Uma resenha de Sílvia Schmidt
A “Resenha de Inúmera“, de autoria de Sílvia Schmidt, é mais uma da série de resenhas da Livraria do Mulherio, em que autoras cadastradas resenham as obras umas das outras. Dessa vez, o livro resenhado é Inúmera de Daniela Galdino.
Sílvia Schmidt é natural de São Paulo, morou no Nordeste e Sul do Brasil, saindo de Florianópolis em 2000 em voos mais ousados para Inglaterra e EUA, com o objetivo de estudar o idioma inglês. Formou-se em Letras em Lorena-SP. Especialização em Comunicação e Semiótica na PUC/SP, Sociologia e Política/ USP, e Ontopsicologia em SC. Por 16 anos ministrou aulas de Literatura Brasileira. Como copartícipe, desenvolveu vários projetos na área da Arte- Educação, entre eles o Projeto ESCOLA VOCACIONAL LIVRE. Em 2014 cria a editora para livros eletrônicos, a Símbol@Digital, quando lança seu romance de estreia, Duty Free (2000), em formato epub, durante residência artística na CASA DO SOL, em Campinas, no IHH (Instituto Hilda Hilst). Contato: silviaschmidtt@gmail.com. Facebook: https://www.facebook.com/silviaschmidtt/. Portfólio: https://sway.office.com/ZqUDk5w4VyTmf7NR.
Daniela Galdino é poeta feminista sim – organiza seus signos no sentido de revelar, indicar protestar declarar-nos com o gênero no sentido aberto proposto na obra a sua vida em especial – professorando com muito ritmo em versos livres – penso que nada mais óbvio – mas rico em repertório, cultura e transculturalidade, sensual no sentido de sensível, visceral encontro de Eros e Afrodite – performaticamente. Nos quantificamos assim e durante Inúmera- imensxs. Como performer Daniela Galdino tem participado de diversos eventos entre eles: 1. Performance MISSIVAS; 2. Participação numa mesa de debates como escritora; 3. Atualmente circulando com seu novo livro “Espaço Visceral” (poesia erótica) e “Inúmera bilíngue; 4. Os últimos eventos de grande porte nos quais tem participação como escritora convidada: Flipelô (Festa Literária Internacional de Literatura do Pelourinho), Flica (Festa Internacional Literária de Cachoeira), Festival de Inverno de Garanhuns e Feira Literária de Ilhéus; 5. Curadoria: Profundanças, que é uma antologia literária e fotográfica que disponibiliza para download gratuito. 51 escritoras brasileiras participam desta antologia: https://drive.google.com/file/d/1Sq-gFSh2vJzNXYj3LFpKiq_5DWvng2yD/view. Mais sobre a poeta no link: https://mapadapalavra.ba.gov.br/daniela-galdino/
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Resenha de Inúmera
GALDINO, Daniela. Inúmera. 3 edições. Itabuna: Ed. Mondrongo, 2017.
Minha alegria ter em mãos Inúmera em sua 3 edição agora comemorativa e bilíngue. Ao conhecer Daniela por eventualidade numa de minhas participações em festa literária na cidade de Olinda PE 2011 – conheci também a força de sua performance, sua interpretação visceral durante estes eventos. Uma mulher- que transcende o termo já que este se constrói na História e vivências da poeta. Já pensava intimamente – que mulherão da porra! Brincando, eu aqui com a fala atual, não menos categórica: Daniela Galdino é presente para mim e referência literária no feminismo brasileiro. Nesta breve leitura uma escuta.
Para saudar a poeta precisei recorrer à bela tese de doutorado do também poeta Ivan Maia Mello – cuja introdução nos amplia a visão da obra em questão da performer – ela Daniela Galdino um corpoema.
“INTRODUÇÃO: Um Caminho Transdisciplinar de Auto-Educação
Esta tese se insere na linha de pesquisa Filosofia, Linguagem e Práxis Pedagógica, pois visa produzir uma interpretação filosófica do processo de autocriação, ou autopoiesis, do “corpo criador”, aqui chamado de corpoema. O tema da tese surge da problematização filosófica de um dos grandes temas do pensamento de Friedrich Nietzsche, discutido ao longo de sua obra com diferentes formulações e considerado aqui como a questão da autocriação, processo no qual o ser em devir cria a si mesmo, definindo seu modo de existência – incluído aí o modo de pensar, sentir, perceber, agir – a partir de seu corpo, que o Zaratustra, personagem do Assim falou Zaratustra de Nietzsche, considera como o ser próprio e o chama de “corpo criador” (NIETZSCHE, 2003a, p. 61). Esse processo de autocriação no qual o indivíduo cria a si mesmo (que pode também ser pensado de outro modo como auto-organização) é o processo que ocorre de modo singular através de uma apropriação de si mesmo, por meio da efetivação das possibilidades existenciais mais próprias, e que tem sido interpretado desde Píndaro (poeta lírico grego), passando por Hölderlin, Nietzsche e Heidegger, como o percurso no qual alguém se torna o que é. A inserção da tese na linha de pesquisa considerada é devida à perspectiva epistemológica transdisciplinar adotada para elaborar a compreensão das possibilidades existenciais do corpoema em sua autopoiesis.
A criação existencial de um modo de vida pode ser pensada a partir da fala de Zaratustra, quando este assume a condição humana a partir da qual ele se lança no devir sobre-humano do corpo criador, dizendo: “E como suportaria eu ser homem se o homem não fosse, também, poeta, e decifrador de enigmas e redentor do acaso!” (NIETZSCHE, 2003a, p. 172). Portanto, para decifrarmos o enigma da autopoiesis é preciso tornar-se poeta para redimir todo casual desvio, fuga ou queda, no caminho da auto-educação: redimir tais acasos por meio da vontade criadora do corpoeta. O corpoema torna-se assim o signo de um sentido imanente de unidade diversificada que serve de metáfora pedagógica para conduzir (em grego, agogós,o que conduz) a Paidéia auto-educativa na compreensão de suas possibilidades de autocriação ou autopoiesis, fazendo, como propõe Nietzsche, da vida uma obra de arte, ou seja, tornando-se o poeta de sua própria vida. Na obra Paideia, Werner Jaeger nos apresenta o processo de auto formação do indivíduo na poesia jônico-eólica onde os poetas líricos gregos são apresentados com suas expressões singulares de uma subjetividade emergente, a que surge quando o poeta começa a falar de seus próprios sentimentos, afetos, valores, desejos, etc. Em outro capítulo, dedicado especialmente a Píndaro, ele cita os versos deste poeta lírico que dizem: “Quem só tem o que aprendeu, é um homem obscuro e indeciso, jamais caminha com um passo firme. Apenas esquadrinha com imaturo espírito mil coisas altas” (JAEGER, 2003, p. 265). Tornar-se poeta da própria vida, como sugere Nietzsche, requer justamente isto: não saber apenas o que aprendeu, mas sobretudo o que não aprendeu, porém inventou. A relevância do corpo como ser próprio evidencia-se ainda através das palavras de Nietzsche no Ecce homo, sua autobiografia, na qual a questão da saúde e da alimentação são pensadas em função do aumento da potência vital. Diz ele: […] fiz da minha vontade de saúde, de vida, a minha filosofia […].
De maneira bem outra interessa-me uma questão da qual depende mais a „salvação da humanidade‟do que de qualquer curiosidade de teólogos: a questão da alimentação. Para uso imediato, podemos colocá-la assim: „como você deve alimentar-se para alcançar seu máximo de força, de virtú, de virtude livre de moralina?‟ (NIETZSCHE, 2001b, p. 35-36, grifo do autor)
Assim como em relação à questão do movimento, em que ele critica o sedentarismo do modo de vida dos pensadores em geral, quando diz: “[…] não dar crença ao pensamento não nascido ao ar livre, de movimentos livres – no qual também os músculos não festejem. Todos os preconceitos vêm das vísceras – a vida sedentária – já o disse antes – eis o verdadeiro pecado contra o santo espírito.” (IDEM, p. 38) E o que quer este corpoema? Enquanto corpo criador, o que o ser próprio quer acima de tudo é, como diz Zaratustra, “criar para além de si” (NIETZSCHE, 2003a, p.61)”
Foto: Ana Lee.
Assim defino Daniela a mais linda práxis do devir – um corpoema: Inúmera – sim que dentro do contexto tão próprio de gênero que, segundo a escritora e psicanalista Maria Rita Kehl em seu livro Deslocamentos do Feminino, Boitempo editorial, revisita a representação de mulher segundo as declarações de Freud de que não se nasce mulher nem homem mas nos tornamos um ou outro- e propõe descontruir a figura universal e abstrata da mulher, ou seja um conjunto de imagens e representações que tentam produzir uma identidade para todas as mulheres , sem alcançar nenhuma delas em sua singularidade. Ser Inúmera pontua esta singularidade em tempos de debate acirrado do feminismo principalmente no Brasil pós golpe misógino elitista e racista.
Em entrevista à revista Cult 216 – ano 19 setembro de 2016 – Dicções Femininas na Cultura Brasileira, Maria Rita Kehl afirma: “Existe uma sexualidade para cada ser humano”.
Ainda “Até pela natureza sexual do órgão. O que não quer dizer que as mulheres não possam ser fálicas”. A mulher tem dois órgãos sexuais: o tecido vaginal, que é um órgão de prazer, e o clitóris.”
“Olhar para a pluralidade de mulheres ainda é um desafio para a Psicanálise?
– Kehl – Acho que não. Nos quase vinte anos que nos separam da primeira edição do Deslocamento do Feminino- também a Psicanálise mudou muito. Não por mérito da Psicanálise, mas porque as moças estão se fazendo ouvir, e quem não escuta fica para trás.”
Ouvir Daniela- corpoema em devir em deslocamentos do feminino foi para mim uma tarefa-eu diria de longos anos -desde que a conheci em transbordamentos e fiz a primeira leitura de sua poética de seus signos em rotação numa leitura para exigentes porque ela é “passeio abissal”, “brutalidade”, “estilhaços”, “lisergia espontânea”, “termogênese”. E “nos absurdos de uma colheita infeliz: ardil, minimalismo, flash back, deslinde, redemoinho ,sentença, palavras de vida fácil.
Aí em continuidade desaguamos em “toma o fôlego aos ventos esparsos” para encontramos “Diário de Macabéa” “Carolina com Cê -De”( Carolina Maria de Jesus). “Subversiva Maria”. “Cabaré Sideral(Úrsula Iguarán, Joana, Rebeca Buendía, Tereza, Amélia, A obscena senhora D, Amaranta,Tereza.
Ainda : “Eu sou maior por dentro” “em muitos conselhos infantis” ser Fiat Lux!.
E para no fim “dialogar com Inúmera alguns dos Vinte Poemas caleiDORcópicos, que foram publicados em 2005 pela Editora via Litterarum.
Poema Inúmera.
Eu tenho a síndrome de Tim Maia.
Eu tenho as varizes de Clara Nunes.
Eu tenho os vícios de Piaf.
Eu tenho a orelha de Van Gogh.
Eu tenho a perna que falta ao Saci.
Eu tenho o olfato de Freud.
Eu tenho o cansaço de Amélia.
Eu tenho o peso de Maria.
Eu tenho as dermatoses de Macabéa.
Eu tenho a cusparada de Sofará.
Eu sou a linha tênue que une os xipófagos.
Eu sou uma interrogação vagando com pressa.
Eu sou um insulto atirando à queima roupa.
Eu tenho atalhos ainda não percorridos.
Eu tenho palavras desgastadas e nulas.
Eu tenho uma voz penífera e cortante.
Eu confesso: sou intrusa,sou inúbil, sou inúmera.