Quatro poemas de Kátia Surreal
Kátia Surreal nasceu numa lua de sangue, sexta-feira, 13 de julho de 1986, dia mundial do rock. Carioca, vive em Niterói (RJ), mamãe da gata Bibi, puladora de corda, militante da Esquerda Marxista (CMI), membro vitalício da Academia Independente de Letras (AIL), autora do livro de poesias hot Gradações hiperbólicas (Brunsmarck) e do blog Fugere ad Fictem. Formada em Letras (UFRJ, UFF e Uerj) e professora de língua portuguesa do ensino fundamental, em escolas municipais do estado do Rio de Janeiro.
Instagram: @katiasurreal_
Blog: Fugere ad Fictem – Kátia
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testemunho da barbárie
preso ao museu de Sofia
grita o cinza aglutinado
com pesar
não só pranto, todavia
denuncia Pablo Picasso
sem baldar
o massacre de Guernica
dura opressão do fascismo
pincelado em dor
mentalidade tão tísica
deste vil militarismo
da Legião Condor
o cinza do magno quadro
longe duma ideia pacífica
lança bravo no ar
o ato revolucionário
traduzido pelo artista
a se perpetuar
*
fome, um substantivo
diz o dicionário:
a fome é
um grande apetite de comer
uma urgência de alimento
tem como sinônimos
miséria
escassez
sofreguidão
ah! fome é um substantivo
se for fundo na gramática
verá que fome é também
um substantivo abstrato
depende dum ser pra existir
em seu sistema digestório
mas há outra fome
fome concreta!
existe e não depende dum ser
mas sobrevive numa lógica
lógica devoradora
dum sistema indigesto…
*
há uma gota
há uma gota de margarina
em cada verso
me desculpem
não tinha água pra lavar as mãos!
há uma gota de margarina
em cada verso
é que o requeijão está caro demais
mas a lágrima é verdadeira
há também uma goteira
em casa
no mundo
em mim
mas aí, eu sei,
já é reclamar demais…
*
sentido literal
chove dentro de casa
compreende bem isso?
chove bem aqui
não sei mais o que fazer
tudo está encharcado
pingando pra todos os lados
o que faço?
lá em casa não há poço, só poça
e a água nem é muito limpa assim
aqui chove muito, muito mesmo
a chuva vem lá de fora
destruindo o que há por dentro
da casa, que não é um eu
embora dilacere o íntimo
querem que eu me vá em rápido ritmo
mas não vou!
nunca sairei da minha casa!
o raio que te parta!
esta casa não sou eu
mas eu própria a fiz
entenda: a casa tem raiz
no desmonte pela serra
toda uma vida se encerra
e eu permaneço nela
entrego-me à mortal correnteza
e pode ter certeza
continuarei até que desapareça
na paisagem do agora
jamais na memória.