Uma resenha de Marli Walker
Marli Walker é doutora em Literatura e Práticas Sociais (UnB/2013). Publicou os livros de poemas Pó de serra (2006/2017 2ª ed), Águas de encantação (2009) e Apesar do amor (2016). Publicou ainda Inferno e paraíso na poética de Adriane Rocha (2009), dissertação de mestrado. Em coautoria com outros autores, publicou Vozes femininas (2008); Cultura e identidades: discursos (2007); Nossas vozes, nosso chão: antologia poética comentada v.I (2011), v.II (2014) e v.III (2018); Tópicos de leitura: literatura e contexto (2011), Palavra de mulher: Literatura feminina em Mato Grosso – século XIX (2015), O tom e o espaço da lírica feminina em Mato Grosso no decorrer de três séculos (2016). É mãe de Wilson Júnior e avó de Giovana, Isabel e Isaac. É professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso, com pesquisa na área da escrita feminina em Mato Grosso. É pesquisadora do Grupo de Estudos em Ensino de Língua e Literatura (GEELLI – IFMT) e da Associação Nacional de pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), no GT “A Mulher na Literatura”. Acredita que a Educação é o único caminho seguro para transformar a vida das pessoas.
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Lucinda Persona, a flor Sempre-viva do Cerrado
O passo do instante (2019) é o novo livro de poemas de Lucinda Persona, poeta brasileira e, para nós de cá, a grande Dama da poesia escrita em Mato Grosso. O volume com 60 poemas, divididos em duas partes, “Sobrevivências” (22 textos) e “Celebrações” (38 textos), chega encapado com imagem da belíssima obra “Pepalantus”, de Regina Pena. A delicada espécie do cerrado brasileiro, popularmente conhecida como Sempre-viva, apresenta um crescimento lento e a floração termina o ciclo da planta. É uma flor que mantém sua beleza, mesmo depois de colhida. Recortes das imagens da capa e contracapa são expostos em detalhes no interior do livro, como que aproximando o leitor da experiência fruitiva, puxando-o, capturando-o para dentro do universo poético.
A obra vem dedicada à memória do “filho, que em sua vida curta foi a própria encarnação do instante”. As flores e a poesia, entre sobrevivências e celebrações, constituem o lastro que sustém a poeta e a movem em sucessivos e contínuos versos, poemas, livros (anteriores) inteiros na inesgotável exploração de um mesmo tema: o tempo, este passageiro irreversível contra o qual nada se pode que não seja escrever para sobreviver e celebrar.
Sobre a apresentação de Raquel Naveira, destaco o subtítulo “a poesia outonal de Lucinda Persona”, sentença que antecipa ao leitor as sobrevivências e celebrações a serem reveladas no decorrer dos poemas. A resignação do outono é uma lição premente aos que desejam resistir e prolongar o Passo do instante.
Seleciono, então, a teoria necessária para amparar os apontamentos desta resenha. Separo o bom e velho Bosi (O ser e o tempo da poesia), escolha óbvia ante o tema da obra; Bachelard (A poética do espaço), de onde penso extrair auxílio para iluminar a fenomenologia da casa e da janela, espaços caros à poeta, sempre presentes de uma forma ou outra e, por fim, Octavio Paz (O arco e a lira – a revelação poética) para acentuar a marca da temporalidade, o ritmo, a repetição criadora que parece ser o motivo constante em Persona.
Qual será, afinal, o motivo da flor Sempre-viva neste Passo do instante? Entre “Gênese”, primeiro poema, e “Dúvida genética”, poema que fecha a obra, está a Sempre-viva (Pepalantus). Ouso dizer que a flor e a poesia, desde o primeiro até o último verso, encerram em si o motivo de todos os passos e instantes da poeta. Lucinda celebra o outono em estado de genuína renovação e reiterada permanência na estação poética dos dias, das noites, de todas as horas da vida inteira. Este instante soa como o período de aceitação e resignação ante os mistérios inerentes às Sobrevivências e Celebrações.
Considero os poemas “Gênese” e ‘Dúvida poética” os limites que demarcam o início e o fim de uma estação (o motivo da flor), na qual a poeta concebeu uma linha temporal particular neste conjunto de poemas. Nessa parcela de tempo, a questão que lança no último poema, mudando-se a posição/ de um grupo de palavras/ gera-se poesia?, é retórica, é jogo lúdico que remete o leitor de volta ao primeiro poema, “Gênese”, princípio-luz que ilumina todo o conjunto de imagens da obra. Ciente do ofício, é no princípio que Lucinda revela o esforço da criação: raramente um poema corre/ conforme o planejado/ às vezes, morre ainda embrião /…/ desenrolo/ até não poder mais/ o princípio da poesia/ eu gostaria tanto de acertar/ de não ir para a cama tão tarde. A poeta acerta em cheio a disposição da linha do tempo dos poemas, a sequência que divide o livro em duas partes e, assim, aprisiona o passo de cada um dos instantes no ritmo de uma temporalidade possível que só se exprime e se perpetua na poesia.
“Boneca de pano” é um poema para o qual chamo a atenção, quer seja pela beleza da imagem que nos coloca diante da criança brincando com sua boneca de pano, quer seja pela leveza dos versos era como jogar para o céu/ o que eu tinha de mais leve. No breve quadro elaborado por Lucinda, vemos a delicadeza com que a poeta seleciona, junto à memória, o tempo sagrado da infância para nos dizer, ao fim, que a boneca ficou no telhado/ A viver por conta própria. Diz-nos, com essa imagem excepcional, que somos capazes de soltar, libertar para o voo aquilo que temos de mais caro, mais querido e reconhecer que a vida segue, que nem os filhos, nem os amores, nem o instante mais sublime, nada é definitivamente nosso.
Talvez por isso o poema “Folhas caem” encerre em si, de modo tão acentuado, a imagem da ciranda feminina. As mulheres, seres de tantos partos e perdas, de tanta entrega (suas crias vão viver por conta própria!), elas, as mulheres, quando amam/ caem/ desfalecidas/, sejam tão semelhantes às folhas que caem amarelo-tostadas/…/ numa perda programada/ situação normal de outono/ e todas se juntam no chão/ para tirar mais partido/ do seu sentido de grupo. Eis o mistério a se revelar ao passo que seguimos irmanadas por entre tantos mistérios.
“Moldura de ocasião” impressiona pela imagem que se abre aos olhos do leitor, como quem vê, pela janela da poesia, a paisagem interior da poeta como um céu inteiro de possibilidades. Ela diz: a janela que eu tenho/ aberta para fora e para dentro/ não sai de onde está por nada/ e sempre me espera/ com o céu na cara. Se ela dissesse de outro modo, poderia dizer: a poesia está sempre aqui, aberta, à minha espera, e eu cumpro a sina com o céu na cara, porque esse é o meu motivo e o meu eterno instante.
Por isso, “Com todas as letras”, ela sobrevive e encerra a primeira parte da obra assumindo o projeto em cada passada poética, percorrendo os mínimos instante com lucidez e ponderação:
/…/
seguir assim a pequenos passos
ponderando
veredas
reviravoltas
cambalhotas
escrever sem parar, letra por letra
as palavras que estão à espera
(mas dentro de uma força)
como se estivessem nos labirintos
de uma ostra no fundo do mar
e pelo que sejam muitas ou poucas – tais palavras
arrancá-las à faca
agrupá-las (uma ao lado da outra)
para um bem apanhado verso
esperar que possam (no poema)
pender como pérolas
no fio de um colar.
Na segunda parte do livro, as “Celebrações” trazem memórias recentes e a poeta seleciona a imagem de um outubro em “Florença”, na qual o passo do tempo ganha materialidade ao descer por colinas, e acaba por entravar o cortejo: quando chegamos a Florença/ outubro coordenava o mundo/ mas o outono foi o agente provocador/ aquelas folhas espalhadas pelas ruas/ pareciam o comboio de um invisível cadáver /…/ a sombra do tempo descia pelas colinas/ e entrava a passos lentos naquele cortejo. E as folhas amarelas foram levadas como comboio de um invisível cadáver, segundo o seu mistério.
Na sequência, o poema “Tempo favorável” anuncia uma luminosa constatação: é tão bom saber que/ o tempo favorável é agora, sim, pois “Estrelas fervilham” e parece improvável que alguma noite se apaguem. No entanto, o verso seguinte apresenta a consciência de que (nosso destino também deveria ser assim), instaurando ou recobrando a sensatez frente ao instante que se esvai no destino de cada segundo.
A partir daí, volta-se a poeta, poema a poema, passo a passo, ao universo interior. Do céu fervilhando de estrelas para dentro de um “Crustáceo”, como num passo sem volta, até atingir o estágio em que se arvora entre palavras, sílabas e intervalos possíveis ou impossíveis entre elas. O crustáceo vive num reino à parte/ desligado dela/ e de todos os outros seres /…/ Não, ela não poderia digeri-lo assim/ encouraçado feito um crustáceo e cru/ unhas compridas/ pedrinhas no rim/ não poderia digeri-lo assim/ com a alma dobrada/ (a blindagem atingindo o máximo)/ Que trabalho/ sugar-lhe a polpa/ dos esconderijos. Não é fácil adentrar ao universo interior sem que uma certa aflição acompanhe o exercício. A angústia se instaura definitiva no poema “Quem está vivo”, quando a poeta sentencia: só quem está vivo/ vagueia pelas horas e pode atravessar/ sem dar um passo sequer/ a paisagem que vem de dentro.
Eis que ela, a poesia, vem em seu socorro no poema “Tu me observas, ó poesia”, e num gesto de entrega, fragilidade e humanidade, Lucinda recebe, aceita e acolhe o desafio do instante sublime: que difícil equilíbrio/ da poesia em vigília/ a poesia – tal qual o amor/ vigia sempre. Ela o faz, porém, com certa “Queixa”, pois há infinitos poentes/ e este tempo/ impiedosamente curto/ para existir e escrever/ a cada instante/ sobressaltos vários. Então, como uma iluminação, surge o poema “Clarice e as palavras”, no qual a poeta confessa: encontro Clarice/ em certo momento/ quando anunciou o desejo/ de escrever/ com palavras tão agarradas entre si/ de modo que não existam/ intervalos entre elas. E, ao final, a “Dúvida genética”, já mencionada como um jogo lúdico a enlear o leitor nesse passo calculado, a poeta lança a grande questão e a responde no mesmo instante: mudando-se a posição/ de um grupo de palavras/ gera-se poesia? /…/ A resposta que me derem/ é também a minha. Sugiro ao leitor que leia o primeiro poema da obra e veja lá, detalhada, a resposta da poeta. Ela deseja prosseguir, feito animal em busca de alimento, tateando, ou como pássaros bicando cascas, porque a poesia é seu ritmo, sua temporalidade, sua essência, seu passo e seu instante.
Lucinda Persona é a flor Sempre-viva do Cerrado, é o buquet de flores que já nasce pronto a ofertar-se em poesia, neste Passo do instante e sempre, para todos nós.
Cuiabá, noite de outubro, à espera das chuvas.
Marli Walker, professora e poeta (em pleno outono).
P.S.: Os autores mencionados não foram usados no texto por total falta de necessidade de qualquer apoio teórico diante de tamanha poesia.