Uma resenha de Lucas M. Schlemper sobre “O poeta periférico” (2018) de Marcelo Labes
Lucas Schlemper é escritor e poeta catarinense. Iniciou suas atividades literárias no ano de 2008. Atua nas áreas de revisão de texto, preparação de originais para vias de publicação, tradução, ensino informal (oficinas de criação) e gestão de projetos e concursos literários. Autor do livro Cá Entre Nós – Odes de Alusão & Ilusão, pela editora portuguesa Poesia Fã-Clube em 2013. Mantém o blog Lance de Lua e teve um poema publicado na coletânea Prêmio Off Flip de Literatura (2017).
Marcelo Labes nasceu em Blumenau-SC, em 1984. Autor de Falações (EdiFurb, 2008, poemas), Porque sim não é resposta (Antítese, Hemisfério Sul, 2015, poemas), O filho da empregada (Antítese, Hemisfério Sul, 2016, poemas), Trapaça (Oito e Meio, 2016, poemas), Enclave (Patuá, 2018, poemas), O poeta periférico (Edição do autor, 2018, poemas) e Paraízo-Paraguay (Caiaponte Edições, 2019, romance – no prelo).
Participou da mostra Poesia Agora (edição carioca). Edita a revista O poema do poeta, onde publica originais manuscritos e processos de escrita de poetas e ficcionistas.
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‘O POETA PERIFÉRICO’ E A POESIA
DE DENÚNCIA DAS DISTÂNCIAS
por Lucas M. Schlemper
A Periferia unida, no centro de todas as coisas. Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala. Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala. É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do país. Que armado da verdade, por si só exercita a revolução. Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona. Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural. […] A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
(trecho do manifesto redigido por Sérgio Vaz, em 2007, por ocasião da Semana de Arte Moderna da Periferia)
Em encontro recente, durante uma mesa redonda que ministrei com poetas convidados, Marcelo Labes lançou mão de sua persona de provocador para afirmar, categórico, quanto às procuras temáticas do poeta de hoje: “Talvez não haja mais tempo de se falar em Tempo, Amor, Morte…” Não me atreveria a discordar aqui do que ele confessa. Debruçar-se sob o invisível na tentativa de apreender-lhe a forma pode custar caro hoje em dia, pode ser dispendioso a troco de pouco.
Marcelo Labes perambula pela poética da urbe. Poética do concreto, mas não escrava da matéria, que subverte a objetividade da cidade por uma subjetividade do olhar. Na dimensão estreita da metrópole – imutável, opressiva, cheia de pontiagudas arestas – o poeta se faz cronista urbano, se lança à flânerie e se mimetiza às largas avenidas, tenta desviar os olhos dos hipnóticos anúncios luminosos. A metrópole é o cenário que se descortina não de forma temática, mas como cerne de uma construção em seu último livro, “O Poeta Periférico”.
O inflamado flanador de “O Poeta Periférico” é dado às posturas veementes, e ainda mais convicto quando ocorre de despersonalizar-se em prol do confronto. Vê-se ganhar voz o poeta da ágora, que emerge do embaixador do subúrbio de “Trapaça” munido agora de uma autoconsciência contumaz, de um senso de ironia que o coloca sob controle de um discurso. Discurso de denúncia das distâncias – das segregações – das paredes e dos muros – das barragens – das trincheiras – das ilhas sociais – das impossibilidades de uma cidade.
Antes, nos tempos de “Trapaça”, dizia como quem aconselha: o poema / pra existir / necessita / desse silêncio (…) necessita / desse porão / acinzentado / que a gente / leva consigo. Mas o poeta da ágora se acostuma rápido com a poluição sonora, faz dela o seu compasso rítmico. No tematizar de questões como o elitismo acadêmico, as diferenças de classe e as funções sociológicas da poesia, o poema é puro ruído provindo das ruas – não é mais uma nobre tradução do intraduzível. Será que a poesia pós-moderna na era digital se equilibra na consciência deste paradoxo?
Nesse desejo do urbano, da escrita popular que não perde de vista o viés erudito, a vida é compreendida em sua materialidade, de um modo mais sígnico que simbólico. Longe de colocarem-se à procura de mundos longínquos e evanescentes, conforme comumente são lidos os poemas simbolistas, os de Labes estão marcados por um senso de concretude. Há cimento, cabos, canos e fios por detrás das paredes do poema. Ouvem-se os sons das passeatas, dos canteiros de obras, das engrenagens a todo vapor – eis a criação poética em sua mundana, porém eficaz engenharia. O poema se faz praça pública.
DO ALTO DESSAS ESTANTES
Há toda uma selva lá fora: selva de edificantes monumentos que separam os indivíduos, que os segregam em blocos, que os hostilizam. O glossário do livro, que pode ser lido como prólogo, ou como poema introdutório, exemplifica esta denúncia das distâncias ao propor uma dicotomia que norteia todo o sentimento da obra: o poeta central versus o poeta periférico.
O primeiro aparece como sujeito muito culto/ perfumado antenado bem-vestido/ bem calçado estudado e divertido, cujo habitat é o centro, espaço de ação onde as regras são ditadas/ seguidas temperadas mastigadas/ deglutidas ruminadas e expelidas, em contraponto à periferia, espaço oposto e sem regras fixas onde habita o outro, poeta periférico, uma estranha figura cicatrizada. Ambos se apresentam aqui como relação que só se dá a partir de um distanciamento, mas ainda assim uma relação por si só, que evoca os antagonismos irreconciliáveis, as opostas idiossincrasias, e alerta para o perigo das antinomias.
(do alto dessa estante
quarenta séculos
vos sustentam)
O olhar do poeta central, é certo, percebe o periférico com viés de inferioridade, olhando-o de cima, enquanto ao periférico o central não passa de um beletrista cheio de si. Deduz-se a mensagem inicial do livro a partir daqui: ao poeta é preciso descer dos pedestais, sem que com isto deixe para trás sua nobre bagagem; é necessário que a mantenha junto de si, mas se deixe tocar também pelas impurezas do mundo. E não se trata de uma simples inversão do papel do intelectual na cultura da poesia, mas sim de uma conversão na sua aplicação – já que a erudição não é rejeitada em si, mas apenas em sua tendência ao habitar de palácios de cristal.
Este livro ressoa como uma proposta de derrubada das antissépticas redomas da arte. A aversão à poesia para-burguês-ver, ao que diversos poemas apontam para esse sentimento, talvez represente toda uma tendência geral da época, de ruptura de limites entre a arte culta e a arte popular e de massa, entre a experimentação livre e o desejo ardente de comunicar-se. Toda e qualquer similaridade com as obras de alguns nomes da Geração Mimeógrafo não deve ser encarada como um revival, nem atrelada a um prefixo neo, mas encarada como a colheita de sementes tardias, quase esquecidas em solo árido, ainda em tempo hábil para frutos. Trata-se de uma safra muito bem-vinda.
Assim como na mencionada Geração Mimeógrafo, onde os poetas se valiam de meios alternativos de circulação e de distribuição de suas obras como forma de romper com o elitista mercado editorial da época, Labes custeou os exemplares de “O Poeta Periférico” através de uma ação de financiamento coletivo virtual. Ações como esta têm sido cada vez mais frequentes. Também a poesia de Labes abrolha o cerne da periferia, bem como retoma a linguagem coloquial com traços de oralidade, que nos anos setenta representaram uma ruptura estética e de conteúdo em toda uma tradição de poesia.
O leitor de Labes tem diante de si o trabalho mais complexo do autor até então. De um lado, o diálogo intertextual não-saudosista com a tradição literária (com menções diretas a Cruz & Sousa e aparições auráticas do gauche Carlos); de outro, certo cansaço da vanguarda que desemboca na postura crítica. Isto basta, por si só, para situá-lo numa posição de poeta pós-moderno. E tomo aqui a pós-modernidade como ponto de convergência onde passado e futuro se fundem, onde cai por terra o conceito romântico de originalidade para entrar em cena a recuperação do já-havido. Tudo já foi feito, tudo já foi dito na era da citação e da tradução.
quantos centros formam um avesso formam um todo?
quantos avessos formam um avesso formam o novo?
“O MUNDO FICOU TÃO GRANDE
QUE A GENTE NEM SE ENCONTRA MAIS”
Se a cidade de hoje é o labirinto sonhado pelos povos antigos, à imagem de um mapa concebido para se perder, então a construção poética, projetada sobre a urbe, é o novelo que se desenrola para decidir os caminhos a se seguir entre os corredores de pedra.
Pensado como leitor da cidade, o poeta da ágora é um colecionador de aproximações e de distâncias. Edifícios e colunas de concreto são suas estantes; os habitantes da urbe são como fascículos ao alcance das mãos.
Pensada como texto, e escrita pelo homem, a cidade pode ser vista como um palimpsesto – suas significações foram raspadas à pedra para que se sobrescrevessem outras, e outras, e outras ainda – de modo que, quem a lê (em geral, o poeta) enxerga também as camadas de texto anteriores às camadas mais aparentes.
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Quanto a mim, entre central e periférico, vou de penetra na festa dos outros.