Uma resenha de Sílvia Schmidt
A “Resenha crítica interseccional da obra Nem Tudo é Silêncio de Sonia Regina Bischain”, de autoria de Sílvia Schmidt, é mais uma resenha da série da Livraria do Mulherio das Letras, em que autoras cadastradas resenham as obras umas das outras. Dessa vez, o romance resenhado é Nem Tudo é Silêncio (2017) de Sonia Regina Bischain.
Sílvia Schmidt é natural de São Paulo. Formou-se Letras na FATEA. Especialista em Comunicação e Semiótica na PUC/SP, Sociologia e Política/ USP, e Ontopsicologia em SC. Por 16 anos, ministrou aulas de Literatura Brasileira. Em 2014, criou a editora para livros eletrônicos Símbol@Digital, quando lança seu romance de estreia Duty Free. Possui trabalhos inéditos em todos os gêneros literários em temática contemporânea-bilíngue, crítica e universal. Impressos ou em novas mídias. Participa como mediadora e curadora em Festivais de Cinema e Literatura com temas contemporâneos como transculturalidade e interseccionalidade. Além dos temas ligados à Arte e Cultura é educadora e consultora em sustentabilidade.
Sonia Regina Bischain, 62 anos, mora na Vila Penteado, distrito de Brasilândia, São Paulo, casada, mãe de 3 filhos, escritora, fotógrafa e designer gráfica. Participa de movimentos culturais e saraus literários, na periferia de São Paulo. É uma das organizadoras do Sarau da Brasa (Coletivo Cultural Poesia na Brasa) desde o seu início em 2008. Autora dos livros: Olhares que devoram sonhos (Contos, 2019, 11 Editora); Viandante, Labirintos entressonhos (Romance. 2017, Ciclo Contínuo Editorial); Rua de Trás (poesia. 2009, Coletivo Cultural Poesia na Brasa); Nem Tudo é Silêncio (Romance. 2010, Coletivo Cultural Poesia na Brasa); Vale dos Atalhos (Romance. 2013, editora Sundermann); e coautora do livro de fotografia Cultura daqui, olhares da Brasa, com Avelino Regicida e Enver Padovezzi, 2015. Participou de diversas antologias organizadas pelos Saraus, em São Paulo, além das Antologias (bilíngues português/espanhol) Saraus e Brasil Periférico, compiladas pela argentina Lucía Tennina. Também integra a Antologia Mulherio das Letras Portugal (prosa e Conto), publicada pela In-Finita em 2019; a Antologia Mulherio pela paz, lançada na Alemanha em 2018 (inglês/português); e a Antologia Mulherio das Letras e Segunda Coletânea Poética Mulherio das Letras, organizadas por Vanessa Ratton, entre outras.
Fanpage da Livraria do Mulherio das Letras: https://www.facebook.com/livrariamulherio/
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Resenha crítica interseccional da obra Nem Tudo é Silêncio de Sonia Regina Bischain
BISCHAIN, Sonia. Nem Tudo é Silêncio. São Paulo: SB edições, 2017.
É com o Martelo de Nietzsche na mão e muitas perguntas como leitora exigente, que me inspiro em alguns pensadores pós-modernos como Foucault através de seu olhar construtor do aqui e do agora, assim como, Giorgio Agamben– nesta epígrafe conceitual abaixo, para tecer esta resenha crítica em metodologia anti- opressão, a interseccionalidade.
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender seu tempo (Giorgio Agamben em O que é contemporâneo).
Há anos perscruto e investigo, dentro da Literatura Brasileira em especial, o fazer, a narrativa e a poesia como aquele espaço visceral e orgânico que indicie novos tempos, a marcha , a mudança e quiçá a transformação que tanto apregoam os pesquisadores do simbólico, e como também indiciava Karl Marx, para nos lembrar aqui, que o verdadeiro filósofo vive de modo filosófico.
Assim questiono, a cada um de nós produtores de cultura, como podemos transformar, através de nossos escritos , para além do que inconscientemente nos alienamos , cingidos no corpo e alma da natureza – usados como máquinas reprodutoras do estabelecido – e mais, imposto por repressões da ordem das violências tanto no privado quanto no público, que o reproduz, cinergeticamente, também e na incapacidade de nos transpormos dentro das barreiras identitárias e opressoras?
Como bem descreve Deleuze e Guattari em sua obra O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, qual a máquinas desejantes, consumidores que se consomem e criam máquinas que maquinam desejos desejantes, sistematicamente e no devir e que mesmo no sentido do artístico, não circulam novos perceptos e nem mesmo novos afectos.
Nesta obra que hora apresento temos esta possibilidade de transformação, perguntei-me ao ler?
Minha primeira impressão é que sua narrativa antilinear – cujo tempo se repensa em valores dos fatos mais significativos e de resistência à opressão , assim como em espaços não de poder e ou quase nunca lembrados, e que são narrados por muitas vozes que não se deixam levar pelos interstícios da mudez, e que no seu limiar sinalizam mudança – penso e sinto que sim.
Ainda incomodada, com certa aproximação tempo-espaço com o século XlX interseccionando-se com as mesmas questões naturalistas de Aluísio de Azevedo em sua aclamada obra O Cortiço (1890) precisei me aprofundar nesta perspectiva que se formava então em minhas indagações como leitora.
Se para Aluísio de Azevedo o Rio de Janeiro de João Romão, sob uma narrativa feita pela escrita dominante do escritor homem, cujas personagens mulheres, negras como Bertoleza, Rita Baiana “a mulata”, envoltas ao caráter português colonial dominante como de João Romão e Miranda, as mesmas e outros personagens não aparecem representados no intuito de transformação social, mas unicamente como descrição de um olhar positivista, impositivo, à ordem dominante tal uma fotografia, apenas descrição em sua essência.
Ao ler Nem Tudo é Silêncio e comparando as narrativas, vejo-me de frente, mais uma vez, à tal realidade não transformada ,ainda mais recrudescida, da ordem das perdas, lugar e tempo geopolítico para onde nos dirige Sonia Bischain com seu ponto de vista de uma autora mulher, que segundo sua entrevista ao canal do Youtube Histórias da Ditadura- Novas Perspectivas entrevistas a Paulo César Gomes e Guilherme Lopes, admite a estes, ter experienciado os fatos que narra e também ter tido a intenção de narrar sob esta perspectiva pessoal o bairro e sua genealogia. Pergunto-me!
Temos assim em Nem Tudo é Silêncio uma obra documental – memorialística em cuja narrativa, ao ser romanceada, a autora-personagem nos leva para este lugar que é a realidade periférica de Brasilândia na grande São Paulo em cujas lembranças constrói, por idos do século XIX até os anos da Ditadura , em 1960 e 70, o seu livro, e o lança, ela mesma, sob o selo SB a segunda edição em 2017. Teremos uma repaginação das narrativas, ou um olhar que avança indicando caminhos?
Não sinto que a personagem principal seja como de modo convencional apontariam leitores ingênuos os que protagonizam os fatos na obra, aliás muitas mulheres, Iara , Ritinha, Elisa, a velha, mas a própria escritora Sonia Bischain… que tendo ali em Brasilândia vivido , vem com o seu romance e com a sua voz, denunciar em belo gesto de coragem, ao nos apontar que Nem Tudo é Silêncio, nem mesmo o silêncio dos inocentes , ainda menos o silêncio do descanso aquele, que a psicanálise lacaniana aponta: silêncio como a uma pausa.
Sonia, autora e mulher periférica vai usar de sua verve, para junto destes personagens, em exposição ação e reação- conflito portanto, alertar-denunciar e por que não através de nós leitores, exigir mudanças. Livro Martelo de Nietzsche quebrando paradigmas. Referência não opressora porque circunscreve-se para além das margens e é portanto anacrônico. Não o cortiço carioca de João Romão, mas Brasilândia a favela revisitada, naquilo que toca o devir e cujas personagens, atormentadas pelo capitalismo de rapina, vivem num aglomerado, roubados de esperança e vida. Corpos em valas que nos revelam ainda e sempre, impedidos e incapazes de rodar a máquina desejante, sim porque ainda submersos sobre o mesmo sintagma: ação-repressão, reação-luta dos insurgentes e sobreviventes, aprisionamento ou morte.
No trecho:
Estou gostando de dar aulas na favela, a maioria dos moradores é composta de nordestinos que vieram em busca de uma vida melhor em São Paulo, mas não tiveram sorte. É uma gente simples, simpática, amável e sorridente, apesar de tantos problemas. A maioria dos homens trabalha na construção civil, as mulheres como domésticas. Alguns são catadores de papel, ferros, latas, plásticos. Recolhem estes materiais pelas ruas, e vendem depois. Muitos estão aqui há mais de vinte anos, seus filhos cresceram na favela. Por falta de oportunidades, sem estudo e sem trabalho, seus filhos estão se envolvendo com drogas, praticando roubos.
O primeiro sinal de alerta de que nem tudo se silencia portanto neste contexto de desumanidades, como propõe o título-síntese e que podemos ouvir-ler , assim como neste trecho a seguir:
Meus alunos tem entre trinta e sessenta anos. Alguns estudaram um ou dois anos em sua terra natal, outros são totalmente analfabetos. Tive que dividir a turma e dar duas aulas distintas. O que é um pouco complicado, num espaço tão pequeno. No começo passei na lousa uns exercícios para a turma que não sabe nada. Notei que dona Josefa, uma senhora de quarenta anos, não sabia nem segurar o lápis. Tive que separar dona Josefa também da turma alfabetizada, segurar na mão dela e, com paciência, ensiná-la a fazer pauzinhos e bolinhas.
para além do ficcional e factual:
Em altíssimo volume um ídolo nacional canta no rádio da vizinha e ela grita junto acompanhando a música.
Eu, aqui em casa, tento ouvir a denúncia e lamento da linda voz de Joan Baez que questiona: Is there only sorrow in Cambodia? Is there no tomorrow in Cambodia? *
( *só tem tristeza em Camboja? Não tem amanhã em Camboja?). Tradução da autora.
E no trecho quase final:
Num dia chuvoso enterrei meu menino dos olhos cor de mel.
Lucas apareceu dois dias depois, transtornado. Eu gritei com ele, chorei, xinguei.
– Vou embora mãe, não posso mais ficar aqui, não vou conseguir olhar para você, me desculpa mãe- foi o que ele disse. Lucas sumiu, o meu caçula, me disseram que ele está morando nas ruas.
Portanto nesta narrativa interseccional , entre muros, daquilo que não conseguimos avançar desde sempre de O Cortiço de Aluísio a Nem Tudo é Silêncio– de Bischain, ainda que este venha da escrita documental de Sonia- ela mesma narradora – autora- e personagem porque consegue neste contexto transcender ao ditatorial – imposto – máquina desejante para se fazer ler – ouvir e nos fazer perguntar- a sua literatura potencializa novos devires? Para novos olhares potentes, para além dos paradigmas fossilizados de nossas sociedades doentes? Interseccionando-se?
Collins (2016) trabalha com as opressões de raça, classe, gênero, sexualidade e nação, por considerar que as mesmas se inter-relacionam, construindo reciprocamente sistemas de poder. Utiliza o termo ‘interseccionalidade’ para explicar a sobreposição simultânea de múltiplas formas de opressão, considerando que as mulheres negras têm histórias únicas nas intersecções dos sistemas de poder. Embora em diferentes momentos sócio históricos se amparem em formas e intensidades diferentes de opressão – podendo haver contextos em que o machismo é mais estruturante que o racismo, ou vice-versa –, a tese da natureza interligada da opressão permeia há tempo o pensamento feminista negro (IDEM, p. 08). Após essas arguições centradas na interação de opressão de gênero, classe, etnia e identidade de gênero, torna-se importante abordar a trajetória do feminismo negro, uma vez que as mulheres negras são fortemente atingidas pelos sistemas opressores (Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, vol. 7, nº 13, 2017. pag 65).
Sim, Bischain, como mulher periférica, intersecciona ao nos apontar, nas personagens o discurso opressor dominante, na representação inicial dos versos (desestruturantes das narrativas lineares) para com estes criticar o sistema estrutural e estruturante:
Ah essas pessoas horríveis
de língua traiçoeira
que detém poder
e pelo canto do olho
me observam
me negam conhecimento
apagam a história
destroem a memória
e querem que eu
me sinta pequena!
Ah, essas pessoas lindas
que comigo caminham
e fazem sua
a minha caminhada e luta
e no suor nosso de cada dia
me engrandecem
em cada sonho compartilhado!
-Minha vida está um inferno! Eu não tenho sossego, eu não durmo mais
-Rosa o que está acontecendo?
-Uma noite eu acordei e vi meu marido bolinando a minha filha. A casa é pequena, a gente dorme tudo no mesmo quarto… Foi por isso que mandei ele embora. Mas ele voltou,
-Como você o aceitou de volta? Você tem que denunciá-lo.
-Eu tenho medo dele.
-Pelo amor de Deus, Rosa. Você tem que pôr sua filha em primeiro lugar. Se quiser eu vou com você na delegacia. Mas você tem que criar coragem e fazer a denúncia.
Bischain também, na introdução intersecciona – no sentido de nos apresentar e denunciar o poder de classes, gêneros e etnias no trecho de Tempos Primeiros- Fragmentos ll.
Me aparecem aqui com essa bugresinha. Tava mais morta que viva! Sangrando nas partes! Disseram que encontraram na floresta, a pobrezinha.
A bugresinha acorda à noite assustada, gritando naquela língua esquisita dela. Grita o nome de duas muié, Jaci e Iara.
Também nos fragmentos:
Fui cuidando dela, Kinah sempre me ajudando. Entre os muitos afazeres na fazenda, a gente se revezava ora cuidá da bugresinha. De sorte que meu senhorio é um home de bem. Dizem que em outras fazenda os negro sofrem muitos maltrato, tem sinhô que manda castrá e cortá a língua dos escravo e os home se diverti caçando e matando índio nas mata.
Não seria a língua outro poder social opressor? Aqui a fala é do povo seus códigos e linguagem por onde gritam suas mazelas e procuram as formas de amenizar na luta diária, quer na busca por trabalho, michês ou tráfico, roubos sua mínima sobrevivência.
Alguns apoiam-se nos outros e de modo solidário, juntamente com algumas instituições sociais, a garantia por novos direitos, as mínimas garantias, salários dignos, moradias, hospitais o lazer e são por isso reprimidos violentamente. As Ditaduras, as Opressões de uma classe sobre a outra não são tocantes para Aluísio em seu século, apenas o fogo a queimar o Cortiço, simbolicamente. Para Bischain é a luta nas paralisações, as greves e os levantes que farão destes seus personagens em reação aos desmandos do poder estruturado através de seus personagens paradigmáticos.
Vejamos no trecho:
O Cardeal mais uma vez abriu as portas da Catedral e fomos chegando. Ocupamos todos os bancos, os corredores, a escadaria. Um alto-falante transmitia a celebração para os que, sem conseguir entrar, lotaram também a praça.
Infiltrados entre nós, agentes da repressão, gravando tudo, fotografando nossos rostos. Policiais armados ameaçando invadir, cavalaria em volta da praça para nos intimidar. Fecharam as portas do metrô.”
………por meio dessas celebrações nos fazemos ouvir. Lotamos a Catedral, a praça, depois saímos em passeata pelo centro da Cidade. O esquema dos agentes é sempre o mesmo, provocar brigas e tumulto durante as manifestações. É deixa para que os policiais entrem em ação com porretes e bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral.
Em tempos de medo ou Memórias de Ritinha:
Está difícil, o movimento estudantil foi todo desarticulado. Avançam sobre nossas manifestações com cavalos, bombas, cassetetes, jatos de água, tiros. Muitas pessoas estão sendo presas. Denúncias de tortura, desaparecidos, mortos.
O Esquadrão da Morte está atuando livremente, sequestrando e matando indiscriminadamente pessoas atuantes, suspeitas ou mesmo parentes de suspeitos.
Brasilândia um símbolo de nossas mazelas das lutas de classe e submissão social; LEMBRANDO QUE:
o homem é um animal se despojando da espécie. Assim o instinto traduziria as urgências do animal, e a instituição, as exigências do homem: a urgência da fome, torna-se no homem reivindicação de ter pão (Deleuze in Instintos e Instituições).
Para além do conteúdo narrativo, a obra Nem Tudo é Silêncio de Sonia Regina Bischain , recebe em sua orelha a distinção de contemporaneidade sob a perspectiva da Professora de Literatura da Universidade de Brasília Regina Dalcastagnè, em maio de 2017,:
como um livro que desemboca direto nos dias de hoje, quando mais uma vez, nos vemos diante de um golpe e precisamos encontrar forças para a resistência.
Assim como em sua apresentação,
Queremos evidenciar com isso que a práxis poética de Sonia Bischain, aqui representada pelo romance Nem Tudo é Silêncio, nos moldes de afirmação de Achugar, atua precisamente no sentido da desconstrução do fazer literário adestrado, que despreza e ignora a memória e a vivência de certos sujeitos periféricos, maiormente as vozes femininas (Paulo C. Thomaz, Professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília e pesquisador em literatura brasileira e hispano-americana contemporânea).
Ler é antes de mais nada um ato político, ler e interpretar à luz de novos paradigmas desestruturantes ainda mais. Bischain me potencializou, trouxe-me em seu texto memorialístico a periferia que hora apresento a novos leitores, sejamos o Martelo de Nietzsche portanto, a derrubar o fossilizado, encruado, e ou imposto para que o novo se construa no devir, uma sociedade em que a vida se revele no que ainda não conseguimos em nossa História humanamente saudável realizar: a ponte entre o animal e o homem.
Referências:
https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2014/07/14/o-que-e-o-contemporaneo-giorgio-agamben/
http://www.letras.ufmg.br/padrao_cms/documentos/profs/sergioalcides/contempagamben.pdf
https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2013/08/deleuze-guattari-o-anti-c3a9dipo.pdf