Cinco poemas de Mônica de Aquino
Mônica de Aquino (1979), nasceu em Belo Horizonte. Publicou Sístole em 2005 pela editora Bem-Te-vi. Seu segundo livro, Fundo falso, que sai agora pela Relicário Edições, venceu o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 2013. Participou de antologias como Roteiro da poesia brasileira 2000 (ed. Global) e A extração dos dias (Escamandro).
***
O FÓSFORO brilha por sete segundos
entre o corpo inofensivo e o incêndio
até que um sopro encerra a potência
poderia espalhar o fogo
decidir a cada risco:
acendo uma caixa inteira, teste
e controle, calculo:
já sei o tempo do fogo, fecho os olhos
cinco segundos, o sopro, sinto a fagulha
nos dedos, acendo outro, ainda de olhos fechados
o calor me fala da luz que não vejo
apenas um fósforo, abro a torneira,
a água do mundo poderia escorrer aqui
de onde vem, o que traz
a água constante, o fogo efêmero,
este duplo exercício no meio da tarde
Deus pensando novos princípios
a mesma dúvida: fogo para Sodoma,
água para o dilúvio,
a única regra comum é não olhar para trás.
Fogo para Isaac,
água para encerrar a travessia.
Seguir à deriva, caminhar para onde,
estou no apartamento, quero destruir
as cidades antigas, o que vi, os inimigos
acendo outro fósforo
deixo a torneira aberta
sonho estratégias de destruição.
*
Penélope e as Parcas
A morte exige tessitura delicada
tecer um sudário é tramar uma asa, véu de noiva
camada de nuvem, teia que floresce em casulo.
Forma que exige fazer, desfazer, sobrepor
não simulo: antes, é este o método da mortalha.
Não se entra duas vezes no mesmo rio
nem no mesmo mar, cama, corpo
não se recupera um fio, é sempre outra a urdidura
na sombra do exercício: tecer, destecer,
construir uma ruína sem vestígios,
sudário como cidade em chamas
que ilumina a noite.
A morte exige outra pele, tela composta
faço, desfaço, Moira que confunde agulha, linha
tesoura
enquanto a distância joga com as Parcas
entendo:
é de Odisseu o sudário que teço.
*
JOSÉ adotou a dor como método.
Para vencer um problema
que se fez carne, entranhado
colocava todo dia
uma pedra no sapato
assim mesmo, sem metáforas
ou meios-termos: era homem de atos.
A dureza da pedra – e da técnica
mantinha em José o foco
a alma sóbria
a mínima cicatriz como aviso.
(O homem, ainda jovem
habitou o calor do norte
e teve amigo matador
do tipo que extirpa o mal
pela raiz:
decepou o próprio dedo
para vencer o gatilho.)
Aos poucos a pedra gasta
ao corpo assimilada
fez-se pele sangue lastro
um árduo aprendizado:
a perfeição do rigor.
No exercício do amor.
*
O JOGO acontece do outro lado do espelho, Kitty
sem o acaso das cartas, casas fixas
comer tudo que passa: peão, torre, rainha
o exercício de um outro, contrário
enquanto você habita o vermelho.
Mas na orla do espelho há a morsa
etapa central do jogo:
vence quem habita seu corpo ilógico,
sem piedade, é tênue a ética do vidro.
Ver o oceano nas ostras, devorá-las sem pena
o jogo é este, rainha vermelha, o mar, a areia
tudo o que ultrapassa.
Depois de ouvir sobre um castelo de cartas
você lambe o branco,
a lógica, a lógica era só um caminho
para o que o absurdo toca
a estratégia final é o corpo
disforme da morsa, a vida disforme da ostra.
Tocar o outro lado do espelho, Kitty-rainha,
com a boca,
palavras abstratas se partem
apenas este sentido do excesso
tudo o que multiplica o espelho.
(é o que vejo nos olhos de Alice)
*
depois de Sonhos, de Kurosawa
O que jaz perfeito como um retrato
não serve para a pintura.
É preciso a tessitura do erro
o toque de um disfarce
captar-se em toda luz sob o desterro
o voo torto do corvo, talvez
o brilho da noite.
A vida que se arremessa como locomotiva
em desespero para reter o encanto
repetir-se e repetir-se até ter em si
o quadro, inteiro, como nova natureza.
É preciso incorporar paisagem à pele
atravessar a ponte percorrer o campo
saber da loucura o canto da sereia
ou arrancar as orelhas
seduzir-se por qualquer forma
de beleza, e ser preciso
até que de si reste apenas um girassol
sob um sol implícito.