Lâmina afiada, crânio de cavalo e outros desastres humanos – “Eles matam cavalos, não é?” – Por Wuldson Marcelo
09 de dezembro de 2020, cabeças de cavalos são encontradas em uma área alagada no Bairro CPA III, em Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. O local fica próximo a uma estação de tratamento de esgoto.
Uma varredura no local, realizada pela polícia, não trouxe a público nenhum vestígio do resto dos corpos dos cavalos. A suspeita é que os equinos foram mortos para produção de embutidos e carne seca para comercialização.
“Cemitério clandestino de cavalos”. É bizarro, absurdo e cruel. Vários crimes podem ser elencados. O principal: o assassinato desses animais.
Essa antologia virtual da Ruído Manifesto pensa esse caso inusitado e brutal, seja tratando diretamente do assunto, seja usando-o como pano de fundo para histórias tão cruas e incomuns.
O que há de inaceitável e surreal nesse fato é uma convocação à escrita, e a literatura está sempre alerta para dar vazão ao estranhamento, às indagações e à indignação que nos impulsionam ou assombram.
Bem-vindos à série de contos Lâmina afiada, crânio de cavalo e outros desastres humanos, com curadoria do nosso editor Wuldson Marcelo.
Chegamos a metade do percurso, e hoje o conto é de Wuldson Marcelo, que nos apresenta Eles matam cavalos, não é?
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Eles Matam Cavalos, Não É?
– Deixa de ser fresco, caralho! Quer o dinheiro ou não?
Orelha indagou o rapaz com cara de assoberbado, já com uma das veias do pescoço saltada, pulsando, como se fosse vazar a qualquer momento. Sol queimando os cabelos ralos, quase calvície. Os dois homens suportando o mau cheiro e as moscas ao redor.
Clodoaldo imaginou que se tivesse um canivete acertaria uma das artérias carótidas de Orelha e estaria tudo resolvido. Mas ponderou que ainda não tinha a grana, só dívidas e fome.
– Me disseram que tu é de rocha, mas tá mais pra metidinho, com essa cara de nojo. Cê nem vai comer essa porra.
Clodoaldo olhou para o céu, rezava por uma chuva, pra lavar o sangue espalhado no chão de concreto. “Certeza que deve ser pecado atentar assim contra criaturas de Deus”, questionava-se enquanto o local se tornava cada vez mais quente e abafado, apesar de estarem ao ar livre.
– Olha, engomadinho, pensa na bufunfa no bolso, em recolher o “faz me rir”, sacou? Além disso, tu só tá carregando a carne, eu que tenho que desmembrar esses coitados, romper osso, partir em pedacinhos.
Orelha encarou Clodoaldo, lembrou-se da história que o Pingo de Gente contou, a do garoto ter esfaqueado o Prudêncio num bar no Alvorada, pois o valentão o havia chamado de urubu. Depois disso, Clodoaldo desapareceu por um tempo até a poeira baixar. Ganhou corpo no mundo e o apelido de matador. “Agora tá aqui, parecendo um fracote”.
– Rapaz, o mais difícil é tirar as vísceras dos bichos. Não gosto, e é aí que o cheiro entranha, que parece que os pedaços ficam debaixo das unhas e teu corpo absorve os animais.
“A vida é mais miserável que iluminada”, refletiu Clodoaldo, permitindo-se alguma elegância ao pensamento. Andava na vida jogado à própria sorte, sem mãe e com pai alcoólatra, violento. Gostava de afirmar que se livrar do velho beberrão salvou várias vidas, inclusive a dele.
Orelha não via a hora do serviço terminar. Não tinha se simpatizado com o garoto. Sempre achou gente calada perigosa.
– Como tu veio parar aqui, moleque?
– Não me chama de moleque!
Dessa vez, era Clodoaldo que exibia uma veia do pescoço saltada, a raiva mal controlada, surgida do peso do vocábulo moleque. Não aceitava ser diminuído, sempre reagia, com os punhos, com o canivete, com os 3oitão, era essa a história que contava com quem trombava nesse mundão desvairado. Se mandassem matar, matava mesmo. Mas gostava também de expulsar o ódio do corpo, quebrando crânios. Só não entendia por que diabos precisava transportar carne de cavalo para fábrica de embutidos e defumados. Descolar um troco pra comer e pagar a dívida com o Martelo. Não podia fugir e nem meter uma “azeitona” na testa do fulaninho.
– Você já puxou cana, sangue bom?
Orelha aguardou a resposta enquanto cortava o último rabo de cavalo. Imaginou se alguém escovou aquele rabo ou acarinhou a crina do cavalo que já recebera morto. Seu papel era só destroçar e cortar. Começou o trabalho com a compaixão em alta, porém não demorou para executar cada gesto no piloto automático. Dinheiro para pagar contas e beber cachaça. A filha não entrava em contato faz anos. Ela não sumiu no mundo, somente não queria saber dele. Aceitou seu destino, o desejo da menina dos seus olhos.
– Sabe que não sei se tenho neto ou não? É a única coisa que me aporrinha a vida.
– Sabe que já matei sete homens? Três a pedido e quatro na base da vontade, quando o sangue ferveu.
Orelha olhou para o rapazote, desconfiava dos seus feitos, mas, por segurança, preferiu considerar verdadeira a declaração.
– Então não te chamam de matador à toa?
Clodoaldo não pestanejou na resposta, em demonstrar orgulho de assinar sete passagens para o além.
– Eram pessoas doentes da alma, seu moço! Ruim mesmo. Eu sacrifiquei elas, pois não tinham mais jeito não. Eles matam cavalos, não é? Se um desses coitados tá doente, recebe uma bala… fim do sofrimento.
Orelha largou a serra sabre e o cutelo, pois era hora de lavar as ferramentas de trabalho e se mandar. Entregar a carne para o Tostão e contar o soldo da labuta. O homem observava o jovem, tentava decifrar se era um janota mequetrefe ou um assassino letal, que parecia reservado, mas se tornou um tagarela de uma hora para outra.
Por fim, Orelha apenas concluiu que a vida não tinha sentido, além das necessidades diárias. Dormir bem, foder com gosto, comer para não sentir mais fome, beber para desanuviar e cagar para não sofrer. Pensou se Clodoaldo tinha essa mesma impressão sobre o existir. “Que se dane, esse aloprado!”, sentenciou o trabalhador de um açougue clandestino.
Duas horas depois, após um deslocamento conturbado do Parque Cuiabá até o CPA III, Clodoaldo se viu livre das cabeças dos cavalos.
Orelha, já com o pagamento a lhe oferecer um pouco de encanto etílico, brindava aos sobreviventes das arbitrariedades e desmandos humanos.
– “Eles matam cavalos, não é?”… Puta que pariu! As pessoas têm cada uma!
(Capa: Automedon com os Cavalos de Aquiles [1868], de Henri Regnault).