Cinco poemas de André Nogueira
André Nogueira: nascido em 1987 na cidade de Herdecke, Alemanha Ocidental. Registrado cidadão brasileiro no Consulado em Munique. No Brasil desde 1991. Vive atualmente na cidade de Campinas. Formado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas e em Literatura e Cultura Russa pela Universidade de São Paulo. Poeta, tradutor. Autor de O Presidente me quer morto (Urutau, 2019).
Os cinco poemas abaixo são inéditos.
***
Questão de matemática
Um momento, deixa eu só fazer as contas.
Subtrai três por cento…
Não entendo por que alguém seria contra.
Um pauzinho pra baixo, dois pra cima,
agora examina se é grande o esforço:
tira um quarto, um quinto, um sexto,
à guilhotina — o pescoço,
a cabeça — no cesto.
E tira um sétimo, um oitavo,
um nono dente da gengiva,
mas brigar por um centavo,
coisa tão inexpressiva, —
não seja a tal ponto sovina:
vem deitar
você também
na guilhotina!
Sorria, pois, sem dentes,
e venha com a gente
oferecer pelo país a cabecinha!
Vai a sua, vai a dele, vai a minha,
a do vice, do assessor, do presidente…
O que foi? Você supôs
que nossa equipe é tão mesquinha
e a tal ponto incompetente
de o quanto não saber é dois mais dois?
Dos cem homens do governo
eis que senta a esta mesa
o maior economista
ante o mais simples dos problemas.
Quando, súbito imprevisto,
a divisão fica difícil:
pois barras de ouro nós temos,
mas partir de chocolate uma assim,
sem mais nem menos.
O ministro trouxe a lista
dos urgentes sacrifícios:
alguns cortes é preciso,
porém não desconfiemos:
deixemos que ele mesmo
quebre ao meio
o próprio fêmur.
Metade do ossinho ao presidente,
outra metade ao erário
de seu próprio ministério.
Viram só? Não tem mistério!
Qualquer um acerte a conta
e divida enfim por zero!
Não entendo
por que alguém
seria contra…
Agora, em tempo, nós daremos o exemplo:
vai a sua, vai a dele, vai a minha —
dos cem homens do governo
bastam só três cabecinhas.
10 de maio 2019
*
Tratante e repulsiva
mas verde-rubi,
amante assaz da carne-viva
ela sabe dançar,
E se prestarmos atenção
ao zumbir da varejeira,
pode ser que o amor com a repulsa se alterne.
Ela zumbe enquanto paira,
hipnótica no ar,
seduzindo assim o boi
na carne dele a preparar o tenro berço para o berne —
seu filhote.
Condecorado e imponente
verde-merda,
bebedor de sangue-quente
que mortífero decola,
O helicóptero agitando
do exército a bandeira,
sua férrea carapaça só nos resta abominá-la.
Com estrondo sobrevoa
o telhado de zinco da escola,
fazendo criança chorar,
para meter no coração de um inocente sua bala —
de morte.
11 de maio 2019
*
Faz tempo que um fascista não me insulta.
Exatamente dez minutos
e cinqüenta e dois segundos.
Pôs pra fora a língua inculta,
me chamou filho da puta,
repreendeu minha conduta
de esquerdista, comunista, vagabundo,
Comedor de criancinhas, gentalha corrupta,
escória do mundo, maconheiro de uma figa.
E bradou além de tudo que, certeza absoluta,
sou infiel, sou o próprio diabo,
a semente do mal: Deus castiga!
Faz tempo que um fascista não me xinga,
um evangélico não surta
nem me diz o que enfiar no próprio rabo,
que um pacato cidadão não me insulta,
mostra os dentes da mandíbula,
a língua de víbora,
igual louco gesticula,
o cuspe por tudo respinga:
que pobre coitado!
Fiquei um instante à escuta,
estupefato do espetáculo e com muita,
muita vergonha por tanta parlenga.
Vai saber é minha culpa,
cutuquei com vara curta
o monstrengo.
Sou mais cruel do que ele pensa:
um sorriso, de orelha a orelha, lhe dou
e, ao chegar em seu andar o elevador,
com polidez e complacência,
perdoando-lhe a ofensa,
abro a porta para ele e digo:
“Desejo um bom dia, senhor”.
Esbofeteia com nobreza o inimigo,
pois o seu maior castigo
é ser da própria inteligência o ofensor.
12 de maio 2019
*
A Fontana da Ducha Dourada
— Um monumento para o “mito” —
Hoje na praça do quartel inaugurou-se uma fontana.
Quais os bálsamos, será, que perfumosos dela manam?
A madeixa cor de fogo, que as ancas floreia,
seu cofrinho a encobrir, sob a mão branca de sereia,
a outra mão, sem timidez, no aconchego de seu seio,
o cristalino, a seus pés, dos mares gregos que ondeiam..?
No suporte laureado, — o que vemos? —
em vez do quadril tão formoso da Vênus,
numa cuba colocada, como numa enorme concha,
esticando do uniforme militar a sua coxa,
o imponente estatuário de insólito granito
na fontana se firmou: um monumento para o “mito”.
Assim, em pose de sentido, a mão no quepe oficial,
a outra mão levada ao peito para o hino nacional,
ereta a coluna, o terno cheio de medalhas,
o trabalho de um artista — lhe rendeu um belo talhe!
E eis, com asas a bater, sobre pilastras esculpido,
lhe apontando o arco e flecha — um cupido.
E dentre as pernas rechonchudas, do angélico sexo
a jorrar, abundante, sobre o quepe do exército
uma ducha dourada… A terra mana leite e mel…
Ali está, em plena praça do quartel,
o capitão que, num bidê ao farfalhar de cachoeiras,
diz-se o mito salvador de toda a pátria brasileira!
Indigente, como um doido num banquinho dessa praça
solitário delirasse, sob efeito da cachaça,
com a deusa do amor perante o seu perfil noturno,
o país, nessas águas borracho, lhe adora o coturno!
No quartel há militares, sem que o batalhão descubra,
que a sós no chuveirinho pensam nele e se masturbam
e enquanto os poderosos digladiam com seus falos
todo o sonho da nação desfeito escorre pelo ralo.
13-14 de maio 2019
*
A trezentos por hora, de vidros abertos
e, no último volume, um velho hit do Roberto.
Ao entrar na contramão, ele buzina
e pisa no breque, mas em vão —
passa por cima
do moleque…
Eu quero apenas buzinar meu calhambeque!
Bip bip, se um jipe militar
ou se civil caminhonete,
calhambeque, decerto, não é.
Um velho hit do Roberto,
um cidadão-de-bem qualquer.
Fato é que olha dos lados — ninguém mais! —
e com a cara de malvado — sai detrás! —
engata a ré.
A tração quatro por quatro
nas costelas do moleque…
Eu quero apenas buzinar meu calhambeque!
Bip bip, atropela pra matar.
Se um jipe militar, ou se civil caminhonete..?
Ele salta do automóvel — “Ainda se move!” —
dá-lhe um tapa splish splash
e traz consigo o cacetete, —
nas costelas, na garganta, na cabeça — até cansar!
Careca vermelha de ira — “Ainda respira!” —
volta ao jipe militar, sua civil caminhonete,
saca então do porta-malas
a AK-47 e — bye-bye! —
recheia de bala
o moleque…
Eu quero apenas buzinar meu calhambeque!
Bip bip, assim igual no GoldenEye
007.
Se um jipe militar, ou se civil caminhonete..?
— Que estouro! Valeu a pena cada centavo!
Quero apenas praticar meu tiro ao alvo!
Bem, desculpem mas agora vou embora…
Bip dubi indupi dubi, liga o rádio e acelera,
afinal, mulher e filhas o esperam pro jantar.
Lá vai ele, a trezentos por hora:
— Mexeu comigo, fuzil vai cantar!
Se civil ou militar?
Um cidadão-de-bem qualquer,
algum homem de família que só quer
ter um milhão de amigos
e bem mais forte poder cantar.
21-22 de maio 2019