Uma resenha de Elisa Mattos
Esta é mais uma da série de resenhas da Livraria do Mulherio das Letras, em que escritoras cadastradas resenham as obras umas das outras. Desta vez, Elisa Mattos escreve sobre De Almas e Bois de Nazaré Bretas.
Elisa Mattos, jornalista e escritora, nascida no Rio de Janeiro, é pós-graduada em jornalismo político e atuou como editora de na TV Globo em Brasília, onde reside. Desde 2011, seus textos são divulgados pela internet e tem poemas publicados em coletâneas nacionais e internacionais, entre elas, o primeiro de poesias editado pelo Mulherio das Letras e a edição internacional Mulherio Pela Paz. Seu livro de poemas, Meu Reverso (2018), tem o selo do Coletivo Editorial Maria Cobogó, do qual é uma das fundadoras.
Nazaré Bretas, nascida mineira, na pequena Piraúba, se dedicou por muito tempo às coisas exatas: matemática e computadores. Desde 2018 se dedica à literatura, em escritos e recomendações de leitura pela página https://www.facebook.com/almaeboi/. De Almas e Bois (2019) é seu primeiro livro publicado e “foi gestado entre sertão e veredas”.
Fanpage da Livraria do Mulherio das Letras: https://www.facebook.com/livrariamulherio
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DE ALMAS E BOIS
Por muitos anos convivi Minas. Vi de perto Minas, senti Minas, cheirei Minas. Sensações difíceis de traduzir em palavras. Minas se vive.
Também aprendi a ouvir Minas. A voz mansa do mineiro; o riso cúmplice na troca de olhares; o sorriso sem sequer um porquê; as histórias sem cabimento, expressão mineiramente encantadora. Pode significar um desprezo, pode ser um elogio, um espanto, uma esperança. Tem cabimento.
O dobrar dos sinos, carregado de mensagens. As luzes amarelas de seus postes, o silêncio dos becos. Me casei em Minas, numa igrejinha linda de Tiradentes. Festa mineira, som de violino, bolo com recheio de doce de leite, buquê de orquídeas catadas na hora no pequeno quintal da dona Carmem. Criei vínculos.
Os contos de Nazaré Bretas, mineira de Piraúba, me levam (ou me trazem) até Minas. Seu primeiro livro, De Almas e Bois, é uma viagem por esse universo tão particular, porém carregado de emoções que patinam entre lembranças e saudades, entre amores e esquecimento, rezas ou murmúrios.
Na curta apresentação, Nazaré revela que as histórias nasceram ou foram inspiradas em conversas nos alpendres da roça e nas rodas de boteco. Quem resiste a esses deliciosos saraus?
O conto que abre o livro, já indica uma linguagem um tanto minerês que nos aguarda. A princípio causa estranheza, mas indo, linha após linha, entramos de cabeça no clima. Uai, pensei, que trem mais gostoso de ler. Daí, recomecei do início, para melhor entendimento do sutil jogo de entrecruzar nomes aos animais, mania dos fazendeiros daquelas bandas de Minas. Traduções da alma.
Nininha e o mar é apaixonante. É mulher, somos nós. É minha mãe, que era chamada de Nininha pelos seus irmãos e, estranhamente, vivia perto do mar, mas não frequentava as águas. A dona da história queria o mar junto dela, com toda a imensidão que ele pode oferecer. E o quis de presente, foi seu mais ambicioso pedido. Como não se emocionar com tamanha singeleza?
Aqui, Nazaré mostra o quanto a intensidade da espera pode se transformar em decepção, quando o sonho não cabe dentro de uma concha. Só resta recolher os cacos. E assim segue a vida de tantas e tantas mulheres que nos rodeiam.
De Almas e Bois fala também das dores da alma, do sentir-se isolado, de escolhas, de solidão. A dor da saudade. Traços de tristezas, que também fazem parte da vida, infelizmente. No entanto, Nazaré busca equilíbrio nas palavras quanto toca em temas tão áridos, que nos angustiam, incomodam, tocam em feridas. Mas tais sentimentos são apresentados com leveza e doçura, com roupagem de poesia.
Um livro de estreia com jeito que já estava pronto, só faltava chegar até a nós. Nazaré Bretas se junta a tantas outras autoras brasileiras que sabem como e onde buscar a força do escrever. Com lindeza e sabedoria. Seja bem-vinda.
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Trecho:
“Não era daqui tão longe. Nem faz tanto tempo assim. O lugarejo famoso por harmônica geografia, e por ser dito e sabido, lugar de ordem e abundância. Os morros o protegiam. O rio que lhe cortava ao meio, vinha do berço do sol, seguia exato seu rumo, até que lá no horizonte, junto do poente, sumia. Às margens simétricas do leito, prósperos sítios se alinhavam na mais formosa teia. Cemitério, igreja, estação dispunham-se com singular equilíbrio. E no alto do morro mais alto um cruzeiro de luz contemplava o cenário.
Os viajantes que alongassem a estada, e olhassem a vila de perto, andassem por seus caminhos, percebiam algo estranho. Brilhavam pouco os olhos das gentes. Como que cansados da ordem, enfastiados de equilíbrio. Também pouco se ouvia o riso solto pelas coisas simples. E nunca, nunca mesmo se ouvira contar de que ali se chorara em pranto.
Quem por mais tempo ficasse, aprofundasse na prosa, rezasse a missa com a vila, acabava por aprender que lá cada casal, ao ter as bênçãos do pároco e do cruzeiro de luz, tinha uma estória só. […]”
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DE ALMAS E BOIS
de Nazaré Bretas
Coletivo Editorial Maria Cobogó, 2019
R$ 30