Cinco minicontos de Lourença Lou
Lourença Lou é mineira de Belo Horizonte. Cursou Letras na UFMG e se especializou em Administração Escolar. Foi professora, diretora de escola e, nos últimos 15 anos, foi empresária. Publicou, pela Editora Penalux, três livros de poesia: Equilibrista, Pontiaguda e Náufraga. Participou de inúmeras antologias, de sites e revistas literárias, nos quais publicou contos, crônicas e poesia. Ainda este ano, lançará o livro Overdose – 101 contos breves, com foco no universo feminino.
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Os filhos da Pátria
Desde que perderam a mãe, o pai intensificou suas ausências. Os meninos não entendiam, mas a filha mais velha apoiava o pai, mesmo não sabendo exatamente o que ele fazia. Ele conversara com os filhos. Explicara que era preciso defender a liberdade do país para que eles tivessem um bom futuro. Mais tarde eles entenderiam. Todas as noites ele saía e chegava tarde. Depois, passou a chegar de manhã. Um dia não voltou. Um desespero silencioso correu pela casa. Os vizinhos nada diziam, apenas tinham olhos piedosos. Ajudavam no que podiam. Tempos depois o pai voltou. Tinha o olhar raivoso e as mãos machucadas. Faltavam algumas unhas, deixando os dedos com estranhas pontas vermelhas. A casa ganhou uma vida diferente. Durante o dia, silêncio. À noite, pessoas entravam e saíam e vozes baixas corriam pelo corredor. Os meninos não podiam mais falar o nome do pai. Não podiam brincar, não podiam correr, não podiam falar quase nada. As janelas eram fechadas antes do sol se esconder e as flores murcharam nos vasos. Livros e papéis amontoaram-se no quartinho dos fundos. Vez em quando o pai recebia amigos. Falavam baixinho. Dormiam no quartinho, em meio aos papéis e livros. Uma noite a porta da casa foi arrombada. O som parecia a explosão de uma bomba na cabeça das crianças. Homens enormes de botas pretas levaram os livros e os papéis. Levaram o pai e seus amigos. O pai nunca mais voltou. Voltou seu corpo.
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Overdose
Amava-o. Tanto que sempre esteve disposto a ignorar todas as suas mulheres. Aceitara continuar sendo sua sombra. Até aceitara continuar sendo homem daquela namorada que ele lhe arrumara. Eram esquetes necessários à grande encenação onde era o ator coadjuvante. Ainda assim Pedro o traíra. Uma traição muito além daquela carne tenra, daquele sorriso de garoto que lhe fora apresentado. Era o brilho de amor que os dois trocavam. Um brilho que nunca se acendera para ele. Deixou-os na sala. Não daria a eles o espetáculo das suas lágrimas. Lá fora a noite o abraçou. Deu-se ao choro. E caminhou até os pés se cansarem de chão, o rosto se fartar de sal, a mente voltar a se iluminar. Havia um limite para sua aceitação. Tirou do bolso a carteirinha branca. Olhou os papelotes de cocaína. Cinco gramas de sonhos. Cinco pequenos passaportes para o grand finale. E foi pensando assim que entrou no quarto onde Pedro dormia. No dia seguinte, vestiu-se como se fosse seu casamento. Entrou na imponente igreja disposto a manter-se sóbrio, digno, rosto sofrido, mas seco. Ignorou o desfile de óculos escuros, a falta de cores das roupas e os esparsos e surdos soluços à sua volta. Foi direto à urna que a família dele rodeava. Olhou-o e sentiu um pequeno aperto no peito. Ao ouvir as últimas palavras do padre os olhos arderam: – Pai, perdoe este filho. Ele não sabia o que fazia. Chorou. Não de arrependimento. Faria novamente se necessário fosse. Chorou pela saudade que iria sentir.
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A força de Dalila
A tarde se estendia. Chuva mansa acariciava os canteiros de miosótis. Deixou-se ficar olhando as gotas descendo pela vidraça. Antes, não se importava de estar ali. Havia muito tempo não sentia nada. As sensações morreram quando ainda era criança. Debaixo do cinto e do sexo do pai. As meninas da casa diziam-lhe que alguns homens as faziam tremer. Com ela nada acontecia. Deitava-se com todos os homens nos quilômetros que separavam a fome e as míseras notas que garantiam o sustento da família. Homens suados e de mãos invasivas. Entregava-lhes tudo. Até conhecer Júlio. Sem que percebesse, a chuva parou. Como começara. Mansa e silenciosa. Vestiu-se. Olhou o quarto. O cheiro de lavanda barata a fazia sentir-se limpa. Reservara aquela noite para ele. Queria esperá-lo como se ele fosse seu primeiro homem. Pensou nos olhos de Júlio brilhando nos seus. Alto e magro. Sorriso enfeitando o rosto de pelos ralos. Um fio de calor começou a correr dentro dela. Parou ali entre as pernas. Cresceu. Sorriu. Enfim, reagia. Nascia a fome de ser tomada, mastigada, engolida. Gargalhou. Outra vez. E de novo. Até que a porta se abriu. E veio a notícia. Ela agora seria exclusividade do maior fazendeiro da região. Nenhum outro homem subiria ao quarto dela. Olhou a tarde morrendo lá fora. O grito triste da juriti entrou-lhe pelos ouvidos. E a fome dos irmãos ecoou em notas fúnebres. A mulher dentro dela mal nascera e já morria ali. Podia ouvir até os sinos anunciando o cortejo. Sem choro, sem flores, sem velas.
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Guerrilheira
O capim seco e alto, um amarronzado infinito, arranhava rostos e braços. O medo os comia por dentro. O mesmo medo que os fazia aguentar aqueles lanhos na carne, o sangue secando sobre a pele dolorida, a fome a deixá-los cada vez mais bambos. Quando a noite chegou só havia o céu muito negro e bilhões de estrelas a cobri-los. Vamos nos deitar nesta picada – um dos meninos quase implorou. Beto a puxou contra seu corpo, enquanto os outros se acomodavam por ali. Sentiu sua ereção nas costas. Como ele podia querer sexo? Seu irmão havia sido preso e só Deus sabia o que lhe fariam. Com a língua, ele lhe acariciou o rosto. Apertou mais seu corpo no dela. Não sabemos o que vai nos acontecer amanhã – ele sussurrou no seu ouvido, arrepiando-a. Foi um sexo desesperado, com gosto de rio sujo. Descobriu depois. Eram suas lágrimas fazendo-lhe lama no rosto.
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A executiva
Era uma festa barulhenta, cheia de gente bonita e mil perfumes dançando no ar. Ela, enfastiada. Estava em TPM emocional. No dia seguinte jorraria seu sangue na busca de uma assinatura. Selaria o destino do seu futuro profissional. Ele chegou desajeitado. Quase pedindo desculpas por existir. Olhou-o sem vontade. Descartou-o sem nem pensar. E continuou ausente de tudo e de todos. Insistente, ele se fez presença. Com voz gaguejante fez uma pergunta. Não ouviu. Não queria. Ele ficou ali, parado. Mesmo sem querer, sentiu sua solidão. Olhou-o com raiva. Sua palidez a atingiu. Algo nela se constrangeu. Cedeu. Deixou-o falar. Descobriu, ele era viúvo. Carregava o fardo de um passado interrompido. Só queria tirar os sapatos, ter quem juntasse os pés aos seus. E tomar vinho nas noites de inverno com um corpo quente a marcar o colchão. Mas não sabia mais investir. Era um apaixonado que acreditara na eternidade. Agora estava buscando na sorte a sua atualização. Olhou-o com vontade de gritar. Depois de um longo treinamento para amordaçar as emoções, estava ela ali quase oferecendo colo a um desconhecido. Saiu sem se despedir. E nunca mais o esqueceu.
iVY mENON
sou suspeita, Divanize, para falar dos contos da Lou, porque tive o prazer de ler, alguns deles, antes de serem publicados! Sem TOP³³³3! Caracas! Navalha na carne, sem perder a ternura, como pode isso? Um prazer imenso ver os contos dela, na Ruído Manifesto.
Garanto que vale a pena conhecer, para se deliciar! um baquete literário: de uma beleza cruel! Sensibilidade navalha na carne! e… toda ternura possível!