Clarice Lispector: um rosto possível – Por Caio Augusto Leite
Caio Augusto Leite nasceu em São Paulo em 1993. Doutorando em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) com tese sobre os 4 romances de Lygia Fagundes Telles, é mestre pela mesma universidade com dissertação sobre A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector. Integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. É autor dos livros Samba no escuro (Scortecci, 2013; ficção), A repetição dos pães (7 Letras, 2017; contos), Terra trêmula (Caiaponte edições, 2020; contos); e publicou as plaquetes numa janela acesa a noite não entra (Edição do autor, 2020; poemas), a cicatriz antes da ferida (Edição do autor, 2020; poemas), abismos mínimos (Edição do autor, 2020; poemas), Silêncio de frutas sem verão (Edição do autor, 2020; poemas), 30 poemas de domingo (Edição do autor, 2020; poemas), Aceno para outras ilhas (poemas para poetas) (Edição do autor, 2020; poemas) e outras.
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Clarice Lispector – Um rosto possível
A partir dos anos 1970, principalmente por conta de sua experiência como cronista no Jornal do Brasil (1967-1973), a obra de Clarice Lispector começa a dar enfoque a outros aspectos formais e temáticos trabalhados anteriormente com menor recorrência. Assim é que surgem seus quatro últimos livros lançados em vida (Água viva, A via crucis do corpo, Onde estivestes de noite e A hora da estrela) bem como o incompleto lançamento póstumo, Um sopro de vida.
Em Água viva (1973), há o abandono radical do enredo, já escasso em outras obras da autora, como A paixão segundo G.H., a qual podia ser resumida em “uma mulher limpa o quarto da empregada e mata uma barata” – sendo mais importante que a ação a reverberação dos fatos na construção da persona da narradora. Se nos romances anteriores havia ao menos um fio de enredo que movia as personagens para seus embates interiores, neste Água viva a palavra ganha o centro da atenção, talvez por isso a classificação dada pela autora para essa obra seja “Ficção” – “gênero não me pega mais”, diz a narradora em dado momento.
Nesta ficção, temos uma pintora que decide se dedicar a escrever para seu ex-amado uma espécie de carta, porém a própria busca da forma acaba por se tornar mais importante do que o próprio assunto. Aqui Clarice usa a palavra como se usasse tintas, cores, traços, em busca da imagem que não contasse história alguma e fosse apenas palavra, como dito na epígrafe da obra, de Michel Seuphor
Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência.
Porém diferente da imagem, da cor e dos traços, a palavra carrega em si desde sua gênese a promessa de um sentido. Ou seja, diferente da pintura que pode almejar ser apenas o incomunicável, a palavra por mais que se esforce em se isentar de dizer racionalmente (como o Surrealismo literário buscou) não consegue a neutralidade que a distancie de uma interpretação. Mesmo quando finge essa neutralidade, o artifício é percebido – ou temos um texto tão ininteligível que é logo abandonado por quem lê ou temos uma metalinguagem que possui em si também um sentido, logo a busca do neutro (o it, como diz a narradora no texto) é sempre em vão.
A partir da ficcionalização de uma escrita que busca atingir o instante em que se escreve (o instante-já), o livro utiliza certos artifícios como a entrada e saída de cena da narradora para concluir afazeres, a percepção da passagem do dia com a redução da luz do dia e a chegada da noite, a utilização de vocativos como se emulasse uma conversa direta com o interlocutor. Mesmo assim, a noção de que aquilo é uma ficção acaba por se sobrepor a esses artifícios (“você que me lê que me ajude a nascer”, diz a narradora).
Assim, o que temos em Água viva é mais a busca de colocar o leitor por trás da engenharia da escrita do que de fato contar uma história nos moldes tradicionais, por isso também um dos nomes da obra antes do título definitivo era Atrás do pensamento. Ao mesmo tempo em que parece feito sob transe, este é um dos livros mais trabalhados por Clarice, levando em conta que passou por diversas reescritas com redução no número de páginas e alterações nos títulos, o que atesta o caráter consciente dessa busca de construir uma obra que fluísse sem que a intencionalidade fosse notada – como um plano-sequência no cinema que cria a ilusão de um movimento sem corte, embora o que aconteça em ambos os casos é que tais cortes sejam mascarados, apesar de que uma visão e uma leitura atenta dê conta de perceber as falhas que tanto a imagem cinematográfica quanto a palavra possuem.
No ano seguinte, Clarice publica dois volumes de contos – A via crucis do corpo e Onde estivestes de noite. O primeiro foi lançado e divulgado como sendo um livro de contos eróticos feito sob encomenda do editor da autora. Apesar de apresentar alguns aspectos que podem ser enquadrados no que se chama de erótico, a maioria dos contos trata, na verdade, de personagens marginalizados que às vezes – pela via do sexo – conseguem livrar-se das situações conflitantes a que são submetidas, como em “A língua do p”, no qual uma professora de inglês viajando num trem escapa de um estupro ao fingir-se de prostituta. Neste conto, o que está em jogo não é apenas o erótico e o explícito, mas o conhecimento formal – ou seja, primeiramente a professora conhecia a língua do p que os malfeitores usavam e a partir disso pôde tramar sua defesa ao se fazer de prostituta – em ambos os casos o saber formal (a linguagem do p e a aparência de prostituta) são elementos fundamentais para escapar da violência iminente.
Nesta obra também estão colocados aspectos relacionados ao próprio fazer literário, a afirmação feita na “Explicação” que abre o livro de que este havia sido escrito por encomenda é falsa, uma vez que pelo menos um dos contos “Antes da ponte Rio-Niterói” já havia saído em forma de crônica no Jornal do Brasil. Aliás, a forma dos contos atesta essa experiência de cronista, pois se percebe na concisão e no aspecto prosaico de alguns contos a proximidade com o gênero crônica praticado pela autora.
Ao mesmo tempo em que se aproxima de uma estética neorrealista, ao abordar temáticas rebaixadas (sexo, homossexualidade, estupro, o desejo sexual em idosos entre outras), o livro não deixa de abordar temas já visitados pela autora, como a metalinguagem (“Por enquanto”) ou a preocupação com a construção de uma persona que nos identifica para os outros que nos vê (“Ele me bebeu”).
Apesar da insistência de se classificar como livro feito às pressas e sem pretensão de ser literário (a hora do lixo, como diz a autora), há neste volume a presença de diversos recursos estilísticos que desmentem essa postura, sendo ela mais um aspecto da obra, o fingimento de ser uma obra sem arte, feita para vender e ganhar dinheiro – o que acabou não acontecendo, haja vista que este é um dos livros menos falados da autora.
Em Onde estivestes de noite, os aspectos formais aproximados da crônica se repetem, porém os assuntos divergem um pouco em relação ao livro anterior. Aqui a presença do idoso se faz de forma diferenciada, não focando na sexualidade, mas na noção de pertencimento do idoso na lógica de uma sociedade que vivia para a aparência sempre jovial – principalmente de mulheres, como vemos em “A procura de uma dignidade” e “A partida do trem”. A questão do reaproveitamento se acentua, e pelo menos metade dos textos presentes neste volume já havia sido publicada como crônica (“Um caso complicado”), conto (“Esvaziamento”) ou em romances (“Seco estudo de cavalos”, tirado de A cidade sitiada ou “Vida ao natural” tirado de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres).
Desse conjunto, destacam-se dois contos “Onde estivestes de noite” e “O relatório da coisa”. No primeiro temos um ritual em que as ambiguidades da vida cotidiana são postas em ato a partir da figura de Ele-ela/Ela-ele, entidade para a qual se dirigem os peregrinos ao subir a montanha noturna, ali os desejos são realizados e as verdades são reveladas, embora a lógica do dia, com sua luz racional, venha pôr termo ao que se conquistou/aprendeu durante a viagem onírica. O segundo aposta na antiliteratura ao investigar o tempo, a coisa impronunciável e que não deixa de ser apesar de não poder ser dita, indo de encontro ao técnico (relatório, eletrônico) busca-se pelo avesso da sensibilidade a conquista da matéria do existir.
A partir dessa experiência em que os marginalizados ganham mais ênfase, mas sem deixar de lado preocupações formais que desde sempre acompanharam sua produção, Clarice escreve A hora da estrela, lançado em 1977.
Nessa novela, a temática social e a metalinguagem se chocam sem que uma anule a outra, mas não sem certo atrito que revele as incapacidades do fazer literário diante da realidade. Desde o início é posto que Macabéa é uma personagem criada a partir da visão de seu narrador, Rodrigo S.M. Logo, as impressões sobre ela são sempre da ordem da superfície, a vida interior de Macabéa, qual seja ela, é inacessível ao olhar de Rodrigo, que a compõe e a supõe a partir das poucas cenas em que a personagem faz ou diz algo.
Por mais que haja a tentativa de se chegar perto da matéria narrada, através da mimetização de uma pessoa da classe social da personagem (o narrador deixa a barba crescer e se muda para um quartinho de subúrbio), tal tentativa é falha, pois se sabe que toda palavra vem embutida com um sentido que está intimamente ligado a quem a profere. Rodrigo, por mais que seja também um ser marginal – uma vez que o escritor é visto com desconfiança tanto pelas classes baixas como pelas classes altas –, não está inserido no mesmo círculo de experiências de Macabéa. Nesse sentido, ao falar dessa personagem, Rodrigo acaba por falar mais de si do que do outro. Clarice acaba por se revelar mais do que se esconder, a autora entende que não há como se isentar da participação na feitura da obra.
Aqui, o nome de Clarice surge entre os treze títulos possíveis da novela. Não que toda obra seja biográfica, o que está em jogo é a questão do olhar subjetivo de cada autor em relação à matéria de que se fala – o que chega a Rodrigo sobre Macabéa é apenas aquela parte que o filtro subjetivo do narrador consegue captar. Nenhuma pessoa, por mais que compartilhe da mesma classe social, da mesma cor de pele, da mesma orientação sexual, pode dar um retrato fiel de outra. Ao assumir que sua Macabéa é ficcional, o narrador rompe com a noção de representatividade, mas ao mesmo tempo nos revela um aspecto importante da arte de escrever: mais importante do que o que está sendo representado, é o como está sendo representado, ou seja, o modo como escrevemos diz mais sobre nossa posição social e nosso olhar sobre o mundo, do que sobre o mundo como ele realmente é. A morte final de Macabéa é também a morte do narrador (“Macabéa me matou” diz o narrador), ao perder a matéria de sua escritura, o narrador também se perde. Clarice em sua última entrevista, para a TV Cultura, diz que está morta esperando ressuscitar, como se a parte nossa que se classifica como “escritor” só vivesse enquanto houvesse o que escrever.
Tal embate entre criação e criatura é elevado no livro póstumo Um sopro de vida (1978), porém não sabemos se este seria o acabamento final dado por Clarice. Nele, um autor se vê desafiado pela própria personagem, ao mesmo tempo em que um percebe que sua própria existência é pautada pela existência do outro. Se cada final de livro matava um pouco da escritora, ao morrer, em 1977, Clarice – que neste ano de 2020 faria 100 anos – em contrapartida levou consigo todas as personagens que viriam a seguir e que só poderiam nascer de suas mãos.