…E o Quilombo segue resistindo – Por Nina Maria
… E o Quilombo segue resistindo. De acordo com João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (2012) a escravidão de africanos nas Américas arrancou aproximadamente 15 milhões de homens e mulheres de suas respectivas origens. Sabe-se também que o tráfico negreiro demarcou a criação do mundo moderno, desde um sistema econômico, bem como a forte contribuição cultural das diferentes etnias. Em Liberdade por um fio (2012) acredita-se que o Brasil recebeu cerca de 40% dos escravizados da África e, somado à mão de obra indígena, os africanos e seus respectivos descendentes formaram por mais de trezentos anos a maior e principal força de trabalho durante o período de escravização e segue persistindo aos dias atuais. No entanto, apesar da dura realidade, os africanos contribuíram fortemente para a formação dos aspectos culturais, materiais e espirituais do Brasil, desde a agricultura, como culinária, religião, música, artes dentro outros.
Sem dúvidas, o maior símbolo de resistência e característica inerente à escravidão é a fuga individual ou em grupo de escravizados, que procuravam por meio do anonimato fazer parte da massa de negros livres ou formavam quilombos, também conhecido como mocambo, comunidades com os remanescentes fugitivos, chamados de quilombolas ou mocambeiros, que buscaram enfrentar e escapar da brutalidade eurocêntrica e racista. Os aquilombamentos ocorridos no período colonial brasileiro são símbolos de resistência territorial, social e cultural dum povo que, ainda hoje, segue resistindo e confrontando os fantasmas deixados pela colonialidade atrelados com os fenômenos da sociedade capitalista e moderna.
Em meio aos assombramentos da escravidão, no que tange a Bahia, descobriu-se ouro na Chapada Diamantina, fazendo crescer a brutalidade dos Bandeirantes sobre os escravizados. No sertão adentro da Bahia, ao sul da Chapada, nos arredores da cidade de Rio de Contas, formou-se uma comunidade quilombola, nomeada de Quilombo da Barra. Tal comunidade se originou com os homens e mulheres fugitivas e assolados pelos horrores da exploração escravista e, durante muito tempo, serviu como esconderijos para os quilombolas devido à mata fechada assegurando proteção. Com isso construiu-se várias casas feitas de pau a pique dentro da mata e distante uma das outras. Os mocambeiros da Barra se encontravam nas estradinhas feitas por dentro do mata para quando os barões os atacassem, eles tivessem como se reunir e fugir, como conta Dona Jovina, descendente quilombola e figura importante dentro da comunidade. Como lhe foi passado pelos seus ancestrais, Jovina narra que a água e a luz tardaram em chegar à comunidade mesmo pós-abolição. Antes a única fonte de água era o Rio Brumado e aos poucos tudo foi melhorando até as estradas, pois a caminhada para Rio de Contas e Livramento durava três longos dias adentro do sertão da Chapada. E o Quilombo da Barra segue resistindo.
Como uma comunidade centenária remanescente, os quilombolas da Barra possuem para além de resistências, tradições que contam muito sobre a origem e a constante luta para permanência de seu povo, a saber, o artesanato, a sua maior herança cultural. Na região da Barra plantava-se muito algodão, cada casa possuía hectares originados das bisavós da comunidade, que pegavam o algodão fiavam numa linha e prosseguiam para o tear, onde era feito o tecido de algodão. Com isso, desfiava-se o tecido para produzir peças de roupa, como anáguas, camisas, cobertas, dentre outros. A comunidade não possuía acesso aos estudos – uma das grandes marcas do pós-abolicionismo –, o artesanato criado pelas tataravós e bisavós, como símbolo de resistência, apelidado de Saberes e Fazeres – saberes e fazeres tipicamente da cultura negra – refere-se à época na qual os quilombolas em dia de festa, geralmente aos sábados, reuniam-se dentre comadres e amigas e partiam com o fio, a linha e o fuso e passavam à tarde costurando, quando uma não sabia a prática do artesanato, aquelas que a dominavam a prática as ensinavam, tal como uma contação de história, para manter a tradição viva até os dias atuais. No entanto, com o passar do tempo muitos quilombolas foram falecendo e os artesanatos antigos jogados fora dado o entendimento que, ao morrer, não fazia mais sentido manter aquelas peças que remetiam as pessoas. Verifica-se então, que muitos itens se perderam, posto que dada à influência do racismo externo e a falta de comunicação entre os mais velhos e os mais novos, contribuiu-se para o apagamento da cultura, bem como a autocensura após a abolição da escravatura, tendo em vista que não foi ensinado aos negros a valorização das suas origens, como aponta a organização Repórter Brasil, que realizou uma pesquisa e entrevista não só no Quilombo do Barra, como também em Bananal, uma outra comunidade quilombola da região de Rio de Contas.
Em meio a essa grande perda cultural, há 30anos a tradição artesanal na comunidade renasceu por intermédio do Curso do Crivo Rústico – saco de algodão que ensacava os frutos das plantações – pelo SENAC e SEBRAE para resgatar todas as produções artesanais da Barra. Os professores foram os próprios quilombolas, detentores de todo conhecimento e tradição, que se alocaram na igreja de São Sebastião da comunidade e lá foram feitos muitos panos de prato, jogos americanos, centros de mesas, almofadas. As primeiras peças construídas por elas, as descendentes de toda tradição, que começou através do fio trançado atraindo muitos turistas, que visitavam a cidade de Rio de Contas e partiam para conhecer a comunidade. Muitos desses visitantes adquiriam as peças artesanais e contribuíam para fonte de renda do Quilombo da Barra, bem como incentivava mais e mais mulheres a também produzirem, a fim de divulgar a tradição, como relata dona Jovina. No pátio da igreja foi feita uma cabana com palha de banana e lona para realizar as vendas, no entanto, por causa das chuvas, o sol e a poeira constante, que danificavam toda a produção, foi construído uma loja de blocos, apelidado de rancho por Dona Jovina, para reunir todo trabalho realizado por um grupo de quarenta artesãs e melhor recepção e atendimento dos turistas. Devido ao número grandioso de artesãs foi construído uma segunda loja, não só para dividir as peças, mas para incentivar toda a equipe a produzir e adquirir seu ganha-pão, tendo em vista com o passar do tempo e a modernização, muitas mães possuem filhos na universidade e as vendas do artesanato ajudam a mantê-los estudando, assim como contribui para a renda da família dentro do quilombo. Porém, mesmo com todos esses avanços parte da comunidade, principalmente algumas mães, migrou para outros territórios com melhor desenvolvimento social e econômico, como Vitória da Conquista à procura de estudos para seus respectivos filhos. Deste modo, restou uma pequena parte das artesãs do Quilombo da Barra, que seguem resistindo pela da cultura do artesanato, passando seus conhecimentos para gerações mais novas a fim de manter toda a tradição secular dos saberes e fazeres, que tanto diz sobre o passado doloroso, assim como o presente repleto de lutas e o futuro com possíveis inseguranças, mas inabalável com a fé a força de um povo, que busca se firmar cada vez mais.
Dessa forma, é tempo de aquilombar-se como colocou Joselicio Júnior (2019) na Revista Forúm e Conceição Evaristo no poema “tempo de nos aquilombar”. É tempo de se reconectar com as ancestralidades e os saberes do povo negro, para atuar no presente e contribuir para um futuro melhor, pois, entende-se como quilombo uma comunidade que se originou pela coragem e inteligência de um povo subestimado, que procurou não se curvar, como diz Júnior (2019), para as dificuldades e barreiras oriundas desde o tempo da escravidão.
A luta do Quilombo é uma luta de sobrevivência, uma luta contra a falta de emprego, assim como também por políticas públicas básicas e necessárias para a população remanescente. E essa luta política e social que precisa ser coletiva, pois aquilombar-se é, além de nutrir e buscar autocuidado e afeto, construir uma luta e organização antirracista. Sem dúvidas, é tempo de aquilombar-se.
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REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
JÚNIOR, Joselivio. Tempo de se aquilombar. Revista Forum, 2019. Disponível em: https://revistaforum.com.br/opiniao/2019/4/29/tempo-de-se-aquilombar-55485.html. Acesso em: 15/05/2022
BRASIL, Repoter. O quilombo resiste. Brasil, 200. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2000/09/o-quilombo-resiste/. Acesso em 14/05/2022