Uma resenha de Sandra Godinho
Esta resenha de Sandra Godinho é mais uma da série da Livraria do Mulherio, em que autoras cadastradas resenham as obras umas das outras. Dessa vez, o livro resenhado é Passagem estreita (2019) de Divanize Carbonieri.
Sandra Godinho, nascida a 27/07/1960, é professora de Inglês e Mestre em Letras com foco em Estudos da Linguagem. Já participou de várias coletâneas de contos. Recebeu o primeiro lugar no prêmio VIP de literatura (2018) com o conto “Jogo de damas”. “O massacre” ganhou o segundo lugar no Concurso Literário Internacional Palavradeiros 2018. O poder da fé, publicado em 2016, foi seu romance de estreia. A coletânea de contos O olho da Medusa foi lançada em 2017. E Orelha lavada, infância roubada foi o único livro de contos finalista na Maratona Literária (2018) do Carreira Literária, tendo sido também agraciado com a Menção Honrosa no Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019). O verso do reverso (2019) é seu livro mais recente, vencedor do Prêmio Manaus 2019 na categoria livro de contos.
Divanize Carbonieri é doutora em Letras pela USP e professora de literaturas de língua inglesa na UFMT. É autora dos livros de poesia Entraves ( 2017), agraciado com o Prêmio Mato Grosso de Literatura, Grande depósito de bugigangas (2018), selecionado pelo Edital de Fomento à Cultura de Cuiabá, A ossatura do rinoceronte (2020) e Furagem (no prelo), além da coletânea de contos Passagem estreita (2019), selecionada pelo Edital Fundo 2019/Cuiabá 300 anos. No Prêmio Off Flip, foi finalista na categoria poesia nas edições de 2018 e 2019, e segunda colocada na categoria conto na edição de 2019. Integra o Coletivo Literário Maria Taquara, ligado ao Mulherio das Letras – MT.
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Impressões sobre Passagem Estreita (Carlini & Caniato, 2019), de Divanize Carbonieri
Ao terminar de ler o livro de contos Passagem Estreita, de Divanize Carbonieri, uma certeza me acertou: Divanize é o gatilho poético mais rápido do Mato Grosso.* Digo isso porque a autora consegue fazer com as palavras proezas que desafiam a trajetória de personagens em narrativas sensíveis, com a precisão de uma atiradora de primeira qualidade.
Atirar em cheio não é para qualquer um, requer uma expertise de grandes profissionais da pena: primeiro, Divanize se prepara, mirando imagens precisas que nos grudam à mente e que iniciam contos como “Exu”: “Exu passeava pelo mundo com suas pernas desiguais, uma mais curta que a outra. Ele tem um pé lá no outro mundo e um cá na Terra.” E quem não o tem, não é mesmo? Ou então, em “Cérebros”: “Lembro que eu tinha dois cérebros. Ou talvez fossem duas consciências. Uma era mais próxima, mais voltada para as coisas do cotidiano.” Ou em “Subterrâneos”: “O mundo se dividia em dois. Nas camadas subterrâneas, reuniam-se duas castas de pessoas, as que usavam jalecos e estetoscópios e as que viviam nuas”. São imagens que aludem a uma dicotomia pertinente que recebemos com a precisão de quem sabe o que faz, uma dualidade que se encontra nas linhas impressas, mas também nas entrelinhas, no não-dito, na passagem que os leitores contemplam e que faz suscitar reflexões sobre nossos questionamentos cotidianos, aquilo que realmente dá sentido à vida.
A mira precisa da autora não concede possibilidade de reação, o leitor é fisgado para dentro do texto, sem coragem de revidar a agressão sofrida, justamente porque o ato ousado da escritora desvela as múltiplas vozes que nos entrelaçam, revelando um turbilhão de narrativas e de personagens em instável desequilíbrio, manejo cheio de sagacidade de quem entende a alma humana, no seu pior e no seu melhor, e que desvela as cicatrizes mais profundas dos seres que só querem purgar pecados e penitência, medos e mágoas.
Então, o disparo é feito com a potência da pena, da palavra usada como arma, infligindo à autora o coice que lhe quebra os dedos com aquilo que o humano pode manifestar de mais intenso e doído. Ao leitor, quebra-lhe o coração, como no final do conto Correnteza, conto agraciado com o 2º lugar no Prêmio Off Flip 2019:
“[…] a recém-nascida se aquietou e adormeceu. O sonho começou com a sensação de que a ventania rugia por sua face e membros. Como se o paredão de ar se dividisse em dois. O horizonte era ainda escuro, mas sentiu a vibração quente da coisa viva entre as pernas. Um cavalo. E o panorama se abriu à sua visão. Foi inundada pelo já conhecido deleite de percorrer a galope a imensidão da invernada. Algum contentamento enfim. A adulta deixou que as marolas fossem lavando pouco a pouco as graxas que besuntavam aquela carne nova. Queria que estivesse completamente limpa, purificada do embrenhar-se sangrento do mundo […].”
Um tiro certeiro no âmago, certamente uma das cenas mais pungentes que já li, comparável apenas à premiada escritora Toni Morrison, que coloca sua personagem Seth a decapitar seus filhos em Amada. Assim, a escrita de Divanize me atingiu. Cabe agora ao leitor também se servir de alvo, sustentar a coragem sem dobrar os joelhos ao ler cada palavra cortante e afiada, recebê-las com a grandeza devida sem se furtar ao desafio. Tenho certeza de que descobrirá a postura correta para se equilibrar, atingido por essa prosa aliciante, mas sempre recompensadora. Com certeza, a literatura necessita de mais cangaceiras desse calibre!
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* Referência ao projeto “Procura-se” (2019), organizado pela Revista Pixé e pelo coletivo Coma a Fronteira, em que escritores mato-grossenses foram retratados em lambe-lambes espalhados pela cidade de Cuiabá, simulando poses de foragidos procurados. Num desses quadros, Divanize Carbonieri foi descrita como uma “cangaceira das veredas literárias e o gatilho poético mais rápido de Mato Grosso”.