Valentina Feita de Arco-Íris – Episódio 1
Valentina Feita de Arco-Íris
(Série Policial em 6 Episódios)
Episódio 1 – Feita de Arco-Íris
A mulher vomitava horrores, centímetros das botinas do policial que esperava a conclusão dos sucessivos jorros para continuar a tomar-lhe o depoimento. A mulher magra e de pele vermelha, por causa do sol que queimava sem dó, interrompeu a sessão de vômitos e disse ao policial, “Me desculpe o mau jeito, mas cortaram as orelhas da moça. Viu, não viu? Então?”. Encontrar um corpo não é um negócio fácil, foi a dedução do tal servidor da Lei que já começava a se incomodar com um bando de crianças que gritavam “Chama o Batman! Chama o Batman!”.
Cuiabá ardia, asfalto estourando 65 graus. Clichê na veia. Corpo em decomposição. Um pedinte contava a história da filha desaparecida que ele andava a procurar Brasil adentro, desesperança afora. Uma senhora, neto nos braços, curiosidade obstruindo a rua, riu sem meias-palavras, “Meu senhor, essa é nova. Pra mendigar, comprar uma cachaça, inventa que tá atrás da filha raptada”. O homem, bigode maltratado, pele denunciando a necessidade de um banho, balbuciou na intenção de convencer, “É verdade, minha senhora”. Uma lágrima misturada a uma indignação se manifestou. Um policial dispersou com convicta indelicadeza a multidão. “Tá podre o lugar. Por que não desovaram essa fulana na caixa do caralho, meu?”, reclamou um morador. E o povo foi abrindo espaço, lançando impropérios cada vez mais ferozes por causa do odor. A investigadora Valentina Soares lamentou todo o espetáculo público que presenciou. Polícia, imprensa, curiosos. Ninguém se importava com a nudez da jovem retalhada por algum psicopata. Um corpo morto perde a identidade. Um objeto inanimado, conhecido como “A vítima” ou “O caso”. “O que você sabe sobre o caso?”. Supondo que se saiba de quem se trata. Valentina foi contratada para saber. Saber quem a levou e, com certeza, saber quem a assassinou. Emily Tedesco! Emily Tedesco! “Emily! É assim que a mãe a batizou, Muñoz. Chame-a pelo nome, porra!”. O tenente da polícia se arrepiou, respirou, concentrou-se até perceber quem falava com ele. “Rá! Já ia autuar por desacato. Mas é a mulher feita de arco-íris. Tá de boa!”.
Em casa, Valentina tomou umas doses de uísque. Desprezava cerveja e toda sorte de outras bebidas. Andou um pouco pelo quintal, revisando fatos, culpando-se por não ter encontrado Emily antes da foice do ceifador e ingerindo mais uísque. Adormeceu no sofá, TV ligada transmitindo um jogo da seleção brasileira de vôlei feminino contra a seleção de Camarões. Valentina sempre torcia por qualquer seleção africana ou por times que contivessem mais atletas negros. “Um vence, todos vencem”, dizia para a irmã mais nova, Melissa.
Logo cedo, recebeu o telefonema de Paola Tedesco, mãe de Emily e proprietária de um famoso buffet da capital. A mulher cobrava resultados. Valentina somente ouvia o som de alguém rangendo os dentes para não liberar um desabafo, controlando a impotência de responsabilizar o mundo, substituindo-a pela comodidade de despejar o ódio sobre quem estivesse mais próximo. Paola solicitou que a detetive continuasse no caso e encontrasse o assassino, que do resto ela cuidaria. “Tenho meios para isso”, revelou quase sussurrando. Como a quantia para encontrar o vilão da história subindo para cem mil reais, Valentina não perguntou nada a respeito dos “meios” que estavam ao alcance das mãos de Paola.
Quando Valentina chegou ao escritório, Sabrina já finalizava o almoço. “Liguei o dia todo pra você. Não quis me atender? Bom, pedi o almoço. Ou o uísque já te deu força suficiente para superar o terror e a fome?”. Valentina olhou para a secretária, mas sem censura ou qualquer sinal de concordância. “Não tenho fome, Sá. E falhei miseravelmente”. Sabrina encarou com seriedade a chefe. “Você fez o que pode. Não tinha pistas. Sem digitais no quarto dela, no carro, no armazém que a polícia estourou. Enfim…”.
A sensação de fracasso, de todos os erros cometidos ainda passeavam pela mente de Valentina, quando Sabrina trouxe o recado de que Claudiney Ferraz desejava encontrá-la. “Esse cara não é o Midas da mídia sensacionalista? O que ele quer?”. Sabrina fez o clássico gesto de quem está por fora do assunto: balançou a cabeça de um lado para o outro e contraiu levemente os lábios, como quem dissesse “mas eu gostaria de saber”.
Ainda com o senso de responsabilidade e os efeitos da ressaca em mente, Valentina se dirigiu à redação do jornal de Ferraz. Um homem de 40 anos, de longos cabelos pretos, olhos castanhos e barriga que já começava a alcançar o título de protuberante. “A bengala é pra dar estilo?”. “Sim”, respondeu Ferraz, sem pestanejar. “Na vida, quem quer ser forte precisa assumir uma persona que o proteja das fragilidades inconcebíveis”. “Entendo”. E Valentina tentava imaginar quais eram os próprios truques para suportar os deslizes e os pavores internos que a acompanhavam como marcas indeléveis. “Detetive, a Paola disse que a contratou para encontrar a Emily. Infelizmente, a tragédia já tinha se consumado. Não é verdade?”. Valentina escutou as últimas palavras com os olhos voltados para baixo. Aguardou até que o silêncio deixasse de existir. “Vou acrescentar uma soma ao que a Paola te ofereceu”. A investigadora ergueu a cabeça e lançou um olhar discreto para o sujeito excentricamente elegante. Desejava medir se a proposta continha amor declarado ou ódio oculto. “Eu cresci com a Paola, mulher de família rica, tornou-se mãe adolescente. Minha mãe era cabeleireira da mãe da Paola. A Emily sempre frequentou a minha casa. Ano passado, nós iniciamos uma relação casual. Olhares, sorrisos, toques, sexo. Depois, algo mais forte tomou conta de mim… Entenda! Ela tinha 19 anos e eu sou um profissional da comunicação reconhecido, visado…”. Sabrina o interrompeu. “Sim, eu entendo. Os jornais sensacionalistas não perdoariam o Rei desse negócio de explorar a vida das pessoas. Feitiço contra o feiticeiro. E, obviamente, você quer que eu encontre o assassino, já que logo o teu nome estará ligado ao crime de algum modo. Mas, Ferraz, teu problema maior se chama Tedesco”. Ferraz, ignorando a verdade apresentada, caminhou até a mesa e abriu uma gaveta. De lá, retirou uma garrafa de bourbon, dois copos, um cheque e uma caneta esferográfica folheada a ouro. Ofereceu um copo com bourbon a Valentina – que recusou –, entregou-lhe o cheque – com mais setenta mil para dar conta do recado – e colocou a caneta no bolso do blazer cinza da detetive – que permaneceu parada, intrigada com a encenação –. “Mas tem uma coisa, Ferraz. Eu investigo o meu cliente pra saber se não embarquei em um navio com furos mal remendados”. O homem passou a mão estranhamente na barriga e, em seguida, anuiu com o método profissional de Valentina. Cento e setenta mil reais para encontrar um crápula ou a morte na próxima esquina… Não pareceu um mau negócio.
De volta ao seu escritório, Valentina encontrou Sabrina bebendo a sagrada dose de uísque do final de expediente. Ela estava parada diante da janela, observava o movimento na avenida. A detetive caminhou devagar e abraçou Sabrina por trás, beijando-lhe a nuca. “Para com isso! Nosso affair acabou”. Valentina, sem tirar os braços ao redor dela, inquiriu, com certa languidez, “Acabou?”. “Não”, respondeu a mulher, com decisão. Depois disso, passos foram ouvidos além da porta. “Que lindo!”. A voz do tenente Muñoz ecoou na sala pequena, mas aconchegante, que a investigadora ocupava. “O que quer? Estamos encerrando por hoje”, perguntou uma confiante Valentina. Munõz riu, queria parecer descontraído. “Sabrina, sabe o motivo de chamarem a Valentina de ‘Feita de arco-íris’?”. A secretária, já longe do abraço da chefe, virou-se para o tenente, encarou-o e disse com propriedade, “Só vocês, policiais, chamam a senhorita Soares deste modo”. Muñoz riu novamente. “É por causa da bissexualidade dela. Bandeira arco-íris. Sacou?”. “Aff! Que criatividade tosca”, sentenciou Sabrina. Neste momento, um dicionário de umas 300 páginas atravessou a sala, passou raspando a cabeça de Muñoz e só parou quando encontrou a parede. “Calma, Val. Você já foi mais precisa em teus arremessos, hein!? Tenho uma dica e uma proposta”, disse o policial, já se dirigindo à saída. Muñoz cessou os passos na soleira da porta, acendeu um cigarro. “Vamos dividir informações. Essa é a proposta. Fica de olho no Agenor Valadares, sócio da Tedesco. Essa é a dica”. Valentina correu em direção ao tenente, “Peraí, porra! É isso? Não vai dividir informação”. “Não!”, decretou o homem que fez ecoar uma estrondosa risada. “Sussurraram-me para ficar distante dele… Por enquanto. Você descobre o porquê da ordem. A víti… Quer dizer, a Emily merece justiça!”. Já no corredor, Muñoz, em alto e bom som, revelou “E, Sabrina, eu também já peguei essa gostosa”. E partiu rindo. As mulheres se entreolharam. Valentina sorriu. Desta vez, foi a secretária que a envolveu nos braços, enlaçando-lhe a cintura.
A investigadora ficou a imaginar os últimos momentos da jovem Emily, os cento e setenta mil que foram oferecidos para resgatar do abismo, chamado mistério, a morte da menina rica e também as sombras que poderiam atormentar o tal Valadares. E, num último suspiro, antes da boca de Sabrina alcançar a sua, pensou nas sombras que a perseguiam desde o tiroteio que a afastou da folha de pagamento da Polícia Civil.
Continua
Em breve o segundo episódio: Emily, a Ingênua Devoradora.
(Arte: It is over, de Mihail Korubin-Miho)