Vivendo de passado e Carolina no futuro
TRAVESSIA é coluna reservada à professora doutora do Colégio Pedro II e poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. As marcações do texto em itálico e em formato de citações hoje, tem somente função de realçar trechos importantes do texto, integralmente dela. Citações são referendadas pelos próprios autores. Boa leitura!
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Estamos contando os dias, assistindo ao crescimento macabro de números pandêmicos. Para sobreviver a isso, frequentemente, recorremos ao passado. Todo dia é dia de #tbt. A hashtag do instagram, expressão em inglês que significaria algo como “às quintas-feiras lembramos do passado” virou uma espécie de alerta-lembrança. Com ela (ou sem ela) anunciamos nas redes sociais que compartilharemos um momento feliz já vivido.
O tempo é um mistério, um deus como a memória. Saudamos com devoção o tempo do mergulho na praia, do encontro com os amigos, dos passeios pela cidade e entregamos cada uma dessas memórias como uma oferenda em nome dos prazeres que o tempo nos dará no futuro. Escritoras e escritores atuam nos intermédios do tempo. Quantos textos sobre a pandemia e o pós-pandemia estão sendo escritos e publicados? Tentamos projetar e anunciamos promessas. Afinal, não é isso que a literatura faz? Jogar com o tempo lançando flechas para todas as direções?
Em julho do ano passado, estava acontecendo a Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. Tantas pessoas, como eu, foram até a cidade participar de lançamentos, assistir a palestras, encontrar amigos, colegas de profissão e autoras de nossa admiração.
Este ano não houve Flip e se houvesse talvez ela estaria sendo vivida de outra forma, já que a notícia de que homenageada seria (será?) Elisabeth Bishop, poeta norte americana, entusiasta do golpe de 64 causou grande reação entre o público, incluindo sugestões de boicote e organização de evento paralelo.
Muitas pessoas que estavam em Paraty ano passado compartilham novamente suas lembranças do evento, conectam-se ao tempo em que assistimos às palestras de Grada Kilomba, Kalaf Epalanga, Jarid Arraes, Marilene Felinto entre outras pessoas negras brasileiras e estrangeiras. Essas escritoras e escritores presenteficam nossos anseios, porque escrevem sobre o passado e o futuro que desejamos e precisamos conhecer. A festa literária já foi chamada de “arraiá da branquitude” pela professora e intelectual Giovana Xavier e as críticas – que ecoaram pelas redes – provocaram mudanças na curadoria do evento.
No entanto, vemos que a forte conexão com outros passados está viva e presente e ainda aparece para nos assombrar. Talvez por isso as pessoas estejam escrevendo neste momento: para que haja um tempo adiante em que a memória da pandemia seja feita de vozes que registram emoções e experiências pluriversais, não somente as hegemônicas e oficiais. Nada nos garante que no futuro estará registrado que durante a pandemia a floresta estava sendo queimada, os indígenas dizimados pela doença e o povo negro da favela assassinado por vírus e por tiros.
No momento em que escrevo este texto, chega a notícia de que a editora Companhia das Letras publicará a obra de Carolina Maria de Jesus com supervisão de conselho editorial formado por mulheres, a maioria mulheres negras, entre elas a filha de Carolina de Jesus, Vera Eunice, a escritora Conceição Evaristo e a pesquisadora Fernanda Miranda. Essa é a resposta do tempo da luta, o passado de Carolina é nosso presente e sem ele não criaremos futuros.
Em determinada passagem do livro Quarto de despejo, João José, filho de Carolina, lamenta a mãe não ter cumprido a promessa de nunca mais comer as coisas do lixo e questiona sua falta de fé no presidente. Ela responde: “A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso país tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco morre um dia. Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido” (2006, p. 34).
Carolina é uma grande analista do cenário político e social de seu tempo, por isso, vê adiante um futuro não muito promissor para a democracia, são frágeis as conquistas e imprevisíveis as promessas. A lucidez da escritora e intelectual brasileira fica evidente na forma como ela se posiciona: seu reconhecimento como poeta é indiscutível para ela e o compromisso desse ofício em relação ao povo também.
O bonito da notícia da nova edição dos escritos de Carolina é que ela continua importante para o povo oprimido como era nos anos 60. Hoje, no entanto, seu lugar de escritora é validado tanto pelo público e pela casa editorial que dará nova oportunidade para que sua obra chegue a mais leitores, quanto pelas mulheres que trabalharão no projeto, dando o tratamento que essa obra merece.
Ao dizermos que Carolina Maria de Jesus é uma escritora necessária, não afirmamos o desejo de aprisionar nossa narrativa à denúncia feita de dentro do quarto de despejo. Pelo contrário, indicamos que sua obra dele ser lida, compreendida profundamente e valorizada pela qualidade literária que possui e pelo marco histórico que representa, para que ela nunca mais seja submetida às palavras de menosprezo que muitos lhe ofereceram.
Lemos Carolina para entender como uma poeta reflete sobre o futuro ao modificar o presente. Escrever foi sua forma de subverter a lógica percebida por ela ainda menina de que somente nomes masculinos figuravam entre os heróis da pátria. Como mudar isso? Ora, estando nas páginas impressas de um livro.
Ao que tudo indica, ainda viveremos muito de passado e #tbt, de livros que recontam nossa história e reconfiguram nossas expectativas do futuro. Neste caso, não se trata de mera nostalgia, é questão de sobrevivência. Lanço este texto como uma flecha no tempo e uma oferenda à memória para que possamos nos reunir de novo em torno da celebração de Carolina e de nossas vidas plenas de passado e de futuro.