Cinco minicontos de André Mellagi
André Mellagi nasceu em 1973 em São Paulo (SP), é psicólogo e escritor. Publicou pela editora Patuá os livros de contos Bricabraque (2017) e Interfaces (2019), além de colaborar com textos a várias revistas literárias online ou impressas.
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RECREIO
Breno não teria mais aulas de matemática, mas também perderia o recreio quando costumava trocar cartas Pokémon com Artur. Nem poderia chegar perto dos amigos da rua, mesmo que ninguém estivesse tossindo. Se você ficar perto da vó é capaz dela ficar doente, foi a explicação que deram para proibir os almoços de domingo na Mooca, ainda que purificasse as mãos com álcool em gel depois de tocá-las em tudo que era tangível. De tantos vilões poderosos, meteoros gigantescos, monstros que destruíam prédios inteiros, era um inimigo minúsculo que apavorava o mundo sem um super-herói para salvá-lo. A festa da Mafê foi cancelada. Uma bola de futebol murchava num canto do quarto. Breno assistia da janela a um mendigo arrastando pela rua o entulho de medo e silêncio que a cidade acumulava.
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PLANTÃO
Célia paramentou-se com um terço debaixo do avental descartável. Paciente do 347, baixa saturação, a rouquidão não completava um pai-nosso quando precisou entubar. Segurou a mão emborrachada de Célia, que comunicou sob a máscara N95 que tinha algo para mostrar. Registro de aumento de taquipneia ao ver a foto da filha com a neta que acabou de nascer. Hipotensão estável no coração transplantado do paciente, que ainda lhe permitia ver os olhos escuros de Célia através da proteção ocular. A voz da enfermeira também naufragava entre a busca de ar e de palavras. A mão fraca e paliativa do paciente não soltava a de Célia, está tudo bem agora, pode ir, obrigado por estar comigo, despediu-se mudo antes da enfermeira fechar o quarto de isolamento.
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PANDEMIA
Quarentena e quaresma, expiação e ressurreição. O maremoto da praga em ondas de perdigotos que avançam de um mercado de Wuhan. Lockdown do fluxo de bens e capitais, dos contratos sociais e dos encontros marcados por aplicativos. Adiamento das férias, das festas, das previsões engolidas pelas margens de erro. Súplicas em preces sufocadas por Covid-19. Distanciamento do desejo. Confinamento dos suspeitos. A mensagem de socorro sucedida pela a receita de bolo de milho numa live em banda larga. Tédio e desespero contemplam a rua vazia de mãos dadas. A confirmação do resultado positivo da pandemia de incerteza. Formadores de opinião recrutando seus exércitos para uma guerra sem mapas. Não se ouve a voz da razão quando o grito do pânico é mais alto.
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MOTIVACIONAL
A conta de luz chegou sem desconto das horas a mais que a família teve que ficar em casa. “Toda adversidade é uma oportunidade para o crescimento”. O aluguel do mês veio implacável e indiferente às perdas que teve, sem as encomendas de decoração aos eventos cancelados. “Não permita que a crise fale o que você deve fazer, diga a ela o que quer que ela faça por você”. O termostato da geladeira pifou e não tinha onde comprar e quem trocar a peça. “Aproveite o isolamento para aprender um curso online e incrementar sua carreira!”. A vizinha bateu à porta pedindo um quilo de feijão depois que o marido perdeu o ponto onde vendia cachorro-quente. “Aplicativo ensina técnicas infalíveis de relaxamento, baixe agora!”.
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ROTINA
Os vinte dedos espalhados nas mãos e pés de Jacyra foram poucos. Principalmente os das mãos, afoitos por outros dedos na ânsia de aplicar esmaltação ou alongamento de fibra de vidro nas unhas. Oito dias com o salão fechado, deixava os atores da reprise da novela falarem à toa, enquanto retirava mais uma vez as cutículas que mal apareciam. Primeiro foi Patrícia, que aceitou que a mãe fizesse as unhas dela todos os dias, alternando combinações do kit de trinta cores que poderiam durar uma vida em quarentena. Depois foi a vez de Antônio. Deixa de frescura, homem, ninguém vem aqui e tu não pode sair de casa mesmo! Se eu não sossegar, capaz de pintar as unhas do gato! Cinco dias depois, Antônio quis experimentar o azul cintilante.