Fragmentos do poema “Deslumbre migratório” de Emma Villazón, com curadoria e tradução de Gladys Mendía
Emma Villazón (Santa Cruz de la Sierra, Bolivia, 1983 – El Alto, Bolivia, 2015). Escritora e pesquisadora em linguística. É uma das vozes mais valorizadas da poesia boliviana recente, publicou as coletâneas de poemas Fábula de uma queda (La Hoguera, 2007), Lume de cervos (La Hoguera, 2013) e, postumamente, a obra inacabada Temporárias e outros poemas, que foi publicada em 2016 em duplicado: em Santiago do Chile, nas edições Das Kapital, e na editora La Perra Gráfica em La Paz.
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Fragmentos do poema “Deslumbre migratório”, de Lumbre de ciervos (La Hoguera, Santa Cruz, 2013)
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noturno de calor na planície: manto sufocante de insetos que cintilam anfíbios caracóis jovens edifícios vibrantes sonoridade do imenso espesso que entra e sai dos poros copo livro ou também mão que escorre acústica tropical cor de ágata e mergulha as costas em forma de bicho de rio
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Coto, instante, começo
talvez de uma árvore
que não seguiu adiante.
Algo que se raspa demais de um lado
para que surja do outro. Não há razão nem suavidade nisto.
Um véu dourado cobre a tarde, que começa de noite. E isso
continua rangendo, temerário, mesquinho, sem florescer — batendo
duro — entre madeiras, noticiários.
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A um quarto do caminho a casa primeira deu passagem à segunda
a casa primeira deu passagem à segunda a um quarto do caminho
A um quarto do caminho adquiriram nomes: casa de além diminuída
casa daqui vivida casa de devoção casa de esgrimistas
casa de empenhos dobráveis casa de trocas ziguezagueantes
A um quarto do caminho a um quarto do caminho a pele vivia cortes oblíquos
Os hálitos de cães países moedas fundiam-se em uníssono
e existiam, não existiam perda nem casas nem caminhos a um quarto do caminho
a um salto do caminho a um tiroteio do caminho a uma explosão do caminho
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como diante da vista do vale, faça a ideia,
os lugares se sobrepõem, vive-se mais ou menos entre roçar
a um cálice a uma maca, partindo-voltando, dividida, sem retorno
no início não há mais que um “era uma vez” demasiado viscoso
Parece
que chegas à primeira casa de aves em reconstrução
e palpas a severidade que o movimento imprime.
De perto as mudanças murmuram em roupas estendidas
sobre arbustos de infância ressecada. Abaixo os personagens exigem gotejam.
Parece que na sala uma coluna cresce em verbos que lutam contra tantas rotações. Não te detenhas,
nos corredores fazes aberturas com os dentes. Já se
levantará o ar a galo antigo ao qual querias voltar para não
voltar, o galo de esporas de prata, as latas de céu e escuridão —
Parece.
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* Gladys Mendía (Venezuela, 1975) é escritora e editora. Tradutora do português para o castelhano, contando entre seus trabalhos de tradução a antologia poética de Roberto Piva intitulada “A catedral da desordem” (2017). Foi bolsista da Fundação Neruda (2003 e 2017) e participou do Workshop de Criação Poética com Raúl Zurita (2006). Publicou em diversas revistas literárias, assim como em antologias, sendo a mais recente “Temporary Archives, Poems by women of Latin America”, ed. Juana Adcock e Jèssica Pujol Duran, ARC Publications, 2022, Reino Unido.
Seus livros são: “O tempo é a ferida que goteja” (2009); “O álcool dos estados intermediários” (2009); “A silenciosa desesperação do sonho” (2010); “A grita. Reescrita de As Moradas, de Teresa de Ávila” (2011); “Inquietantes deslocações do pulso” (2012); “O canto dos manguezais” (2018); “Telemática. Reflexões de uma adicta digital” (2021); “LUCES ALTAS luces de peligro” (2022) e seus mais recentes livros cocriados com Inteligência Artificial: “Fosforescência tigra”, “Aire” e “Memorias de árvores” (2023).
Ela é editora fundadora da Revista de Literatura y Artes LP5.cl e LP5 Editora, desde o ano de 2004. É cofundadora da Furia del Libro (Feira de editoras independentes, Chile). Como editora, desenvolveu mais de vinte e cinco coleções de poesia, narrativa, ensaio e audiovisuais, publicando mais de 500 autores.