Uma resenha de Divanize Carbonieri
Esta é mais uma da série de resenhas da Livraria do Mulherio das Letras, em que autoras cadastradas escrevem sobre as obras umas das outras. Dessa vez, Divanize Carbonieri escreve sobre O indizível sentido do amor de Rosângela Vieira Rocha.
Divanize Carbonieri é autora dos livros de poesia Entraves (Carlini & Caniato, 2017), Grande depósito de bugigangas (Carlini & Caniato, 2018), A ossatura do rinoceronte (Patuá, 2020) e Furagem (Carlini & Caniato, 2020), além da coletânea de contos Passagem estreita (Carlini & Caniato, 2019).
Rosângela Vieira Rocha nasceu em Inhapim, MG, e vive em Brasília. Tem treze livros publicados, seis para adultos e sete infantojuvenis. Recebeu vários prêmios literários, entre os quais se destacam o Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG-1988, com o romance Véspera de lua, e a Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, com a novela Rio das pedras. Publicou o romance O indizível sentido do amor (Patuá, 2017) e acaba de lançar Nenhum espelho reflete seu rosto (Arribaçã). Participou de várias coletâneas de contos, entre as quais Mais trinta mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira. Além de escritora, é jornalista, mestre em Comunicação Social, advogada e professora aposentada da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília – UnB. É colunista de revistas culturais e literárias digitais, entre as quais se destaca a Germina.
Esta resenha foi originalmente publicada na revista Letras Escreve, v. 8, n. 3, 2018: (https://periodicos.unifap.br/index.php/letras/article/view/4215).
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UM RETRATO NECESSÁRIO DO BRASIL EM O INDIZÍVEL SENTIDO DO AMOR
ROCHA, Rosângela Vieira. O indizível sentido do amor. São Paulo: Editora Patuá, 2017.
O indizível sentido do amor (2017) de Rosângela Vieira Rocha se inicia com uma epígrafe de Marguerite Duras: “Parecia que o amava com um amor eterno e nada de novo podia acontecer a esse amor. Eu me havia esquecido da morte” (DURAS apud ROCHA, 2017, p. 11). Dedicado à memória de José Antônio Simões Filho, marido falecido da autora, o livro costura diversos momentos dos aproximadamente quarenta anos de convivência do casal. Mas não se trata apenas de uma elegia pessoal. Na verdade, Rocha também discute questões significativas da história do país, investigando as lacunas existentes em torno das narrativas a respeito da ditadura civil-militar, ocorrida de 1964 a 1985.
José, como é chamado pela companheira de uma vida, teve uma atuação na militância política de esquerda e esteve preso, na Ilha Grande, por cerca de um ano em 1970. Durante seu período de detenção, recebeu inúmeras sessões de tortura, como ocorria comumente com os presos políticos. Apesar da grande intimidade presente no relacionamento entre ele e a mulher, José nunca narrou com detalhes tal experiência para ela. Uma ou outra frase foi dita sobre isso ao longo dos anos, entremeada por imensos silêncios. Após sua morte, Rocha tenta construir um mosaico com os fragmentos ouvidos, buscando ainda depoimentos de outras pessoas e informações em fontes documentais.
Quando se conhecem, Rocha, com dezenove anos, e José, com vinte e cinco, o assunto é rapidamente trazido à baila: “Dois gins tônicas depois ele me contou que tinha saído da cadeia. Cadeia, perguntei? Mas cadeia por quê? […] Ainda posso escutar o som da sua risada. É uma longa história, que só vou contar aos poucos” (ROCHA, 2017, p. 56). Mas José sempre foi parcimonioso ao mencionar seu passado, não apenas para a esposa, mas para toda a família. Rocha lamenta, por exemplo, que ele jamais tenha dividido com as sobrinhas o que realmente enfrentou naquele período: “Legados espirituais são relevantes, sobretudo quando possuem conteúdo histórico. O gesto representaria, também, uma maneira de entrar numa sintonia mais profunda com elas” (ROCHA, 2017, p. 182).
Em seu livro, Rocha segue na contramão do silenciamento, que, em grande parte, também é praticado pela nação como um todo em relação a esses episódios e suas consequências. A ideia que a move parece ser a de que apenas as narrativas podem auxiliar na elaboração do sofrimento. A saúde de José, por exemplo, foi bastante marcada pelas técnicas cruéis de tortura empregadas em seus interrogatórios. Se as palavras não foram suficientemente pronunciadas, o corpo pareceu gritar e explicitar sua história, revelando desde ligamentos rompidos até a doença sistêmica e autoimune que o atingiu na maturidade, passando ainda pela infertilidade causada por sucessivos choques nos genitais. Rocha discute inclusive os traumas não tão visíveis, aqueles soterrados por camadas e mais camadas de abafamento: “O que nunca deixarei de lamentar é o fato de você não ter podido usar o seu potencial naquilo que realmente o interessava. […] Sei que teve ótimo desempenho como analista de sistemas, mas a informática é técnica demais para que pudesse se expandir. Era pouco para você, que poderia ter ido muito além, em outro contexto” (ROCHA, 2017, p. 187).
Nesse sentido, o Brasil pode ter sacrificado uma geração inteira de talentos. Muitas das pessoas assassinadas pelos aparatos de repressão da ditadura provavelmente fazem falta na atualidade, neste presente de tanta apatia e falta de conscientização política. Afinal, foram abatidos principalmente os mais inconformados com as desigualdades e injustiças sociais sistêmicas do país, aqueles que tentaram, mesmo diante de situações as mais adversas, mudar tal cenário sombrio. Mesmo quem sobreviveu pode ter sido embotado de certa forma, diminuído em suas potencialidades, exatamente como Rocha acredita ter acontecido com José. São efeitos desastrosos, sentidos em trajetórias individuais e coletivas, que talvez apenas a literatura dê conta agora de mensurar.
Toda a reconstrução efetuada por Rocha, em O indizível sentido do amor, é, como não podia deixar de ser, essencialmente um procedimento literário. Diversas camadas temporais se entrecruzam, alternando fragmentos narrativos, sem ordem cronológica, dos muitos períodos vivenciados: o namoro ainda na graduação, a convivência como um jovem casal de pós-graduandos no alojamento de uma universidade, a época em Salvador, viagens, a internação de José, as reflexões de Rocha após a morte do marido. É uma espécie de autobiografia com uma narradora-testemunha, em que o principal é narrar como a existência de outrem marcou essa voz narrativa em primeira pessoa, numa busca incessante de compreender o que nunca foi dito. Também é uma biografia não autorizada ou quase envergonhada, já que José talvez não aprovasse tamanha exposição: “Tente não me julgar com severidade por querer desvendar postumamente certos segredos tão bem guardados. Quanto a estes, admita que foi avaro, mas entendo essa avareza como uma maneira de me poupar e de se poupar” (ROCHA, 2017, p. 188). Nesses momentos, José assume a posição de um narratário silencioso, a quem a narradora se explica e tenta perscrutar.
Mas o livro é acima de tudo um romance, não apenas porque qualquer reconstrução narrativa da realidade sempre envolverá grandes parcelas de ficcionalização, mas principalmente porque Rocha lança mão de expedientes que são típicos desse gênero literário. Por exemplo, o capítulo dedicado à mãe de José, em seu fragmento inicial, traz a personagem falando na primeira pessoa, sem intermediação da narradora predominante no restante da trama. O efeito obtido é a intensificação da angústia de uma mãe que ainda não sabe que o filho está preso, mas que já pressente de alguma forma a situação. O capítulo que narra o instante da prisão de José, ocorrida numa modesta pensão de favela, também é bastante notável.
Rocha escolhe posicionar o foco sobre a dona do estabelecimento, Dona Rita, e não sobre o real protagonista do evento. A impressão que se tem é a de que toda a secção se assemelha a um conto, inserido na narrativa maior, mas autônomo de certa forma, coerente, com começo, meio e fim em si mesmo. Concentrar a ação em Dona Rita revela ainda o tamanho do desconhecimento das pessoas comuns, da maior parte das classes populares, a respeito do que se passava no país. Dona Rita não consegue compreender como um rapaz tão educado, simpático e trabalhador como Luís (um dos codinomes que José utilizava) pode ser procurado – e de maneira tão violenta – pela polícia. A hipótese mais provável aventada posteriormente pelos vizinhos é a de que ele fosse um traficante. Nem passa pela cabeça dela e de seus amigos que o que os policiais chamam de “terrorista” seja simplesmente um opositor do governo, um defensor da democracia e dos trabalhadores. Apesar dessa profunda ingenuidade, os agentes do estado não poupam a dona da pensão, insultando-a, ameaçando-a e destruindo seus pertences até conseguirem botar a mão em seu verdadeiro alvo.
O indizível sentido do amor é, dessa forma, um retrato necessário do Brasil, de um Brasil que, em grande parte, não se enxerga e não se conhece. E isso não é verdadeiro apenas para o período de atuação política de José, mas para o presente também. A consciência do brasileiro médio ainda é bastante identificada com o ponto de vista da elite, da classe de senhores brancos e ricos, que até hoje mandam no país e exploram sua população mais pobre. Muitas vezes aqueles que lutam contra esse estado de coisas não são reconhecidos por seu próprio povo. Narrar incansavelmente essas histórias, sobretudo daqueles rebeldes que acabaram passando despercebidos nas narrativas oficiais, é um antídoto que a literatura pode oferecer. Num momento em que a democracia, conquistada depois de mais de vinte anos de autoritarismo, vem sendo sistematicamente golpeada, nada parece ser mais acertado e urgente.
A narrativa é o oposto da morte. Aquilo que foi narrado permanece vivo, mesmo depois da destruição dos corpos dos envolvidos, seja pela ação do tempo ou de seus algozes. A sobrevivência das narrativas é importante porque o futuro está sempre, de alguma forma, embrenhado no passado. Quando um acontecimento passado não foi suficientemente elaborado, examinado por diversos pontos de vista, as chances para que se repita são muito grandes. Ou uma única narrativa pode prevalecer, soterrando perspectivas divergentes, que seriam fundamentais para compor um quadro mais amplo do que se passou. A literatura pode proporcionar essa multiplicidade de narrativas que restabelecem a complexidade dos eventos. Basta que, para isso, seus autores sejam corajosos e desafiem os silenciamentos, assim como faz Rocha nesse livro tão imprescindível.