Cinco poemas de André de Carvalho
André de Carvalho nasceu em São Paulo, em 1989. Mora em Porto Alegre. Tem contos, crônicas e poemas espalhados por antologias e fanzines. Estreou com o livro de contos Complexo C (2019). Os cinco poemas aqui reunidos fazem parte de seu novo livro, Nada é quanto basta, que será lançado em 2020. Nada é quanto basta reúne 61 poemas que celebram a poesia marginal, atravessando temas recorrentes na tradição lírica, como amor, solidão, descaso e morte.
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Poema em construção
martelo bate, piso cede.
meu sorriso quando chove.
cisões onde tropecei
deixando um bloco de terra encrostado outrora
em bota sem sola nem mola
na palma de uma luva sem relevo.
martelo bate enquanto escrevo.
prometeu o fogo oferece.
num sonho pagão sem sono,
tramo palavras em vigília.
um café de barro resvalento
é passado no vão das entrelinhas.
martelo bate, martelo bate.
toró se precipita.
faço silêncio na hora da morte.
todo caderno termina rasurado
ou franzino de tanto rasgado.
toda bala perdida
é um êxito malogrado.
martelo bate.
poente, o sol se esconde.
filtro opaco do reposteiro.
brilho ancestral que empalidece.
fiz a dança da chuva
quando os deuses rejeitavam preces.
*
Fungos decimais
foram os outros,
foram eles!
estava anunciado!
foram eles que o derrubaram
deleitados com sua agonia.
foram eles!
deitaram sua cabeça em coxim
de curar lepra com ritos esotéricos.
foram eles!
declamaram versos-cimento com rimas fáceis.
recitaram palavras estáticas com fins estéticos,
redundando em jocosidade burlesca.
foram eles! foram eles!
mas tudo bem. todos sabem
que é só mais um que dorme no asfalto por indolência,
deixando o ádito desimpedido.
doravante, não nos concerne o peso da culpa.
em joelhos prostrados, seguros.
*
Domingo
hoje é dia de vencer a apatia
da escala seis pra um.
que o frêmito de alegria
seja inversamente proporcional à nossa miséria.
que os frígidos também se exaltem
com a bola salva da fogueira,
dando origem ao lance do gol.
hoje é dia de algarvia
tarimbada em saçaricos de baile.
que as mandingas tornem loquazes
seus corpos nicóticos.
hoje também é dia
de não sei qual santo.
hoje é dia de esquecer
o triunfo dos inimigos.
*
Pedra turmalina
zenaide está em repouso,
distante dos muros construídos
com o que sobrou da obra
da piscina da casa de sinhá
(gentil cortesia).
zenaide está envolta
em roupa verde de hospital-sucata.
antes de ser internada,
deixou tudo mais que limpo
com bombril e creolina.
zenaide, pedra turmalina
num quarto ornado
por coroa de crisântemos
(gentil cortesia).
zenaide reluz
em coma profundo,
gozando férias.
*
Descartável
peço indulto
a todo poema
que não sirva senão
à causa da pena.