Uma resenha de Jefferson Dias
Jefferson Dias é autor dos livros de poesia Último festim (Multifoco, 2013) e Silenciosa maneira (Medita, 2015, mediante ProAC). Tem poemas, contos, traduções e resenhas publicados em periódicos e portais de literatura, tais como euOnça (editora Medita), Opiniães (USP), Caliban, Literatura & Fechadura, Germina, Ruído Manifesto, Ponto Virgulina, TriploV e Gazeta de Poesia Inédita. Ademais trabalha na tradução do poema “Briggflatts”, de Basil Bunting.
“Para uma ‘cardiomitologia’ em tempos de polarização” é a sua resenha sobre o livro Explorações cardiomitológicas (Editora da Casa, 2018) de Isadora Krieger.
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Para uma “cardiomitologia” em tempos de polarização
O coração de Odisseu latia. De volta à Ítaca, à socapa, Odisseu cogitava males aos pretendentes de Penélope e às mulheres que com eles se deitavam; todavia hesitou e exortou-se a si: deveria refrear a desmedida. Seu coração, entrementes, como a cadela que envolve os filhotes vulneráveis ante a ameaça, latia ansiando pela briga. Dentro em pouco ele operará sua fria vingança – trata-se do vigésimo canto da Odisseia – e o vemos diferente: não mais aquele que, irrefletido, acaba por converter os companheiros em comida de ciclope.
A paradigmática circunspecção do herói encontra correspondência na mola que se vai encolhendo para dentro de si mesma, até que retorna (neste caso, em momento mais propício). Está em jogo uma gnose, um arrojo para dentro do abismo de ser. Assim também, com intrepidez invulgar, a disposição geral do eu lírico em Explorações cardiomitológicas (Editora da Casa), de Isadora Krieger, um dos livros mais instigantes lançados em 2018 (a começar pelo título) – e ao qual, possivelmente, não se deu a atenção devida. Deparamos 11 poemas de fôlego ou, dada a carregada unidade entre as partes, um poema longo repartido em 11 seções. O que se lê ora aparenta-se ao sermão – o tom é, com efeito, o de um Zaratustra decidido a voltar ao convívio social –; ora se aproxima da missiva e entabula interlocução direta por meio da segunda pessoa. O importante é que, não raro, as inflexões se misturam e a asserção contundente é feita ao pé do ouvido: “há algo em ti que imobiliza toda a matéria em torno dos nossos corpos”.
A pista capital é dada logo no primeiro verso: “só será possível escrever a carta desconsiderando entregá-la”. Mais do que a aquiescência estoica, estabelece-se a conditio sine qua non: aquilo que em um primeiro momento poderíamos chamar solilóquio é fundante. Dir-se-ia que o solipsismo é passo incontornável ao fazer poético, mas aqui o intento geral é ontológico. De todo modo, se a carta, que pressupõe o destinatário, não é entregue, não se inviabiliza? Nesse sentido, o excerto de Sloterdijk escolhido para a epígrafe – e que faz as vezes de preâmbulo – é esclarecedor: os lugares da coexistência não estão “simplesmente no espaço exterior”. Como uma parapraxia desassombrada, essa espécie de l’uns dans l’autre bretoniano reafirma a potência da imagem poética (nos termos propostos por Reverdy) e seu alastramento ao nível existencial. Quer dizer, se quanto mais distantes as realidades aproximadas, mais pujantes as imagens resultantes dessa aproximação, estamos ante a constatação de que há a identificação irrestrita de tudo com tudo, a remissão a uma unidade primeva. Em última análise, escrever a carta deverá consistir na admissão da equivalência entre destinatário e remetente: um está contido no outro e vice-versa. A forma ultimada desse estado de coisas ganha expressão magistral no seguinte verso: “amar sempre implicou em abrir caixões cheios de espelhos”.
A despeito do que possa haver de narcísico ou de projetivo nessa inferência, conta mais, ainda mais que qualquer espanto, a conformação: a fim de chegar ao outro, é preciso olhar-se mortalmente no espelho. É a mola que se recolhe, o coração que late e ainda não morde. Uma tal atitude demanda, como vimos, coragem. Para aceitar aquilo que, em si, turba e perturba mais – e que, ao mesmo tempo, é o que há de mais intestino. Coragem para suportar aquele “eternamente-criar-a-si-próprio, eternamente-destruir-a-si-próprio” de que nos fala Nietzsche: o mundo que é “uma monstruosidade de força” sem alvo.
Para que se efetive a premissa de que “só será possível escrever a carta desconsiderando entregá-la”, é preciso também que se verifique uma reciprocidade: se emissor e receptor se confundem, “só será possível escrevê-la desconfiando que tu já a lês”. Bem se poderia dizer “crendo que tu já a lês”, quem sabe ainda: “sabendo que tu já a leste”. Mas se a poeta titubeia é porque pondera: talvez considere, ao dirigir-se ao interlocutor, espacialidade e temporalidade que extrapolem noções dicotômicas, e entre o impossível e o improvável, sai-se com a contingência irrestrita: “só será possível entregar a carta imaginando-te velho, ainda mais velho do que quando te conheci”. É mais adequado, com efeito, não procurar cronologia nesses versos. E se a indeterminação não soa fora de lugar em vista das maneiras nietzschianas, é porque, ainda considerando um nível procedimental, não deve haver mesmo contradição; a eventualidade, expressa por meio dos verbos “desconfiar” e “imaginar”, dá conta de um esquema regido pela concomitância, pela continuidade e indicia um princípio importante para a economia do livro: omnis affimartio est negatio.
Para ficarmos com o texto tão-somente, aventemos a hipótese do momento primordial, em que a poeta anuncia: “tento colocar entre nós o espelho duplo deus/ homem”. O embate inicial com o interlocutor é marcado, como vemos, pela tentativa, não pela consumação: “continuamos sentados um de costas para o outro”. A poeta intui o nume em si, contudo se hesita e fracassa ante o outro é porque ainda não o considerou a partir de dentro – daí a cardiomitologia. E é em face dessa teogonia inicialmente baldada, dessa conjuntura em que tudo quer ser continuidade, que uma cosmogonia é levada a efeito.
É Heráclito quem resolve: “a oposição é reunidora, e das desuniões surge a mais forte harmonia: através do conflito é que tudo vem a ser”. Nesse sentido, é oportuno retomar a ideia de imagem poética de Reverdy: dela resulta um tipo de ética a ser superada. Porque mais que a conciliação do inconciliável, o que observamos tende a um fluxo liberto, em que as coisas já correm contíguas. Estamos falando de um “estado demiúrgico que transmuta: tempo, termo, aceno”, como se lê na abertura do segundo poema ou segunda parte das Explorações, estado este que advém justamente do contato, espécie de fagocitose que não anula um dos corpos, ou como a poeta definirá posteriormente, “o encontro ultrapassa a própria ideia de encontro” – e o solilóquio que mencionamos propende para o diálogo. Essa consideração ultimada da alteridade leva, afinal, à conclusão de que “não são necessários pequenos rituais de despedida quando somos a totalidade da paisagem”. E nos faz cogitar a figura alquímica da conjunção representada na literatura hermética pelo abraço sexual: “sempre haverá dois jovens muito jovens sentados na calçada beijando-se pela primeira vez”.
Essa topografia do ser, ou anatomia do lugar, acaba por corroborar um indício que vem desde o título: o ângulo mitológico é frutuoso à leitura das Explorações. Na mais antiga cultura grega não se verificava, por exemplo, a primazia, tão vigente hoje, daquilo que é exterior e que para nós equivale à objetividade e à realidade, primeiras e incontestáveis. Pensemos na chuva que deriva de Urano, sêmen que fecunda e emprenha Gaia. Como distinguir entre o que é intrínseco e o que é extrínseco à terra e ao céu, personificados por esses deuses primordiais? Podemos saber que é tardia a instituição da intimidade psicológica e a consequente diferenciação relativamente ao que lhe é externo. Causa-nos estranheza a mera consideração de que pôde haver um esquema que extrapolasse essa dicotomia, já que, para nós, ela é tão natural. Se retomarmos a proposição de Heráclito, é como se, para esse movimento cosmogônico operado pelas Explorações de Isadora, a oposição não fosse só reunidora, mas estivesse interdita, de modo que se constata, sem nenhum embaraço, que “era noite também – menos no teu rosto”; e que “viver guardada por um cordão de montanhas tem a sua beleza: o vestido predileto de pedras equilibrado no cabide”.
O que está no horizonte dessas Explorações é a revelação, ou melhor, o “Acontecimento da Rachadura”, como anota a poeta, que, quer parecer-nos, tal qual Odisseu, percorreu longo percurso para, enfim, desembarcar em sua terra natal e não a reconhecer. Ou tal qual Enoque, para chegar a lugar em que nada era completo, e onde, também como ele, não divisou obra do céu, nem tampouco a terra e seus prodígios – do deserto terrível, entretanto, a poeta fez campo fértil. Daí falar, como já vimos, em “estado demiúrgico”. Quer dizer, os leitores somos remetidos a um tempo arcaizante em que o nome presentifica a coisa. Assim, “um pequeno pássaro batendo as asas com impetuosidade”, que surge como imagem atrás dos olhos do interlocutor, é recebido pela poeta, que o devolve “sobretudo para ver o pequeno pássaro surgir mais uma vez entre os teus lábios enquanto em cada aparição-palavra: pena, bico, asa/pronuncias o nosso nome”. Assim também “cada um dá o nome que quer (e que pode) às coisas brutas”. A pergunta que ecoa genesíaca é a seguinte (e é a partir dela que “construiremos, enfim, a nossa Casa”): “como reaprender o idioma com as crianças que soletram as primeiras letras do alfabeto balançando-se na árvore?”. Não que haja a necessidade instante de uma, mas qualquer sorte de resposta é sinalizada por outra pergunta, não uma ordinária, mas a “pergunta-matriz”: “em qual ponto que o desejo de permanecer e o desejo de partir se encontram em reciprocidade assombrosa?”.
A grande sacada é a suspensão: recorrer a uma temporalidade avessa – ou melhor, engendrar uma. Uma temporalidade e um lugar em que quaisquer exigências positivistas sejam postas de lado, em que cessem os utilitarismos – uma “terra que antecipa os símbolos, indícios de incontáveis perdas”. Objeta-se a noção de progresso e a anacronia é bem entendida se lembrarmos da Teogonia hesiódica: as musas cantam a campanha vitoriosa de Zeus sobre os titãs, mas são geradas por ele somente após a titanomaquia, em outras palavras, as relações de anterioridade, simultaneidade e posterioridade são voláteis ou mesmo inexistentes, de maneira que seria mais adequado dizer: as musas cantam a vitória de Zeus e são geradas por ele (sem conjunção adversativa e nem marcação temporal). Nesse sentido, nas Explorações os versos que custam a lograr a quebra e duram pelas linhas intermináveis redundam em experiência intrincada de leitura – o livro de 35 páginas torna-se ingente. A interlocução estabelecida mediante o uso reiterado da segunda pessoa, age como força centrípeta pujante, o leitor é arrastado a esse domínio virtual, compelido a um ir e vir, e não pode saber direito se lhe cabe decidir: progride ou retrocede? Não raro percebe que tanto faz – talvez passe dias na mesma página. A dilatação daí resultante desestabiliza, e a poesia pode, assim, efetivar sua virtude maior: o choque. Porque Isadora é prosaica, pode soar estritamente filosófica ou confessional. Mas se observa o requisito fixado por Eliot – o de que todo poeta deve ser um mestre do prosaico para escrever um poema longo –, parece extrapolar a indicação do mesmo, de que em um poema de certa extensão “deve haver transições entre passagens de maior ou menor intensidade” e de que essas passagens de menor intensidade serão prosaicas. Nas Explorações, o prosaísmo pode (e deve) ser intenso.
Temos as imagens poéticas, o artifício interlocutório, a dobradura do tempo. Tudo isso congregado magnetiza o leitor. E se o coração da poeta já não late e avança para o outro, é porque aceitou que “todo ser é constituído pelo Oco”, com maiúscula, e que, assim, engendrar um mundo revela decisivamente o Sísifo: “aquela indiferença brutal de levantar rochas mentalmente com um único objetivo: o de soltá-las […]”. Se o que fazemos da vida compara-se à atividade de “acrobatas cegos criados por algum demiurgo comovido pelo tédio”, o último preceito – não há outra palavra – que deduzimos dessas Explorações é o de que a assunção do “Oco” nos une a todos. Em tempos de radicalismos, quer parecer que uma tal leitura vem a calhar.