Cinco poemas de Piero Eyben
Piero Eyben nasceu em Brasília, em 1981. É poeta, doutor em Literatura, professor de Teoria da Literatura na Universidade de Brasília, traduziu Derrida, Joyce, Nancy, Safaa Fathy. Publicou os livros de poesia ocos (pela Lumme editor), voo de rapina, Trilogia de perdas, que inclui os volumes: Um móbile no peito, Algum olhar apesar e Cada vez tuas mãos (publicados pela Editora Horizonte), Algum olhar apesar, plaquete publicada pela coleção Megamíni, da 7Letras, e Filete de sangue, A galope, Loa contínua e Nome próprio, pela C14 | casa de edição. Entre os livros de teoria e filosofia, publicou Escritura do Retorno: meta-signo em Mallarmé e Joyce, Dizer – da aporia e Abismo por paixão e A origem da escrita, além de ter organizado mais de dez livros teóricos e ter publicados diversos ensaios acadêmicos nas mais diversas revistas.
***
gesto suspenso
acabo deixando
essas mãos abandonadas
por um gesto depois
da palavra e ainda assim
o dia corre em pelos cobres
sem que as lâmpadas
à força se acendam todas
enquanto esse furo
furta a morte desavisada
que segue correndo
cada pele com que me
esfrego sob os lençóis
renovados diante do pó
(Do livro Filete de sangue)
*
praia vermelha
há imagens embaçadas que povoam
os corpos tomo sempre o mesmo
líquido no mesmo copo todo um
dia meus dedos ficam gravados nele
como os seus gravados sobre minha
pele quando afasto os pelos da perna
posso ver ainda as impressões digitais
sobre as cicatrizes aquela no joelho
quando uma tesoura me perfurou
aquela na coxa de uma queimadura
a da canela com um furo de uma
queda sinto também nos cotovelos
um frio e um choque nos dois porque
os quebrei ao mesmo tempo sobre
o cascalho de um morro despovoado
tudo parece ainda uma dessas noites
em que there are images i need to
complete my own reality ou simples
alguns sorrisos que aprendi para
ser mais falso do que o mundo
pretendendo não fazer cair os abismos
que sempre chegam à distância exata
em alguns segundos estarei no apartamento
dos meus padrinhos muito alto com a vista
cansada para os voos que se preparam
para aterrissar no santos dumont
os aviões parecem mergulhar no mar
tudo vem num feixe que me une à urca
para descer a avenida pasteur enquanto
o cheiro do mar vai se unindo às águas-
vivas mortas sobre a areia e minhas pernas
muito pequenas para entender que
o vermelho da praia não significava sangue
ou as queimaduras que ainda poderia
ter do sol ou dos seres vivos povoando
essa polução da infância sob meus dedos
mácula entre dois montes íngremes de
cabos metálicos a suspender a vida
não lembro muito de todo o dia apenas
de sentir um medo e de crianças com
varas que perfuravam a transparência
do sal e seus tentáculos e meu gosto
por ondas que se esquivavam nesse
breve punhado de areia dos cristais
da babilônia mas passávamos a pé diante
do leão e da águia de pedra na escadaria
inclinada e minha pele já era a mesma do sol
sem óculos escuros apenas minha falência
nas vistas que nasceram cansadas demais
para o mundo e as águas geladas que
me tocam como se tudo fosse se arranjar
um acorde sem piano uma memória
sem imagens dadas ao cheiro forte
do carbono que movimenta a vida
o chão vai ceder enquanto me enterro
nessa praia
(Do livro Filete de sangue)
*
notícia numa fila dos correios
chego ao correio para enviar livros
numa grande caixa de sete quilos
digo bom dia e a atendente quase
me reconhece da outra vez que o fiz
ela diz apenas caixa para o marrocos
não é eu digo que não e ela sabe que não
enquanto espero na fila abro as notícias
um casal que se beijava cai duma ponte
em cusco cair de amor é a tradução literal
de estar apaixonado nessa língua as pernas
mais acima do companheiro e o vazio
captado por uma câmera de segurança
(Do livro Nome próprio)
*
poema da cinza
luzia olhava de baixo a cima com os olhos revirados
quarenta anos de internação e um nome impronunciado
luzia corria desgrenhando as roupas rasgando os cabelos
quarenta anos ou mais já não sei bem para que pudesse
enfim morrer a morte que não a ela infligida aquela
do esquecimento numa ala de hospício numas grades
ou lá no topo apontando o precipício que teima em
sorrir de volta quando o corpo já não suporta
e se luzia insiste ela vem num outono sob o sonho
não desperto de um qualquer neto dizendo para não
enlouquecer leise im dunkel des fensters antes que ali
te tranquem antes dos poucos anos do seu filho por
nascer como se pudesse falar em alemão dizendo uma
língua não sei qual que chegue talvez do russo ou do
italiano de província nas brenhas de minas gerais
na paragem daquele santo do segredo e por isso ainda
se confessam como se não houvesse outro tempo sem
mais infância e assim foi meu segundo encontro com luzia
ela quer ser dançarina a menina encarcerada antes
de seu 19 de outubro ela quer apenas dançar sobre o palco
vazio sem que não seja obscura sua transformação em mil
bestas que nada representam a não ser ela mesma dizendo
aquilo que poderia ser guardar para sempre a idade da filha
ela fica abandonada o rádio de pilha vou ficar famoso era daquele
carnaval em corrêas onde te vi por uma única vez dizendo
da boneca de nena com o penteado que talvez ela ainda guarde
e se insisto em continuar entre os suicidas e as doentes mentais
talvez guarde um botão de narciso calando minha dor diária
essa de um nome que agora queima burn them all numa ligação
ouvi há pouco talvez em alucinação qui oserait encore se risquer
au poème de la cendre e era uma pergunta que me vinha enquanto
o fogo apagava todo rastro endlösung para tudo o que veio
há onze mil anos há ali a cinza última constatação de uma vida
indigna eram os alemães que diziam que havia lebensunwertes leben
sendo delicados como se pudessem fazer uma ironia acerca
de toda vida como agora um prédio que inflama o nosso
fascismo por vir e chamaremos também em grego o sacrifício
ὁλόκαυστος e teremos de esperar para saber qual palavra
substituirá a nossa catástrofe aquela que sobe morros
e da morte se nutre aquela que marca a pele para além do sol
iparun
talvez luzia se sentasse numa pedra gorjeando algumas tantas
sílabas que já não imitavam os pássaros as onças o barulho
das árvores talvez ela precisasse apenas de uma pele de couro
para tocar seu cântico que não está nessa minha língua
que queima tudo que diz mais eu enquanto se vão meus papéis
que apenas são capazes de noite
(Do livro Nome próprio)
*
sessão de cinema
tinha aquela história de você
me esperar sem roupas
na porta do cinema
não rola entrar aqui a casa
está cheia e os sonhos já
começaram a queimar lá dentro
esperamos quinze minutos
mais que os trailers e a propaganda
da sala o cheiro de pipoca
assentado como os corpos
o seu cheiro povoando meus dedos
sim tinha aquela história de você
não saber mais o meu nome
era o meio do filme ou numa parte
tumultuada você encostou na minha
mão por descuido
me olhou como se nunca me tivesse
visto olhos estatelados na luz
refletida da tela as sombras tocando
as pálpebras cavando as bochechas
pois tinha aquela história que já nem
sei ou não lembro de você
reconhecer as suas coxas tocando
de leve entre as pernas algum som
alto ecoava do duplo estéreo
a bobina da película era tão vintage
o calor se esvaziava da sala
mas era mesmo o fogo
que fazia ali no corpo estático
e ele antecede qualquer cinza
muda inconstante
seus lábios abrem um pouco
como se o fôlego pudesse
agora sair
(inédito, do livro Me faz um corre aí)