Cinco poemas de Wesley Correia
Wesley Correia nasceu em 21 de outubro de 1980, em Cruz das Almas, Bahia, e aos dezessete anos publicou seu primeiro conto no Jornal A Tarde. Desde então, tem-se dedicado à escrita de textos literários, publicados em livros e jornais especializados, dentro e fora do país. É autor de Pausa para um beijo e outros poemas (2006), Deus é negro (2013) e Íntimo Vesúvio (2017). Atualmente, é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA, onde ministra aulas na Pós-graduação em Estudos Étnicos e Raciais, e outros cursos. Seus poemas foram traduzidos para o inglês, espanhol e romeno. Os poemas a seguir foram retirados do livro Laboratório de incertezas (Malê, 2020).
***
Corpo morto de meu pai
sobre o corpo morto de meu pai,
os lapsos desintegraram
e a consciência se elevou diáfana
na tarde de um domingo sem fim.
tão imorredouro era o corpo sem vida,
tão farto o sangue na carne insepulta,
que nem o fluxo do soro estancava
no íntimo das veias jazidas
nem a bexiga morta deixava de mijar.
tão esfuziante era o corpo morto
na rubra intimidade a apodrecer,
que as paixões mais assombrosas
do mundo desejaram nele se abrigar:
suplantado o indefinível hiato político,
o preço do gás,
o vigor dos verbos guardados,
o ranger das portas,
o cão mudo com fome,
as provas de amor,
superados a lágrima e o riso,
o presságio,
o sintoma de beleza distante,
e o “como vai?”
a fulgurar na manhã vulgar.
somente a humanidade incauta
que exalou do corpo morto de meu pai
é o que é para sempre.
*
Cruz das Almas
Quando eu nasci,
não houve anjo apocalíptico,
não houve demônios
ou profecias de fogo
e nenhum cavalo relinchou
de um canto a outro do mundo.
Quando eu nasci,
não houve Ulisses atado
ao mastro do barco,
não houve Gaza ou Tel Aviv,
não houve Zimbabwe
nem os desertos da Namíbia ou do Atacama,
mas, talvez, já houvesse a estranha atração
entre opressores e oprimidos.
Quando nasci, dona Florzinha preparou os bolos
para o marido vender aos estudantes;
dona Dete foi à igreja;
Roque fechou a oficina e foi almoçar.
Mais tarde, como em todos os dias,
a fábrica Suerdieck apitou para a cidade
a lida das operárias.
Lembro de que minha mãe estava
cansada quando eu nasci,
muito cansada,
e que meu pai nos olhava da porta do quarto,
com seu olhar de homem.
Quando eu nasci,
já havia a misteriosa paixão
que rompe das fendas das pedras de ferro
e a Rua Professor Mata Pereira urdia outras belezas.
*
A filha de Zélia
O mistério que pulsa
e sedimenta o devir mais pleno
vem erigir na filha de Zélia,
toda feita de silêncios.
O que dela escapa, seus resíduos e beleza,
projeta imenso amor em novos corpos
e impulsiona a luz em outros, distantes.
A filha de Zélia nos liberta.
Se menstrua, resgata a história de uma grandeza,
nos libera em fluxos de bondade.
Se não menstrua, expia, se alegra, sufoca, goza
e expande as possibilidades de um bem maior.
Das mãos rudes dos homens que tocam o sonho,
é que se borda a fantasia
a envolver os olhos apaixonados da filha de Zélia,
toda ornada de desejos.
E quando, sem cerimônia, o amor se derrama
e a vida vem ter com os seus,
chora a filha de Zélia,
toda feita de luzes,
crendo no que ninguém mais crê,
vendo repouso onde ninguém mais vê.
*
O Verbo usurpado
Reaver o Verbo usurpado,
moldá-lo
com mãos de poesia,
promovê-lo uterino
e no vinco do seu afeto mais íntimo
depositar a luz de teus resíduos.
Devassar o Verbo usurpado,
lamber-lhe a boca
de muitos mistérios,
mordê-lo no gozo
e a ele se fundir
como que a tecer liberdades.
Mirar o Verbo usurpado,
plantar na sua paisagem inóspita
um outro horizonte,
feito do revés do silêncio
de quando arrancaram tua língua.
Desanuviar o Verbo usurpado,
expulsá-lo da espessa garganta,
prenhe de desejos,
e contemplar a ranhura
que seus pés dançantes realizam
na roda do Tempo.
Sangrar o coração do Verbo usurpado,
ser fluxo descontínuo
em suas entranhas,
ser dele o transe
e remover a sua tez opaca:
anoitecê-lo, salvá-lo.
*
Minhas filhas
Quando a dor chegar,
navalha em histeria,
saibam, minhas filhas,
todo corte há de fechar
como a noite se fecha
em face do novo dia.
Minhas filhas, fantasmas
nascerão da vossa ilusão,
mas não se atemorizem.
Deixem que se abriguem
na luz de vossas fantasias,
posto que sentem medo
e já não podem com o ermo
de tantas vidas vazias.
Minhas filhas, paciência,
que um fruto para maturar
tem seu tempo e cadência,
e se acontecer de mirrar
terá sido na exata frequência.
Minhas filhas, atenção:
não cedam à tentação
de querer resolver os
problemas do mundo.
Antes, tentem resolver
os seus, o que já exige
um esforço profundo.
Chorem se tiver de chorar,
lutem se tiver de lutar,
gritem se tiver de gritar,
calem se tiver de calar,
avancem se tiver de avançar,
recuem se tiver de recuar,
mas tenham esperanças,
minhas filhas,
virtude maior não há
do que saber esperar.
Vão à praia
num domingo de sol,
minhas filhas,
e sejam felizes.
Mas se não quiserem,
minhas filhas, não vão,
e sejam igualmente felizes
num domingo de sol,
que a praia inteira
estará à vossa disposição,
de verão a verão.
Sejam honestas,
minhas filhas,
paguem as contas,
estejam no trabalho,
rezem às santas…
Mas ainda que atrasem
os pagamentos,
quem faltem ao serviço
ou deixem de suplicar,
nem por isso,
minhas filhas,
fiquem tontas:
às favas, as contas,
aos ares, o trabalho,
às santas, o descanso,
que a máquina do mundo
segue sendo o que é,
como segue expiando a vida
na mais pura profissão de fé.
Fiquem certas de que o amor virá,
fiquem certas de que o amor irá,
e ainda mais certas
de que outro amor chegará.
Se queiram bem,
minhas filhas,
para que vosso bem
quebrante o espírito
de quem não o tem.
Minhas filhas,
não preguem tantas certezas
não guardem tantas dúvidas,
caminhem com leveza,
pois nesse ir e vir,
tudo se conforma no próprio existir,
desde a hora de chegar
até a hora de partir.