Uma resenha de Maria Elizabete Nascimento de Oliveira
Maria Elizabete Nascimento de Oliveira é doutora em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT, tese intitulada: Dunga Rodrigues: uma jornalista no território da ficção (2019). Mestre em educação pela Universidade Federal de Mato Grosso/UFMT com a pesquisa que originou o livro: Educação Ambiental e Manoel de Barros: diálogos poéticos, Editora Paulinas/SP-2012. Especialista em Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas pela Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT-Campus de Tangará da Serra (2001). Graduada em Letras/UNEMAT-Cáceres (1998). Professora da Rede Pública de Ensino de Mato Grosso desde 2002. No momento, atuando como professora formadora da área da linguagem no Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica/CEFAPRO-Cáceres-MT. Membro do Projeto de Pesquisa: No Centro-Oeste da “MARGEM”: Cem Anos de Relações entre Cultura e Literatura em Mato Grosso (1916-2016).
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A figura feminina em poesia-mosaico, na obra Dona, de Luciene Carvalho
Maria Elizabete Nascimento de Oliveira¹
Almerinda Auxiliadora de Souza²
RESUMO
Este texto tem como objetivo apresentar a figura feminina na coletânea de poesia da obra Dona (2018), de Luciene Carvalho. Para tanto, apresentamos o arquétipo da obra com as partes que intitulam-se: espelho, caixa de Pandora, chave, semáforo, mandala, a fim de legitimar nossa reflexão de que na configuração estética e estrutural desta produção está intrínseca a imagem da mulher como poesia-mosaico, uma representação de que esta poesia-mulher e/ou esta mulher-poesia se faz nas partes que se integram em unidade. Desta mesma forma a poesia é o próprio eu-poemático representado pelas suas vivências e pela imagem do duplo que desfoca o sentido, dependendo sempre da sua condição existencial. No fértil diálogo entre o feminino, a poesia e os símbolos constituídos pelas/nas memórias desta poeta contemporânea, solicitamos as contribuições de Ecléa Bosi (2004), Jean Chevalier & Alain Gheerbrant (2005), Nelly Novaes Coelho (1993), entre outros autores que escrevem sobre os interstícios da linguagem e a emblemática imagem da mulher.
Palavras-chave: Literatura; Dona; Luciene Carvalho; Figura feminina; História.
Sua memória corre fluída no texto, embaralhada nos tempos vividos e se fundem na emoção do recordar/viver. Saberes e sabores dos mais diversos se fundem em sua escrita seivosa. Escrita sinuosa de contador-de-histórias que vê a aventura humana enredada em seus mil caminhos e veredas que se cruzam, entrelaçam e separam. Nenhuma vida existe por si só, mas enovelada, determinada, abortada ou frutificada por outras vidas que a ela estão presas por invisíveis mas irredutíveis fios.
Nelly Novaes Coelho, 1993, p.320
Iniciamos esta abordagem com a epígrafe acima por acreditar que esta traz subsídios às reflexões que elaboramos sobre a figura feminina, tendo como referência a obra Dona (2018), de Luciene Carvalho, que exibe uma coletânea de poesia distribuída em partes que se intitulam: Espelho, Caixa de pandora, Chave, Semáforo e Mandala. Trata-se da representação do reflexo e/ou como diria Mário Quintana (1999), das reflexões das mulheres próximas às cinco décadas, cheia de mistérios, mas o que seria das almas se não fossem os mistérios?³. Muitas vezes, mulheres invisíveis à sociedade contemporânea, mas serenas, plenas e capazes de compreender o seu fado, dona de si, mas, também, sabedora de suas incompletudes.
Justificamos o título A figura feminina em poesia-mosaico a partir da ideia de que há na obra “uma concepção totalizante que, consciente ou inconscientemente, a escritora pôs em movimento” para nos fazer compreender a dimensão existencial da figura feminina “na totalidade orgânica de seus textos” (COELHO, 1993, p. 320). São partes que se interagem e apontam para a inconclusão do ser que busca continuamente a completude por meio da “leitura” de suas vivências e atitudes cotidianas, lugar onde o leitor é conduzido aos labirintos da figura feminina, como na biblioteca de Jorge Luís Borges ou ainda como em seu poema Elogio da sombra4, quando o eu poemático anuncia: “Meus amigos não têm rosto,/as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,/as esquinas podem ser outras,/não há letras nas páginas dos livros./Tudo isso deveria atemorizar-me,/mas é um deleite, um retorno”. Em outro tempo histórico, lendo de outra forma, mas na permanência indiscutível de preconceitos e estereótipos calcado por uma sociedade de caráter eminentemente patriarcal.
O bordado dos labirintos de Dona inicia já nos agradecimentos feito pela autora na híbrida construção de sua identidade e/ou de pessoas com as quais conviveu. Momento em que notamos o que Valderez (2018) expõe, percepção que dialoga com o que nos disse Jorge Luís Borges, sobre o poder da poesia de Luciene, escrita pela/na “[…] experiência de seu corpo afetado pelas forças do mundo mostrando sua abertura para novos encontros que exigem da poeta um olhar e um sentir atentos às excitações que a afetam e que cabem a ela selecionar, evitar, acolher” (CARVALHO, 2018, p. 12). Diríamos que a poesia de Carvalho se faz na instabilidade existencial que, mesmo às vezes tratando das fronteiras entre as fases da vida, as apresentam em circularidade, sem fronteira, dialogando com a força imensurável da memória de seus ancestrais e daqueles com os quais continua a conviver, no entanto, incentiva protagonismo.
A poeta exibe uma mulher que rompe e/ou que ultrapassa a figura feminina que, apenas, se olha no espelho, mas que, irrompendo o próprio reflexo se permite ser outras, sendo ela mesma, experienciando novas aventuras na arte do viver. Lugar onde estabelece uma identidade – dona, mas dentro de um discurso ancorado na linguagem simbólica de quem sabe que trata-se de um identificação carregada de incertezas ancestrais, em um mundo conhecido, mas que traz pela história a gênese do desequilíbrio: “deram pra mim/o lugar estranho/do rebanho/e, ainda assim,/ sempre esteve certo/que alguma estaria/ali, por perto:/janelas, donas,/matronas,/e eu, mosaico-espelho delas” (CARVALHO, 2008, p. 126), construída a partir das partes, contribuições, que cada mulher lhe ofereceu.
A apresentação da obra é produzida por outra poeta que escreve em Mato Grosso, Marília Beatriz Figueiredo Leite, fundadora da Universidade Federal de Mato Grosso/UFMT e, tal qual a autora, poeta e membro da Academia Mato-Grossense de Letras/AML. Em seu curto, mas belíssimo texto, Leite ressalta o duplo que coexiste no ser humano, destacando a personalidade materna-amorosa de Luciene Carvalho e o poder humanizador da literatura que ao falar de outros, fala de nós, da peculiaridade que nos torna diferente e, ao mesmo tempo, da fundura física que nos torna iguais. Assim, ressaltamos a instabilidade do reflexo no espelho, nas palavras de Leite ao enfatizar que:
É necessário ler Dona em seu espírito e com a literalidade expressa que diz muito sem revelar tudo o que cala. Nas fimbrias em que surge o rio Cuiabá, os cajus, as mangas, as chuvas ressaltam que cada letra, cada palavra, cada verso são tesouras recortando tesouras
(LEITE, 2008, p.).
Com isto sendo dito, a poesia de Luciene se abre à imaginação do leitor, mas ao mesmo tempo o coloca dentro da voz contemporânea de uma mulher que soube ler as experiências e trabalhar artisticamente com suas reminiscências, devolvendo-nos suas memórias recheadas por um elemento ficcional que conforme alerta Nelly Novaes Coelho rompe “audaciosamente com a antiga imagem e, sem encontrar a nova, assumem uma paradoxal multiplicidade de identidades conflitantes” (COELHO, 1993, p. 19). São imagens que dialogam entre si e mostram a unidade na fragmentação, sem deixar de lado a noção de pertencimento, haja vista que em seus escritos enfaticamente fala de Cuiabá, do seu lugar de vivência, escrita e sonhos que a ancora em seus “delírios verbais” (BARROS, 2001).
A obra inicia com dois textos de apresentação, como já mencionados, o primeiro foi escrito por Marília Beatriz com o título: O que é a poética de DONA? O segundo por Maurília Valderez, professora e leitora de Filosofia, intitulado: O que pode a poesia? Duas indagações que, embora sentidas e interpretadas pelas autoras, extravasam os sentidos destacados. Acreditamos que neste aspecto reside o poder avassalador da literatura que permite extrapolar as margens do texto, ir além do outro e atingir os sentimentos recônditos da linguagem e do ser, aqueles que sendo iguais, são também diferentes porque sentidos por outro e/ou outra, em outro lugar e sob outra ótica social e histórica. Luciene, Marília, Maurilia questionam, correspondem; mas não detém as águas de Dona que escorrem pelas veias do eu-poemático. O húmus poético de Luciene é o ensaio profundo e particular das vivências de uma mulher que registrou pela poesia a inexorável saga da figura feminina e seu mundo de contradições e similaridades: “[…]Eu vi/ela enfrentando/o peso das sacolas da Avon […]minhas mãos/parecem com as de minha mãe;/ambas somos tecelãs:/ela de amor,/eu de poesia./vida, morte…/tudo torna mais forte/nossa parceria (CARVALHO, 2008, p. 28).
A coragem em ousar uma terceira margem, no caso, do amor e da poesia, lhes propicia certa liberdade à condição preconceituosa e insubmissa que foi imputada às mulheres, portanto, a travessia nunca é ofertada, mas conquistada: “pavoneiam ter devorado homens,/sem terem vivido/o amor com nenhum./Ó Deus,/ tenha compaixão das meninas!/São todas atrizes/da sua própria história” (CARVALHO, 2009, p. 29). Neste caso, o eu-poemático clama pela condição submissa das meninas que não ousam o mergulho em suas próprias águas porque, às vezes, por desconhecimento e imaturidade aceitam com docilidade a condição servil a que estão/foram expostas: “elas choram pelos pais/ aos 38/como choravam aos 6” (ibidem, p.29). Ou então, para enfatizar que os sentimentos não envelhecem, eles permanecem latentes, independentemente da idade e/ou dos tempos de vida.
Antes de expor seus poemas, Luciene Carvalho apresenta ainda em sua obra Dona, Ligia da Silva como poeta cuiabana, trazendo o texto Cultura da dor, que representa as dores da mulher inserida em uma sociedade patriarcal e que, culturalmente, oprimiu suas vozes, sentimentos e desejos, herança que insiste em sobreviver na contemporaneidade: “converso com as manas;/a mesma dor vivida lá em casa/também parte na porta delas”, assim versa que é preciso praticar outra forma de agir-mulher, para conquistar a liberdade, portanto, texto que dialoga com os sentidos que exalam da poesia de Luciene. Aqui, aplaudimos a iniciativa da autora em trazer na sua obra, o texto de uma escritora ainda desconhecida pela crítica, talvez uma maneira de contribuir com o protagonismo de outra mulher no campo literário.
A primeira parte da obra, denominada Espelho, coloca o eu-poemático diante de si, recortando fatos e vivências que sinalizam a maturidade da mulher, a fim de refletir a nova condição imposta nas marcas deixadas pelo tempo “[…] eu, já vejo as tintas dos cinquenta. / Entretanto, as divergências tem dialogado.
/e vamos divergindo lado a lado, /construindo inéditas vivências” (CARVALHO, 2018, p. 33). Nessa vertente, Carvalho apresenta a identidade de ‘senhoras’, de ‘invisíveis’, de ‘velhas’ e que por não terem lugar definido, se hibernam e se prostram diante das transformações do corpo, recolhendo em sua insignificância social e reaprendendo a olhar-se: “Eles não saberão/das horas de medo/dos olhares prolongados/pro espelho/em segredo” (CARVALHO, 2018, p. 26). Neste sentido, Chevalier e Gheerbrant (2015, p. 396), destacam que:
O espelho não tem como única função refletir uma imagem; tornando-se a alma um espelho perfeito, ela participa da imagem e, através dessa participação, passa por uma transformação. Existe, portanto, uma configuração entre o sujeito contemplado e o espelho que o contempla. A alma termina por participar da própria beleza à qual se abre.
Os autores, tanto quando Marília Beatriz, destacam a instabilidade do reflexo. Ao se deparar com ele no espelho, o ser aprofunda a própria imagem a partir das referências ancestrais e socioculturais, portanto, a figura vista depende do expectador. Isto funda a ideia de que “toda mudança estrutural em qualquer sistema social depende visceralmente de mudanças profundas na consciência ou mentalidade de cada indivíduo” (COELHO, 1991). É ele quem pode determinar a condição de expectador ou protagonista, obviamente, conforme diz Nelly Novaes coelho é uma forma de compreender os limites das contradições de uma história calcada em regimes socioculturais e históricos diversos e, muitas vezes, excludentes.
Como o reflexo na água, a imagem segunda não traz a nitidez da primeira, deixando o eu-poemático confuso frente às transformações: “[…] sou espectadora de mim mesma/ como se soubesse/outra em mim/que há de surgir/[…] ela já está aqui/em mim,/mas não mostra a cara/[…] Quase enxergo ela, mas depois não a vejo”. São, portanto, os conflitos de quem, com o avançar dos anos, visualiza a chegada de outro momento que precisa ser vivido, período de transição, incompreendido pelo lugar em que se encontra, nem jovem, nem velha.
O reflexo no espelho, assim, é mais que o corpo físico da primeira imagem, é a representação das ambiguidades da alma que só podem ser lidas se mergulhados nas próprias águas, interioridade. Ao mirar-se o eu-poemático é capaz de mobilizar os pedaços que o constituíram enquanto ser humano e, de certo modo, juntá-los pela memória. Neste sentido, é importante contribuir com as proposições de Ecléa Bosi (2004), ao dizer que a memória é sempre ficção, vem carregada de fios invisíveis, imaginários que permite a reconstituição da história, independentemente das diversas manifestações da escrita, quer seja pela poesia, quer seja pela prosa e/ou outros gêneros discursivos. Esta percepção nos leva, por exemplo, aos contos do moçambicano Mia Couto, especialmente, em O fio das missangas (2009), onde a autoestima das mulheres é recuperada pelo ato de narrar, como se pela fala pudessem se libertar da opressão em que viviam. Afinal, pela oralidade, pelo ato de contar história, a figura feminina manifesta seus sentimentos em relação ao lugar em que ocupa. São histórias particulares que se unem em uma história plural, tal qual os poemas de Luciene Carvalho.
Em Caixa de Pandora, a segunda parte, há uma união dos vários conflitos vivenciados pela mulher, suas faltas e excessos: o ciclo menstrual, o colágeno, os medos, o abandono, o luto, os afazeres domésticos, o cansaço, o abismo, a espera. Neste momento, apresenta as memórias do que apenas viu passar pela janela, “Descobri um novo jeito/de encarar o espelho:/ por partes, na maquiagem;/ por inteiro, /uso luz/que vem da telha” (CARVALHO, 2018, p.54), sem conseguir protagonizar seus desejos “[…] aí, em certa tarde/ me sinto cansada;/ creio já ser tarde/pra ardores/de mulher apaixonada” (CARVALHO, 2018, p. 55). Assim, Carvalho destaca o quanto a mulher, na fase de transição entre a maturidade e a velhice, vai sendo ignorada pela sociedade como se não fosse mais passível de sentimentos, perde a utilidade e o direito de sonhar “como se ela cometesse um erro/ que por culpa exclusiva dela/a maldição se desse;/[…] como se o tempo no corpo/fosse um diagnóstico/degradante e terminal (CARVALHO, 2018, p. 54). Ou seja, na imagem da Pandora há a representação dos males do mundo que contamina o ser humano, levando-o à loucura.
De acordo com Chevalier e Gheerbrant (2015), Pandora simboliza os males da humanidade que vêm por intermédio da figura feminina. Segundo a lenda, o homem recebeu os benefícios do fogo, contra as vontades dos deuses, e os malefícios da mulher, contra sua vontade, tendo também, o fogo relação íntima com o amor que queima e que provoca o sofrimento. Lembramos aqui de Camões ao poetizar que “amor é fogo que arde sem se ver”. Assim, “Pandora simboliza o fogo dos desejos que causam a desgraça dos homens” (ibidem, 2015, p. 681). Mas, esta “desgraça” tem idade e referência.
O eu-poemático fortalece nesta parte a reflexão sobre a submissão da mulher e sua incapacidade de lutar contra a maré “Dona Maria acorda,/ faz café,/ arruma o pão,/gruda o bucho no fogão;/[…] Afoga os sonhos/no ensopado de acém/[…] Dona Maria/não tem carta de alforria./Tem marido, filho, neto,/ tem o nome/e tem azia”. A rotina da vida corriqueira da maioria das mulheres a levam a se conformar com o cotidiano da vida, sem tentativa de luta a favor de si, pela sua liberdade e emancipação. É como se à mulher fosse dado prazo de validade, que com o tempo sua utilidade fosse mudando de lugar e de referência.
Na terceira parte da obra, é como se os guardados e/ou badulaques retomassem seu lugar pela memória e servissem de chave para libertar-se. O primeiro poema é intitulado Relicário, neste o eu-poemático fala das memórias e do amor pela literatura, pelas coisas e pessoas que contribuíram para constituir- se em palavras-poesia: “Guardarei em meu relicário/todos os medos/que compus/minha vida inteira/[…] descobri que tudo dito aqui/guardarei em meu relicário,/pois meu relicário é a poesia” (CARVALHO, 2018, 67). Portanto, eis a chave de si para abrir-se ao mundo, brincando com a dualidade da palavra crônica enquanto substantivo (crônicas de sua vida) e adjetivo (doenças crônicas da mãe), discorre sobre as temporalidades humanas, as saudades do vivido e do sonhado e vai do erotismo que pulsa em suas vísceras a certa liberdade conduzida.
O simbolismo da chave está, evidentemente, relacionado com o seu duplo papel de abertura e fechamento. […]no plano esotérico possuir a chave significa ter sido iniciado. Indica não só a entrada num lugar, cidade ou casa, mas acesso a um estado, moradia espiritual, ou grau iniciático.
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 232-233).
E em arte-palavra deixa à poesia o seu legado, como doação-revelação do que foi ou não foi, ou está sendo: “quase tudo que vivi/foi publicado em versos./continuo propensa ao complexo,/ao inusitado/que choca quando vivo/ e quando é revelado./Que chegue aos cinquenta!/Dou-os pra poeta” (CARVALHO, 2018, p.75). Há nestes versos um quê de imprecisão, como se dissesse que o real não é descritível, nas palavras de Adauto Novaes (2005, p.31), seria que “o mundo não cabe no mundo, o real não cabe no concebível”, desta forma melhor entrega-lo ao universo da ficção. Enquanto em caixa de Pandora, a mulher recolhe-se para dentro de si, revisitando seus conflitos existenciais; em chave pela poesia é lhe dado a abertura para projetar-se ao exterior, a oportunidade de se reconstituir pela escrita, pelos devaneios.
Em Semáforo, quarta parte da obra, é como se o eu-poemático já soubesse a direção. De poder de sua arma, a poesia, percebesse quem e o que é, portanto, poetiza sua condição de ser proletário, o seu lugar, seu território e sua gente, brincando com as coisas miúdas e momentos fugazes e inefáveis que mesmo sem saber foi lhe mostrando quem é. O cabelo blackpower, os momentos com e sem os pais, o amor que chega sem aviso e lembra Carlos Drumonnd de Andrade “e a gente lembra/as sem-razões do nosso amor;/e a gente cresce -/ como gente,/ como amantes./ vamos seguindo adiante/sabendo que se merece (CARVALHO, 2018, p. 107); o poder dos elementos da natureza sobre a poesia- vida “eu sou é da lua/com céu por estradas” (CARVALHO, 208, p. 100); o silêncio conquistado com as marcas e nuances vividas, no jogo simbólico da palavra Semáforo ela demonstra a reconstituição do seu caminho.
A poesia sendo direção é, também, indireção, “[…] minha poesia,/minha dona,/meu neon,/minha persona:/semáforo e contramão” (CARVALHO, 2018, p.111). Assim, há a representação da vida em suas descontinuidades e rupturas. As palavras assumem “as rédeas” do viver, e apresentam a analogia de que a vida não segue a estrutura linear que, paulatinamente nos é apresentada pelo arcabouço social, excludente e desumano que teima em apresentar uma imagem unilateral do mundo.
Na quinta parte intitulada Mandala, há uma simbologia presente no vocábulo casa já no poema que inicia “Minha casa/precisa de reforma/e muito,/ embora seja ela/o endereço da minha paz” (CARVALHO, 2018, p. 115), como se a casa que comporta todos os pesares e amores fosse o próprio eu-poemático “[…] a minha casa precisa/ de reformas e é urgente./Precisa aprender/a usar cera quente na virilha,/precisa entender que é a dona/e não a filha/do casarão principal/minha casa precisa aceitar/viver protagonismo visceral” (CARVALHO, 2018, p. 115). Estes versos conduzem para o fechamento da obra. Os poemas que seguem versam sobre a visão do eu-poemático, a provocativa percepção do feminismo e do machismo social “[…] Eu acho/que o machismo/ já matou o macho (CARVALHO, 2018, p.119), bem como da aceitação do amor que chegou sem aviso e preencheu os vazios, restituindo a confiança e permitindo-lhe ir na contramão do que se espera de uma senhora “[…] A certeza/ é que você é mais que beleza/ou juventude;/você é atitude/e eu mereço” (CARVALHO, 2018, p. 124).
Os versos denotam que à Dona é atribuído certos poderes de sedução e erotismo que para a senhora foram sufocados pelas convenções sociais, restando ao feminino lutar contra a corrente, desenhando o protagonismo tão desejado. Esta atitude liberta não só o eu-poemático, mas as gerações que viveram e as que estão por viver. Com a poesia Herança fecha-se a coletânea e revela-se a identidade plural de Dona: “[…] mesmo as que foram/não se foram não/vivem em mim,/vivem através de mim, que as tenho tatuadas na memória./pelo sangue/pelo convívio/pela escola/meu atalho de ir pra vida. Sou colcha de retalhos” (CARVALHO, 2018, p. 125). Neste sentido, é importante compreender a simbologia do mandala descrito por Chevalier e Gheerbrant (2015, p. 586), de que este “possui uma eficácia dupla conservar a ordem psíquica, se ela já existe, restabelecê-la, se desapareceu”.
Dona é a expressão e as nuances das mulheres que sinalizaram o caminho do eu-poemático e, este por sua vez, com sua identidade plural e, ao mesmo tempo singular, se abrem a outras donas, pelo/com o seu poderoso veículo de transporte, a poesia, o seu corpo-poema. É impossível não visualizar as imagens de outras produções da autora plasmando nesta obra, sejam as estações do ano tão bem trabalhadas em Ladra de Flores (2012), sejam os sentimentos e os conflitos expostos em Insânia (2009). Em cinco partes, que se unem como se em um mosaico, Dona é uma colcha de retalhos, como confirma o eu-poemático, retalhos de poesia com fios de matéria e espírito. Isto nos coloca, leitores, na condição de viajores, em um trajeto já apontado, mas recheado de enigmas, arestas e imprecisões.
A fim de contribuição no processo do criar de Luciene Carvalho, ofertamos ainda duas das inúmeras definições de mandala apresentada por Chevalier e Gheerbrant (2015). Para os autores quem consegue contemplar um mandala, símbolo de integração, já alcançou a serenidade e “o sentimento de que a vida reencontrou seu sentido e sua ordem”:
O mandala, pela magia dos seus símbolos, é ao mesmo tempo a imagem e o motor da ascensão espiritual, que procede através de uma interiorização cada vez mais elevada da vida e através de uma concentração progressiva do múltiplo no uno: o eu reintegrado no todo, o todo reintegrado no eu. […] o mandala possui uma eficácia dupla: conservar a ordem psíquica, se ela já existe, restabelecê-la, se desapareceu. Neste último caso, exerce uma função estimulante e criadora
(CHEVALIER & GHEERBRANT, grifo do autor, 2015, p. 586).
A leitura atenta e amorosa da Dona nos guia pelos labirintos do ser, envolve-nos a retomar à gênese original, a fim de compreender que “poesia e mundo se relacionam por escaramuças […] reciprocamente excludentes e includentes, se contendo e se negando, se espelhando e se enganando […] visto a partir da poesia, o mundo pertence e não se pertence a si próprio” (NOVAES, 2008, p.35) e, também, desta maneira que se apresenta o eu-poemático, por meio do efeito inclusão excludente, para usar o termo do autor, que legitima sua face híbrida. Dona incita à reflexão de que as descontinuidades existem dentro do próprio ser humano.
A simbologia dos vocábulos que abrem em partes Dona, nos leva a representação do ser duplo, porém em uma unidade criada na perspectiva do múltiplo que nos remete à representação de pedaços de retalhos que nas diferentes tonalidades se juntam para formar a unidade da colcha, aqui a Dona feita de pedaços de histórias como em um mosaico que por fim transforma-se no Mandala. Cada um dos elementos que abre as partes da obra, apresenta uma perspectiva na qual é possível perceber variantes do duplo que se movem de acordo com as fases vividas pelo eu-poemático.
Não se trata apenas de um reflexo, mas de um jogo labiríntico da existência humana que só pela palavra é capaz de se desvelar ao eu-poemático que carrega suas sutilezas estéticas, mas que estas por sua vez brincam com possibilidades interpretativas do leitor. Ou seja, este desvelamento não tem limites ao cair em outras mãos que, também coloca em jogo, suas referências poéticas e existenciais, levando-nos às sábias palavras do poeta Carlos Drumonnd de Andrade:
Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma
Tem mil faces secretas sob a face neutra
E te pergunta, sem interesse pela resposta, Pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Nos poemas se inscrevem outras perguntas que nem mesmo o eu- poemático talvez tivesse a intenção de participar. Trata-se, das faces secretas da linguagem, do enigma que apenas a poética é capaz de prenunciar. Esta aponta para um reflexo multiplicador de imagens que gestam outras imagens e assim permanecem atuais porque vivas e movimentadas pela vivência histórica e pela memória, tanto do escritor quanto do leitor.
Os objetos/instrumentos abarcam a representatividade de que é preciso uma alusão material, objetiva para que o leitor possa entrar na esfera subjetiva e que a imagem concreta perde a própria referência ao ser compreendida dentro da esfera outra. Tal percepção permite-nos dizer que ontologicamente não se pode compreender o múltiplo que existe no humano e que ao representar pela escrita o reflexo de si, o eu-poemático traz apenas um recorte do que poderia ser dentro de um universo multiplicador que é o mundo, que é a representação de um mundo gerado no universo ficcional.
O vocábulo dona, por si, no contexto apresentado por Carvalho, já traz o duplo, dona-mulher, dona-poesia. Ora ou outra os poemas nos levam à reflexão de que dona é a própria poesia e que, em ambas que se tornam uno está inscrita a pluralidade que coexiste em sua entranha. Como diz Ernst Bloch (2005, p. 115) “em nenhum lugar o olhar interior ilumina de forma homogênea. Ele economiza luz, clareando apenas alguns espaços dentro de nós”. Assim, Dona é um reflexo do que ela é capaz e quer nos mostrar. Ou um reflexo do particular e complexo pluriverso feminino a partir das experiências múltiplas e multiplicadoras sobre a condição da mulher na vida contemporânea porque a dona “Sangra,/ pra lembrar/ que o sangue lunar/ de todas as fêmeas juntas/ mancha o sol/ e toda a terra inunda”.
Trazendo novamente o escritor moçambicano Mia Couto (2009) para o diálogo e não negando nosso interesse de apresentar, posteriormente, uma análise comparatista mais incisiva entre Dona e o fio das missangas, finalizamos por ora, dizendo que: “A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as missangas”. Neste caso específico, da obra Dona, Luciene Carvalho oferta o fio, mas representa também, o colorido de muitas missangas.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Rio de Janeiro: EduUerj/Contraponto, 2005.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.
CARVALHO, Luciene. Dona. Cuiabá: Carlini&Caniato, 2018.
. Ladra de Flores. Cuiabá: Carlini&Caniato, 2012.
. Insânia. Cuiabá: Carlini&Caniato, 2009.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.
COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras,2009.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993.
NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
XAVIER. Elódia. Tudo no feminino: a mulher e a narrativa brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.
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¹ Doutora em Estudos Literários pela UNEMAT/Universidade do Estado de Mato Grosso.
² Mestre em Geografia pela UNEMAT.
³ QUINTANA, Mario. Agenda poética. São Paulo: editora Globo, 1999.
⁴ https://www.pensador.com/poemas_de_jorge_luis_borges/ Acesso em 27.07.2019 às 11h20.
jocineide catarina maciel de souza
O olhar atento de Maria Elizabete nos faz percorrer as escritas de Luciene Carvalho juntando as peças de mosaico em forma de mulher(es). Cada detalhe apresentado nesse texto torna ainda mais prazeroso o ato de ler… Mato grosso vive ATUALMENTE um momento ímpar de muita produção literária, mesmo todo o conjunto político social do país tentando apagar/negar a arte. Parabéns Luciene Carvalho, Marilia Beatriz, Marta Helena COCCO, Lucinda Persona, Divanize Carbonieri, CRistina Campos e todas mulheres que compõem esse mosaico da produção literária do/no nosso EStado. Obrigada Maria Elizabete pelo prazer em ler seu texto.
mireni de oliveira costa silva
Lendo esse texto de Maria Elizabete onde ela aborda com tanta clareza e amorosidade as entranhas do Livro Dona, de Luciene Carvalho, me fez recordar da história de Frida Khalo, mulher empoderada, à frente de seu tempo. e, hoje, percebo que existem muitas Fridas que habitam em muitas mulheres pelas bandas de cá, em Mato Grosso, em Cáceres, parabéns pelas belas palavras, nos encorajam a nos (re)conhecer enquanto mulheres que lutam e trabalham por dias muito melhores para todas, sejam nas letras, nas lidas domésticas, nas ruas, no trabalho, onde for, lá terá uma Luciene, uma Maria Elizabete, uma Almerinda e tantas outras dispostas a enfrentar e mudar o mundo, o seu mundo e torná-lo mais leve, mais habitável e mais cheio de cor e amor.