Dois contos de Arthur Campagnolo Della Giustina
Arthur Campagnolo Della Giustina é natural de Caxias do Sul e tem 19 anos. Apaixonado por arte e poesia desde a infância, tem forte atuação em eventos culturais de Caxias do Sul e já acumula participação em cinco antologias nacionais. Premiado em concursos literários de Minas Gerais e São Paulo, está como atua presidente da Academia Caxiense de Letras (2020/2021), onde ocupa a cadeira 14. Arthur também é membro da Academia de Letras Machado de Assis (ALMA), em Porto Alegre, e do Conselho Municipal de Políticas Culturais de Caxias do Sul, representando o segmento literatura.
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Do inverso do espelho
Dedicado à Ronaldo Velho Bueno.
Me olha com cara de desprezo. Abro os olhos indignado. Seis e meia e nós na cama, lençóis limpinhos a não ser com nosso suor masculino. Não entendo o problema. Pego o whisky na mesinha de cabeceira, te ofereço, você nega sem dizer. Pego a champanhe e nem olha pra analisar a marca. Poxa o que houve agora?
Me ignora e vira de lado, vejo tuas costas brancas e ásperas. Elas são bonitas, sinto vontade de tocar, só mais uma vez. O frigobar está do outro lado do quarto, cansado não levanto, queria um gelinho. Olho no espelho e vejo o nosso reflexo, percebo o teu sorriso com a vontade de me agarrar nos olhos, muito esfomeados e um pouco semiabertos, mas a reluta incongruente. Rio baixinho meio incomodado. Meus pés esticados só pensam em entrelaçar com os teus. Aproveito pra alongar o joelho e disfarçar, não sou fácil, de vez em quando. Largo a garrafa inútil. Finjo uma preguiça e flexiono todo o meu braço pra te abraçar debalde, ignorando qualquer câimbra futura. Você está calado e parece meio triste. Faz o máximo esforço pra não fazer coisa alguma. Não percebeu que estou vendo tudo. Malandro – eu penso. Não foi o suficiente. Não deve ter sido o suficiente. Foram horas. Hum.
Desconfio de mim. Me irrito contigo. Seguro mais forte no teu peito contrariado porque não quero te perder. Honestamente, certas coisas são realmente difíceis de entender. Do que valeu tanta bebida, os quatrocentos pra ficar aqui, nossa revolução toda e os sussurros sufocados com a mão? Ter esse presente pós-sexo? O risco de sermos descobertos e expulsos da nossa família feliz. Eu só queria um beijinho, um bom dia simpático. Já seria o bastante pra acreditar que tudo vai dar certo.
Mas não, tenho que ficar me esforçando pra tentar entender o que houve, se a culpa é minha ou não. E falar com um fantasma que sinceramente não queria que estivesse aqui e agora.
Você se mexe e dá uma grunhida estranha. O som leve e meio grave da garganta me excita um pouco e preciso admitir, ainda é só nós. Sopro isso no teu ouvido e você não se mexe mais. Pois bem, meu braço já está doendo e nada do bom dia sorridente. Obrigado por me dar prazer essa noite, seria uma ótima pedida, difícil sem dúvida.
O sol aparecendo e dormimos umas quatro – não tenho certeza. Deve ser o cansaço, nada mais. Preciso parar de ser tão afobado, que espécie de amante eu sou, vou atrás de amores nas baladas e depois de uma noite sensacional tudo acaba em repugnância. My god. Problemas com o álcool prefiro acreditar. Desisto.
Tiro o meu braço dele e cruzo deitado. O teto já flerta com os raios tímidos da manhã e o espelho brilha, e junto já percebo a ressaca que me meti. Que nos metemos, já não sei mais. Seria tão maravilhosa uma segunda rodada. Fazer valer a pena de novo. Acho porém, que o destino não quer.
Quase sempre duvidei de qualquer carta, astrologia ou predestinação, mas é muito melhor acreditar no romance assim: ainda posso ir à Paris, tomar um cafezinho e fazer de conta nunca brigar com a pessoa certa que ainda vai vir. Lindo demais – quem dera, penso. Ou melhor, dançar na chuva, gravar um comercial homo afetivo de margarina, fazer caras e bocas e sorrisos sinceros, o primeiro da televisão com nossos filhos: o Clô e a Gaga, respectivamente, o cachorro e a gata. Sonho. Imagina eu largar as noitadas de vez, o vício na bebida e a luzes piscando comigo loucamente lá no meio. Imagina fingir que não existe preconceito, nem necropolítica, nem falta de direitos pra nós e que entre gays existe mais que sexo sim. Só que sim, é difícil acreditar.
Eu te entendo. Posso quase adivinhar o motivo dessa revolta. Quando sairmos daqui vai ser a mesma coisa. Só que então, não vai ser você que vai querer fingir não ver o que está sentindo, eu também. Nós vamos e isso eu tenho certeza.
Lembro ter uns cigarros em algum lugar. Procuro desesperado na cama porque bateu a ansiedade pós-rolê, de manhã mal dormida. Coisas de quem ama muitas vezes sem querer, de quem bate na mesma tecla em vão, de quem é o próprio vão e não gosta de admitir: como um paradoxo. Vou fumar pra esquecer o que está acontecendo. Nem quero abrir a janela. Vou deixar os pássaros, o sol e tudo que é da luz e da cidade lá fora – nós somos das trevas, subversivos do meio dia, pelo simples fato de existir e ser do contra de tudo que nunca entendemos direito o que é. Fiquem lá fora.
Quero a solidão.
Te olho e acho que dormiu de novo. Me calo com a fumaça que se dissipa no teto, escorre pelas arestas e bate no nosso reflexo no centro do espelho, de modo que não te enxergo mais ali. Tudo é claro e transparente e não sei pra onde foi. Só sei que se foi. Vestiu tua camisa xadrez, bermudinha cinza e partiu. Bebeu um último shot comigo. Escolheu o whisky. Pegou a Alice desprevenida e entrou no espelho em seu lugar. Até riria se não soubesse que é verdade. Que aquela noite fosse uma ilusão como essa de ontem. E que aqueles homens não tivessem te quebrado em mil cacos de puríssimo vidro e areia vermelha úmida, despedaçado na calçada sem eu do teu lado. Destruído por aquilo que todo dia me destrói, e eu ajudo.
Termino o maço. Me finjo de morto. Até solto um barulho estranho como aquele de antes. Você acorda e eu te olho com cara de desprezo. São seis e meia. E agora estou do outro lado da cama.
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Redundâncias
Dedicado à Marco Aurélio de Quadros.
Vejo e não entendo como gosta de poesia. Músicas agora estranhas, anos 80, tachadas de tudo que é coisa pela gente da nossa idade. Até acho que já estamos acostumados com isso, se é verdade essa repugnância atual com o brilho e os trompetes de Boney M, Armstrong e a década da discoteca.
Esses teus trejeitos de escrever são meio hilários também. Perdi a sensibilidade de perceber a poesia da mesma forma, tão bruta, lírica e repleta de ismos e asmos que pra mim já não são muito honestos hoje em dia. A última vez que nos vimos você não fazia ideia do que fazer, com permissão da redundância verbal, isso mesmo, não fazer nada e fazer alguma coisa de muito útil – se beijar e esquecer o romantismo ao menos um pouco. Como algumas partes mais complexas e burocráticas da vida. Resumindo tudo em um ato medíocre e profundo de tocar nossas extremidades bocais um no outro, e sublimar a vida, as coisas da cidade e o tempo trocando sabores e bactérias, simplesmente.
Acho que não passou muito desde aquela época vanguardista. Às vezes tudo me parece tão igual – as pessoas por exemplo. E isso explica o porquê dessas tuas manias, o por isso da poesia bem pincelada tanto quanto um quadro de algum renascentista, quem sabe ela não deva ser julgada pelos homens, mas talvez por alguns daqueles anjinhos da capela sistina, que não têm efeito de tempo e são andróginos.
Você foi até lá, olha só, se viu lá, os cavalos, os castelos, o casalzinho bucólico e apaixonado por entre os prados e feras quase inimagináveis. Eu não sei fazer isso. Não sei como faz isso me explica. Gosto do antigo, mas não tenho a liberdade que o teu tempo tem, o meu é diferente, é versátil embora estável.
E não venha me olhar com essa cara de menino irônico, arruma essa boquinha e desvira esses olhos, agora precisamos do amanhã mais do que tudo – esse é nosso propósito, meu, do nosso amor e de todos nós. Pega as tuas últimas anotações e lê pra mim durante a viagem, sei que quer ler. Partiremos logo amanhã cedo no nosso corcel 73, ouvindo Frank Sinatra, fly me too the moon e vamos à luta. Caso prefira providencio uma carruagem e eu serei tua princesa: como se já não fosse habitualmente. Mas a luta é indispensável, sempre foi, o embate não tem fim e o destino da gente nasceu dela. O tempo parece tanto com um dragão, não acha, ou um carrasco até. E essa é a questão, como venceremos o que parece maior ou não podemos ver, a não ser no nosso próprio corpo e dos nossos pais. A resposta é fácil, ironicamente fácil: se beijando, beijando muito mais como naquela tarde da última semana. Essa é a resposta pra tudo quando não se sabe o que fazer fazendo algo. É nessa vadiagem que estão as coisas mais importantes pra gente viver, é nessa tua cavidade gosmenta e impura que o infinito se resguarda de tudo e de todos, são nessas mediocridades da vida que o sublime se manifesta permanentemente. Só assim venceremos o tempo, assim poderemos ser ele também. Nunca tive dúvida.
O que acha de enfim conhecermos a Joplin, a Elis, ou o Chopin, irmos assistir a matinê de domingo com meu irmãozinho menor fazendo o toco de vela. A sala enorme e escura com bancos de couro, puxa-puxa pra quebrar os dentes. Criar o surrealismo com Dali, isso deve ser surreal. E se comer como animais das cavernas. Nossa lata-velha chega lá, basta crer.
Dois homens se amando, caminhando de mãos dadas, sendo torturados e reprimidos juntos em meio a um governo autoritário, e antidemocrático e cheio de discrepâncias e bostagens que é tudo a mesma coisa, mas se beijando, não deixando de acreditar no amor bizarro pra todos.
Mas o melhor de tudo, as tuas poesias não me parecerão mais estranhas, dependendo da época que me levar nada mais será estranho: ou tudo aceito ou tudo demonizado de uma vez. Extremos me agradam extremamente.
Às vezes precisamos de às vezes – as incertezas também fazem parte. O medo está com elas, e com a gente. E a cada dia eu percebo, que é dessa insegurança que o nosso toque se fortalece.
Me beija forte e agora, não espera eu terminar de te dizer isso tudo, talvez já seja tarde pra algum arrependimento. Meu único desejo é ver minha carne entregue ao teu sacrifício e fome, e não ao tempo e aos açougueiros militares. Se for para partirmos logo, como os poetas que tanto admira do romantismo ultrapassado, que seja amanhã no nosso carrinho, ouvindo nossas músicas usurpadoras atemporais, se divertindo na cama. Fantasiando essas coisas.
Vamos fazer tudo que pudermos fazer, com a permissão da redundância outra vez, vamos tentar não sermos os mesmos no final desses feitos – como nossos pais foram infelizmente. Tentemos de novo. Orgulhemos o Belchior.
Isso é o que realmente importa. Não a morte, mas o depois garoto, nosso legado e amor eternizado para a posterioridade de outros que se amam. Não sorria assim pra mim. Não percebe como nossas divergências se completam facilmente?
Sempre fomos somente nós e o nosso relógio. Quem faz o tempo tem que ser a gente. Amanhã se vamos, esquecidos por nossa própria culpa sem nenhum arrependimento. Olhar pra trás só se for pra dançar na chuva em um filme cult. Cinema nacional com o Grande Otelo. Ou, ao som do boogie oogie americano.
Lelu
Que bonito e doloroso