direta com a língua) com o de nação. Ou seja, e sem peso moral, com Anderson é possível dizer que não temos pátria e não temos língua, não passamos de uma comunidade imaginada: imaginamos uma independência, imaginamos uma princesa (Isabel e as leis que ela simplesmente assinou amparada pelos interesses portugueses), uma abolição da escravatura, uma república e seus desdobramentos (signos patrióticos, bandeira, hino; ou signos culturais, feijão, samba, futebol, dentre outros) sempre calcados nos interesses do colonizador (ou de seus representantes em solo colonizado). Para isso os verbos “estuprou”, “escravizou”, “torturou” e “assassinou” demonstram como a violência da língua se apresenta.
Além disso, há a manutenção, subterraneamente que seja, dos preceitos escravocratas como guias nacionais. No final, imaginamos tantas coisas para sustentar a palavra “brasileiro” que sentimos dificuldades para deixá-la em pé sem os encostos estrangeiros.
O fato político recente que reforça essa situação foi a eleição presidencial de um enfadonho que defende conceitos que supostamente deveriam ter sido enterrados após a abolição da escravatura. E o faz com o apoio das principais estruturas políticas, econômicas, midiáticas do país, entre outras, evidenciando que o único fim das ações é econômico. É o dinheiro que guia a nação: morrendo por ele ou deixando morrer.
O lugar de fala de Tonus é outro, e o de escuta também. A língua a que Tonus se refere é opressora na sua imposição de conceitos moralistas que montam uma tradição (que mascara a democracia). Mesmo assim é através da língua que Tonus reelabora o argumento diante dessa imposição. O Brasil não é um país porque tem uma língua, por outro lado, e concomitantemente, o Brasil tem uma língua que impõe uma tradição. Esse pacote — língua, pátria, tradição — estrangula a possibilidade de uma outra nação que não a conservadora, racista, escravocrata, misógina etc. O desfecho do poema reforça essa potência:
deslíngua minha língua
outras línguas que trans-
bordam a língua de onde não falo
a língua pátria que me ex-
patria.
Nele fica evidente que Tonus fala com a língua, mas não a partir da pátria. Afinal, percebe-se como um “ex-patria” e nos oferece outra ferramenta para problematizarmos o ponto da exclusão. O país que se diz lugar de inclusão, na prática exclui todos aqueles que não versam os códigos farsescos impostos pelas ressonâncias históricas dos já mencionados períodos da Independência, da Abolição da Escravatura ( precedido da Lei do Ventre Livre, 1871 e Lei dos Sexagenários,1885), da Proclamação da República, dentre outros, que enquadraram em forma de leis, muito pouco além disso, o país nos códigos da política moderna internacional. Ou seja, o Brasil, disfarçado em uma névoa, repete os códigos impostos durante o período da “escravidão” e a língua, despretensiosamente, ajuda a perpetuar.
Considera-se, ainda, o fato de que Leonardo, por não morar mais no Brasil desde a década de 1990, posiciona-se a partir de outro ponto, o do imigrante, cuja percepção da língua como local de opressão pode se expressar de modo ainda mais intenso. Todavia, não há como desconsiderar que respeitar o código linguístico oficial do país não passa de um respeito à imposição que a língua nunca nos permitiu que fosse transgredida.
No poema “fui. foste.”, no desfecho do livro, vem a sentença:
porque doravante serás o desreencontro:
tu,
meu país,
que um dia foste.
Por que o desreencontro? Porque, mesmo sabendo que a língua é o lugar da opressão que se mantém e que se acentua, ao mesmo tempo é através dela que existe a possibilidade de se colocar como resistência, ao estilo de Dante Alighieri, que, em latim, no ensaio “De Vulgari Eloquentia” (1990), defende as novas línguas romanas. É no desreencontro que se abre a possibilidade de uma defesa latente em relação ao gesto opressor. A questão não está em deixar de falar a língua (não temos aqui nenhum complexo de quaresma), mas em não aceitar a imposição que dela emana.
Por mais que o argumento inclusivo continue sendo o da mescla, ou da miscigenação, especificado na potência que o português brasileiro ganha em relação ao português de Portugal pela quantidade de palavras oriundas das línguas negras e das próprias línguas indígenas, não há como deixar de considerar que o uso dessas referências acaba por reforçar a dicotomia entre opressor e oprimido. Não há dúvida de que o jogo literário (e aqui estou pensando na Literatura produzida em língua portuguesa falada no Brasil na sua relação com a falada, por exemplo, em Portugal) permite remontar outros contextos, afinal a língua, com o acréscimo das línguas indígenas e africanas, ganha requintes em suas expressões que não são possíveis de serem associados diretamente ao latim. Todavia, seu uso é opressivo, ainda mais quando observamos que as comunidades indígenas e negras continuam sendo locais de exclusão.
Talvez esse entendimento tenha se tornado, para o autor em questão, ainda mais claro a partir do momento em que ele deixa o país para uma experiência em solo francês. O tempo reconfigura esses espaços. Hoje Tonus é professor em Paris, na Sorbonne. E esse tema está presente no poema “Estar-em-comum”, do livro Agora vai ser assim (2018), em que versa sobre a hospitalidade da língua. A seguir, o poema “Terror”:
Ontem eu vi o terror nos olhos de um imigrante clandestino.
Simplesmente, o terror de um barco à deriva, vida de silêncios de uma existência usurpada.
Ontem eu vi o terror dos meus olhos nos olhos de um imigrante clandestino.
Meus olhos menos clandestinos desembarcados aqui há anos.
O terror não se descreve.
O terror não se narra.
O terror não se esquece.
A identificação se dá por aquilo que os aproxima, não por aquilo que os mantêm sob o mesmo cabresto. O olhar de Tonus parece se reconfigurar a partir do olhar do imigrante. A língua portuguesa falada por Tonus, enquanto imigrante brasileiro e residente europeu, talvez procurasse nos pares (os imigrantes) o lugar de identificação, pois junto com sua fala havia a escuta, de quem sofre o preconceito. Todavia, quando fala em outro território, a identificação já não se dá por quem escuta a língua como língua materna, mas no ponto em que a língua não ressoa além da pecha de exclusão que o imigrante carrega. Independentemente de falar em português ou em francês, Tonus será sempre um imigrante.
A potência, neste caso, está no modo como Tonus não se cala diante desse processo e se utiliza dos meandros de sua língua materna para expor as exclusões, que não deixam de ser termômetros que governam o mundo dito civilizado e em constante estado de reaproveitamento de sua verve medieval.
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[1] Em seus dois primeiros livros, o autor desmonta esse lugar. Sinalizo os dois livros pelo diálogo que neles se intensifica.
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Demétrio Panarotto:
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(Demétrio Panarotto: fotografia de Pati Peccin [detalhe em p&b da versão original colorida])
(Leonardo Tonus: fotografia de André Argolo [detalhe])