Dois contos de Érico Hammarström
Érico Hammarström nasceu em 1995, em Ijuí, Rio Grande do Sul. É estudante de Língua Portuguesa, Inglesa e Literatura na Unijuí. Grande apreciador das Artes Plásticas, cinéfilo assumido e bibliófilo por vocação. Em 2016, com Marcelo Frota, publicou Compilação Poética das Margens, pela Chiado Editora, assinando Érico Francisco Zardin. Em 2017 foi selecionado pela mesma editora para participar do segundo volume da Antologia de Poesia Brasileira Contemporânea Além da Terra, Além do Céu, com o poema “Temperatura”. Pela Editora Penalux, lançou Por Dentro do Nada, em 2018. Também publica esporadicamente nos blogs Fluxos de Consciência, que já foi visitado por 37 países, e A Poética Visceral.
Os dois contos abaixo são do livro Medula (Guaratinguetá: Editora Penalux, 2019).
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Cotidiano
“Todo dia ela faz tudo sempre igual”
Chico Buarque
Rememorar, por vezes, é preciso. E, quando o fado é tamanho, somos obrigados a sofrer as dores da memória. Reviver o passado é confiar em sua resistência física e psicológica, mesmo que sejamos duros e fortes. Falar do passado é enfadonho. Não se falando de dor apenas, pondo-se novamente ao local, reflexiva pena sobre o papel, fino faro de romancista, gula de saber um bocado mais; nada resiste a uma fotografia, ou a uma lembrança. Pensamentos saudosistas.
Não mais temo o passado? Não aprecio permanecer engessada e árida no mesmo lugar. As vozes do pretérito atordoam ainda hoje, depois de todo esse transcorrer de história. A vida transborda o odre do sumo dos vinhedos, e eu posso dizer que não faço mais do que desejo. Lembro, lembro para que eu ainda viva, e a vida em si me alimenta totalmente com o anseio de mais uma vez perder os sentidos, e ainda nesta página de papel, que tens nas mãos, demonstrarei, sem rancor, com medo, muito medo, medo de que o passado torne a habitar-me.
E se falar em termos arcaicos, muitos floreios sentimentais deste episódio da vida de um ente comum, é como prescrever placebo a um enfermo terminal. Maior temor não simplesmente do passado, mas daquilo que o passado possa alterar, o futuro; porém, deve-se agir com cuidado, zelo na palavra, e ainda que se busque a umidade humana do verbo, contenho-me a usar dele de maneira lúcida, seca talvez, mas da realidade dos fatos, que mesmo com o transcorrer das horas, dias e meses, a memória pode estar fracionada.
Temores maiores e menores, vozes de minha lembrança sinalizam em sinapses nervosas meus neurônios, assim reagem minhas recordações, e, se realmente o pretérito se fizer presente e vier trazendo mudanças, que venham. Ouve-se o ruído de um galho em minha janela, é avançado da noite. O espectro de Ezra aproxima-se por detrás de mim, preparei-lhe a mesa, a cama nos chama, o vento prenuncia presságios; porém os galhos agitam-se facilmente, frondosas oliveiras.
“Meu corpo é tua morada, Lídia”, rememoro em minha mente saudosista.
Sem receio, hoje partilho conhecimentos primários, o passado tornará a habitar a minha sede. E ainda que eu não tenha condições físicas e psicológicas de passar noites insone e firme, descansarei poucas horas, e negociarei parcelas das quais me definirei como mulher, e como uma leiga principiando o caminho das letras.
A abstração constituída da memória, ainda que ela se faça presente, em tempos e tempos, continua, porém, manifesta em sua inexatidão, fragmentária e etérea, assim, com sua carga de sentidos, quando eles vêm bem. E mesmo que a memória esteja presente em minha vida, carregada ou não de sentidos, abstrata, etérea e fragmentária, em momentos essa mesma memória que me faz madura, quando eu poderia ser apenas uma qualquer, e essas memórias tornam-me uma aspirante em busca de um tema que me conforte. Mas essa narradora que fala através dessas páginas concretas, todavia ainda assim fragmentárias, posso dizer que escrever sobre o passado é árduo trabalho, pois brincamos conosco, e com outros, que são metamorfoseados de pessoas a personagens. Uma ficção em que o fio condutor, o combustível locomotor, é a lembrança, e essa, de muitos anos. Brincar de lembrar virá a ser um desafio. Desafio esse que prefiro, por escolha própria, autoimposta, para narrar a crônica de meus dias idos.
Ao velejar pelo intelecto, agora, realmente sem medo algum, posso dizer que a tarefa de exorcizar a minha mente será ao mesmo tempo prazerosa e dolorida. Brincar com situações mal resolvidas, garimpar saudades, usufruir novamente a insânia primordial, que certamente teve parcela de minha angústia, de minha confluência para resolver algumas coisas. E mesmo que doloridas, essas coisas tornaram-se as minhas melhores companheiras: em inércia, o repouso; em movimento, a criação. Ouço o bulício do vento agitando um galho em minha janela. Repousada à cadeira confortavelmente, escrevendo esta proposta. E mesmo que o galho estilhasse o vidro, nada mudaria em minha estrutura emocional para com esse projeto; o sobressalto de um susto, a antítese de conforto físico em contanto com o desconforto emocional, desde que, em tanto tempo, tinha visto, pela primeira vez, Ezra, pouco saberia se estaria hoje em Alentejo, com nosso casal de gêmeos. Rememorar o princípio disso deve-se ao fato da afirmação intelectual do medo de que o que a cada dia que passa, passe novamente a acontecer, e assim sucessivamente.
— O que é isto?
— Simplesmente o vento a balançar galhos, miúda.
— Mas assusta, não é?
Peguei-a e sentei-a em meu colo, cantei-lhe cantigas de tempos remotos, e aos poucos fui acalmando o medo de minha pequena filha. Elisa tinha tamanho medo de vendavais. Ela aos poucos foi cerrando os olhos, e assim adormeceu, porém mesmo assim continuei cantarolando as minhas cantigas favoritas, até ela adormecer realmente. Isso não atrapalha o meu desejo, muito pelo contrário, estimula a minha criatividade, já que o meu novo projeto se refere à memória, essas cantigas há muito estavam guardadas.
Ninava meu bebê, cantarolava, lembrava e não sentia o sono chegar, estava completamente desperta, em prumo de ainda produzir muito ao que a noite me propuser. Elisa amolecia em meu colo, em sono profundo. Guilherme não havia acordado, muito provavelmente deva estar já em sonos longínquos. Depositei um beijo em face de minha miúda, dizendo-lhe: “Nada vai lhe acontecer, meu doce”.
Simultaneamente ao que cantarolava, ouvia e acalmava minha bebê. Refletir sobre as inflamações da infância, a pequena idade, em que tudo não passava de divertimentos, correrias e brincadeiras, faz do ato memorialístico uma ode à vida toda, sem máscaras e sem receios, o medo do passado passa a gozo prazeroso. Mesmo quando a memória não transita em suas profundezas de toda a vida, ao menos um episódio — um ao menos — surge de sobressalto salvando mais um dia, e assim, como era o meu maior temor, passando-se a ser habitada pelo pretérito. Quando se puser a rememorar, que esse ato seja pura e simplesmente a tarefa do dia para este trabalho. Ser habitada pelo passado, mas não dominada por ele. Viver é precioso demais para ser perdido este tempo com passageiros momentos finados.
São horas da madrugada, Elisa já me veio indagar sobre o vento. Guilherme dorme quieto, em sua cama, e eu estou aqui, preocupada com o futuro e com o passado.
Eu prezo a inocência de meus filhos, a fragilidade perante mudanças, a saudade dos avós, lá no Brasil, assim como eu, havendo deixado toda uma vida para trás, tornando o nosso dia, o dia santo para o futuro, e a mim, agora, tão caros os momentos em que me ponho em frente ao notebook, e traço, linha a linha, meu memorial. Mas cabe a mim decidir o princípio do que quero contar e exorcizar de minha vida.
Do ponto de partida, foi dada a exposição da primeira reação orgânica à tarefa de escrever, o medo. Agora parto de outro aspecto, a necessidade. É muito necessário e caro a mim, como a minha família, o relato que vou expor, tanto como expurgo, quanto como prazer. A necessidade de limpeza, de revisitação das memórias, para evitar e, também, entender tudo o que ocorreu, assim como uma mutilação coletiva. Espero que me entendam, que compreendam os motivos pelos quais traço a história nessa espécie de masoquismo.
Reações de medo e necessidade, que em mim caminham unidas, não são as únicas. E embora eu acredite que esta última seja um tanto egoísta, ou até mesmo deslocada, não vale muito? Fico muito em dúvida, e esta é a terceira reação, a dúvida. Se muito do medo tem-se a dúvida, e da necessidade idem, a minha dúvida muito mais vai ao ponto de saber exatamente as etapas de tudo o que eu contarei: o que é obsoleto, o que é imprescindível. E se fazendo uma, outra se liga a ela e assim sucessivamente ad eternum. Cavoucando rudemente os fundos da minha consciência, se realmente restabelecida, lampejos de lucidez naquela época obscura, quem dera eu ter a resposta às dúvidas, e mesmo que as tivesse, não creria.
A memória se torna uma figura bestial em contato com o medo, com a necessidade e com a dúvida, cabendo ao proprietário da recordação torná-la útil e prática, contornando o medo, observando a necessidade e duvidando da própria dúvida; assim, pelo menos, numa última quimera. Sabendo como no mundo vigoram os Versos Íntimos. A última quimera, pelo menos à última quimera que eu consiga a razão, que eu restabeleça minha lucidez, e que a grande onda que simboliza meus anseios e temores do passado, não venha em enxurrada e leve-me novamente aos porões da insânia total, e nebuloso meu futuro se torne.
Loucamente deposito meu crânio no travesseiro, porém o horário já avançado, tendo pela manhã de levar as crianças à escola. Guilherme estava deitado na cama, e sem acordar o miúdo, deito Elisa em sua cama.
A rotina mantinha-me apreensiva. Acordar, preparar o café, arrumar e levar os pequenos à escola. Acredito que, pela minha rotina, a parte mais prazerosa era passar o café. Sem medos de dizer, a rotina é massacrante. A rotina pode matar uma pessoa de loucura.
Já estava desacostumada dormir tão tarde, sendo que deveria acordar cedo e preparar tudo. Minha vida se mantinha nesses limites de horários e o relógio não perdoa. Muito embora eu ame meus filhos, eu necessitava nesse período de, por alguns meses, dedicar tempo ao meu trabalho. Mas toda a carga de responsabilidade de gerir o lar era minha.
Meus filhos agora estão em adaptação na escola. São reflexo da luta da mãe pela sobrevivência neste mundo hostil. São carinhosos e nutrem uma amizade gratificante para com quem os gerou. Guilherme tem um relacionamento muito mais ligado a mim, já Elisa é arredia, seria a garota do papai. Não é hora de pensar em favoritismo. Eles são pequenos e aos poucos estão criando suas identidades, a personalidade já se apresenta crescente em ambos. Mas ainda o que me prevalece nas horas que me vêm à mente é a doçura e pureza em seus olhares.
Falar do presente, em terra estrangeira, mas a honra de poder beijar o chão de Portugal é tamanha, e a sensação de singularidade em se estar vivendo em um sonho, como assim, de anos, e já se tem tempo que cá estamos, os gêmeos nasceram em Lisboa, agora vivemos neste sítio amplo e aconchegante, que é o Alentejo. Sinto-me dentro de um romance português, a ler Saramago e Eça, motivadores de meu ato presente, escrever.
E hoje não poderia ter sido diferente. Pensei ter acordado antes de todos e surpreendida com a movimentação do menino, que já se mantinha em extrema agitação, Elisa ainda dormia tranquila. Ela sempre acordava em seu horário, e ficava enormemente carrancuda se a acordassem, tem por quem herdar o costume.
Estando o menino acordado, ajudo-o em sua higiene, agasalho-o bem, que já assim pela manhã fazia um bocado de frio, em torno de catorze graus, à noite ventou um tanto.
Mergulho em mim mesma, e rio pensando em como essas pequenas criaturas podem tornar a minha vida ao mesmo tempo um dever árduo e, também, uma gozosa aventura. Olho mais uma vez para o rosto de meu pequeno Gui — como costumo chamá-lo.
— Queres comer, Gui? — pergunto a ele, e nesse mesmo momento eu percebo que já faltam quinze minutos para as oito horas da manhã.
Já eram horas de Elisa acordar. Saio da casa de banho, visto uma camisa preta e uma calça social, logo após calço um scarpin. Quando estava na universidade permanecia com meu cabelo curto, que desde a adolescência cultivava. Mas agora optei então por algo, assim dizer, ainda discreto, quando o término do curso se aproximava, deixei as madeixas crescerem, e como me é estranho fitar-me com longos cabelos.
Elisa abre a porta do quarto, já com o uniforme da escola, vai à casa de banho que fica no corredor em diagonal com meu escritório. Eu terminava a preparação do café da manhã, à espera dos dois.
— Bom dia, pequena!
No que ela me responde, pulando no corredor em minha direção, para que eu a pegue no colo, muito dengosa.
— Mamã, que dia é hoje? — e eu fico pensativa, pois ela sempre lembra questões importantes que minha memória falha. Que dia seria aquele? Era o meu aniversário.
Trabalhei até tarde da noite, resolvendo o que escreveria, o que eu faria de meus personagens vivos, de carne, osso e puro sangue. E acabei esquecendo-me de minha data de primavera. Os anos passavam cada vez mais rápidos, os meses voavam em direções mistas e eu não tinha conseguido acompanhar direito a tudo o que eu precisava fazer.
Chegando à porta da cozinha, com Elisa em meus braços, ela deposita um beijo em minha face, e, em coro, os pequenos anunciam: “Parabéns, mamã!”. E eu fico sem reação, olho para eles com cara de boba, e subitamente abro um sorriso quando Gui vem e abraça-se em minhas pernas, pedindo colo. Deixo Elisa em meu braço esquerdo, e com o direito pego-o, e me beija a face. Após passar os olhos pela mesa, sinto a enorme falta de meu companheiro.
“Ezra, eu já lhe disse que sempre te amei?”, uma voz dos tempos passados, como que uma recordação da juventude, um som que me deixava aterrorizada, e ainda deixa, pois sempre saía do controle a minha mente. Realmente não sei o motivo, mas, como se fosse a voz de uma pessoa morta, sendo emanada ao meu lado, em carne, ossos e vermes.
Eu permanecia sentada, devorando uma fatia de pão com manteiga. Analisei que correria tudo bem, que a rotina permaneceria a mesma, e que logo mais levaria os pequenos para a escola, olhei pela janela, mas não chovia, frio também não fazia, mas sempre mandava com eles casaquinhos, para que, se mudasse a temperatura durante a aula, não se resfriassem.
Mal pensei, toca o telefone.
— Pois? — atendo a ligação.
— Parabéns a você… — os pais de Ezra cantaram juntos parabéns cantiga, como de tradição da família. Lembro-me bem que ele contava que sempre faziam isso para titia Virgínia, que morava nos Estados Unidos. Vovó, titia Leonor, sempre ligavam. E hoje eu consigo entender titia Virgínia, vivemos longe, mas sempre estamos perto dos que amamos, por nosso amor.
— Lídia, que tu sejas abençoada neste novo ano —, disse a mãe de Ezra. — E que continue guiando com fibra a trajetória da educação de Elisa e Guilherme.
— Grata, mã! — agradeci de sorriso largo, já que meus pais não ligariam nunca para mim, ainda mais em meu aniversário. — Como estão as coisas por aí?
— Tudo bem, querida.
Lembrei-me do gosto de ser amada pelos pais de Ezra, que sempre foram amáveis comigo. Sempre achavam loucura ele querer viver de escrever.
Mas mesmo assim, depois de ter recolhido a louça na pia, ter revisado as crianças, parecia que o dia qual eu deveria engrenar na produção do texto, tudo empacava, e o pior de tudo, por minha causa.
— Tudo pronto? — anunciei brincando.
— Sim —, responderam os dois em coro.
— Então vamos.
Um de mãos dadas ao outro, meus pimpolhos foram até a frente e aguardavam eu trancar a porta, para que pegassem as minhas mãos. Forma segura de mantê-los comportados e seguros, mesmo que em nossa região não houvesse tanto movimento, embora já eram horas de pique.
Elisa era uma criança geniosa, mas gostava de ouvir histórias, e atentava para tudo o que ocorria ao seu redor, na rua. Percebia o quão íngreme era a ladeira, ou o quão desregular eram as pedras da rua. Ela era uma criança que poderia se dizer que sempre estava envolta em brumas de sonho, embora facilmente irritadiça, muito parecida com Ezra. Já Gui, ele era mais reservado, criança faceira, sim, mas com reservas, como sua mãe.
“Assim você estraga as crianças”, eu dizia a Ezra.
Ele sempre adorou os pequenos, transformava-se em outro, retomava a infância nas brincadeiras dos pequenos. Era um pai babão, e quando me via com os dois, eu posso dizer que se tornava um imbecil, pois no mundo o lugar que ele sempre quis estar, dizia, era comigo, ter os nossos filhos, formar uma família com capacidade para se gerir e gerar frutos. Não falo que é fácil. Que tudo gira da maneira certa e comedida. Há os atropelos, mal-entendidos, ego, orgulho.
Deixei-os na escola, e, na caminhada de volta, lembrava-me de que antes de pôr as mãos no trabalho, eu tinha de lavar a louça. Mas ia apreciando a rua, as pessoas passando, transitando como formigas em sua total segurança, e eu era uma estranha ali, era como se eu sempre quisesse estar aqui e permanecesse, por mais que o tempo passe, como uma completa estrangeira. As crianças nasceram em Lisboa, mas eu precisava de um local mais afastado, mais aconchegante para a palavra. E agora que fico mais velha, a solidão começa por se tornar uma companheira desagradável, enquanto Ezra está fora.
Lembro-me do conflito político que se instaurou com os golpes militares, que haviam se instaurado na América Latina, hoje prefiro me abster aos pensamentos terríveis, golpe, fraudes, etc. Meu país, minha casa, virara antro de ódio e repressão política. Com todo o movimento das Diretas Já, acredito que a abertura política e o caminho para a democracia chegaram em boa hora. Mas o Collor? Corrupção que deflagrou o processo de Impeachment do mais jovem presidente do Brasil. São pensamentos que por hoje prefiro longe de minha mente, mas que tanto analiso e matuto por um motivo apenas: saudade. Há tempos que penso em Ezra distante e toda essa situação do Brasil.
Olhei para a rua como se fosse a primeira vez que via uma rua, diz-se que assim deve ser o olhar de um filósofo, ter a capacidade de encantamento com o mundo como se fosse a primeira vez que o tivesse visto. Assim a capacidade de analisá-lo em total profundidade.
De súbito, como se um raio caísse sobre mim, nesse momento, decido passar pelo largo, outro caminho que poderia trilhar até o escritório. Mesmo que o trabalho estivesse a me esperar, minuto mais, minuto menos, não faria diferença. Ezra costumava buscar os gêmeos na escola a pé, ou telefonava pedindo para que eu buscasse, mas isso raramente aconteceu desde que eles ingressaram na escola.
No largo, as construções lembravam-me muito o Largo do Pelourinho, em Salvador. Mesmo que não tivesse a sinalização do pelouro no centro do largo, as construções são muito semelhantes, vejo que a arquitetura mesma se transportou juntamente com as naus e seus tripulantes, passageiros, etc., e que essa marca ficou encravada na fibra da carne brasileira, que, após muito sangue, volta a sangrar.
Sento-me no degrau da porta de uma casa, e fico a admirar simplesmente as fachadas das casas, em volta dos marcos, azulejos brancos com pinturas azuis, ramos de oliveira, galos, paisagens. E sinto medo, medo de o passado ter começado a me possuir, com esse sentimento saudosista do Brasil, meus pais, a vida que eu tinha lá e que agora são águas mais do que passadas, já me banhei muito neste rio e nunca foi o mesmo. Manifesto a vontade de derramar uma lágrima, mas, quando ouço o dobre do sino da matriz, vejo que já são horas.
Levanto-me, sacolejo essa vontade desesperada de inércia, e ponho-me em movimento. Mesmo que lentamente, percorro o restante do trajeto, com o texto desenhado em minha mente, e a cada passo acrescento mais um vocábulo, uma vírgula, e tento manter na memória tudo isso, para que, quando eu chegar em casa, possa utilizar todas essas frases soltas, em um nexo totalmente verossímil, e mesmo que não consiga de todo, teria muito o que relatar, pois hoje era o meu aniversário.
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Ondas
Olhou conforme a retina estava posta. O mar e sua imensidão de água fazia com que ele se regozijasse, com que ele se encantasse, cada vez mais, com a completude em estado líquido; o mar e suas ondas, essas que vêm em direção à costa, arrebentando com violenta graciosidade, na pura demonstração de virilidade e jeito de confabulação alheia ao homem.
Postado à beira, molhando a planta e a parte superior dos pés, ele sentia-se entregue ao turbilhão em ebulição que tinha dentro de si. O dia fora longo, ele passou em um cubículo que chama de “escritório de advocacia”; sobre sua mesa, havia pilhas e pilhas de papéis-documentos que ele separara por ordem de urgência; ele se arrependera de estar nesta profissão, era a correria de audiências no fórum, consultas, e o divertimento foi se tornando escasso, o desejo de estar nesses lugares tornara-se superficial, e a comedida vontade de abandonar a vida de advogado foi condensando-se, até que a gota d’água pingou para transbordar o odre.
Terminado o seu expediente, afrouxou o nó da gravata, desabotoou o colarinho, e com a casaca do terno sobre o ombro, a pasta pendurada na outra mão, foi andando sem direção alguma, pois a rotineira vontade de chegar a sua casa, despir-se metodicamente, banhar-se, cozer o alimento, isso era demais à cabeça que pensa exclusivamente nas leis que regem a sociedade, no ardil de advogado que deve responder às questões do juiz dizendo que seu cliente é inocente, tendo ou não um álibi. Ele tinha quase certeza de que seu relacionamento consigo estava prestes a uma crise; seus olhos enchiam-se de lágrimas em pequeninas gotículas que logo tornariam a deslizar pela face, seu coração acelerava, e batia num ritmo descompassado, mesmo não tendo pressa de chegar a sua casa, muito menos sabia aonde iria; seus pés simplesmente moviam-se desgovernados, na profusão de arrepios e confusão, que não tinha mais como reger sua rotina, ele precisava pôr para fora todo o podre desta alma que, além de tudo, com seus defeitos e qualidades, era humana.
Os pés, calçando sapatos pretos e meias da mesma cor, estando cansados, ainda assim andavam involuntariamente; quando ele se deparou com a localidade, viu que estava à beira-mar, estacado em frente às ondas que buliam, gritavam com suas vozes ancestrais — de antes do homem —, movendo-se também pela ânsia de vida, despida de qualquer pudor maior, mesmo que ela sempre esteja vestida da cor do céu. Os raios solares, em plena extinção do dia, podiam-se ver; no horizonte, o sol caindo, longínquo, prestes a mergulhar de todo na imensidão azul.
Ele se senta, abrindo a mente, navegando o mar das ideias confusas. Imaginava o ócio naufragado em meio a seus pensamentos, mas via-se que lutava para permanecer boiando em pedaços de madeira, restos do barco em que se mantinha, entre os loucos devaneios. Seus últimos dias realmente não estavam agradando, a rotina estava por terminar, pouco a pouco, com sua vida; sempre repetindo ato por ato, palavra por palavra, tom de voz por tom de voz. E não tinha poderes para sobrepor todo esse ódio ao comum, ao vago, pois seus dias estavam se direcionando para isso, ao que mais odiava. Mas a labuta era importantíssima, sendo ele solteiro, com quase quarenta anos, sua família morando no interior, como ele poderia se manter nesta cidade?
Sentado, ouvia o ritmo gritante das ondas em sua imensidão; trazia para si essa melodia, tirando de seu meio o barulho dos carros, das máquinas e demais contribuições de poluição sonora. Dentro de si, as suas máscaras gritavam: a máscara de advogado, de amigo, de filho, de cunhado e de cidadão, mas sua verdadeira face estava depositada ao fundo do baú que ele instalara em um canto do seu ser, o mesmo estado que ele havia esquecido a existência e que não ouvia um ciciar apenas, nem isso, mas ela se movia elegantemente, e que, agora, com esse arrepio devido ao vento, tornara-se violenta, querendo arrebentar o baú, almejando a exposição física, cobrir o rosto dele, tornar-se verdadeira, tornar-se a própria face de si.
Ele, que tinha dores na coluna, estava confortavelmente sentado na areia; podia sentir a belíssima queda do sol, e não tinha vontade alguma de desistir da vida, mas, por momentos, percebia a grande devastação do espírito humano em detrimento das muitas máscaras usadas por nós; escondemo-nos por debaixo de diversos materiais, remetendo às máscaras do teatro grego, que em determinada situação da peça usavam-se, uma a uma, determinando o estado da personagem.
Ele estava em estado revolucionário, queria agredir qualquer tipo de estado comum de espírito, queria algo novo, queria novidades gigantescas para sua nova vida, queria um recomeço para gritar e vociferar todo tipo de alegria, de dor ou, até mesmo, de agonia. “Chega dos tempos de angústia, avante à liberdade, lutemos pela nossa clareza de espírito, que consigamos a vida, acima de qualquer coisa”, era o que ele pensava, era o que ele queria. Não somente queria, ele realmente necessitava, e o mar era um estímulo enorme; nele estava contida a rebeldia da vida, representada pelas ondas que não paravam de arrebentar, mesmo que pela ação do vento, este era outro veículo de estímulo, era ele que movia a copa das árvores, era ele quem trazia os novos ares de outras paradas, de outras estações.
Deita-se, move os braços e as pernas como que, para além de se exercitar, fazer um boneco a partir das formas e movimentos que praticava. Deitado, ele se lembrava dos tempos de menino, em que morava no Capão Bonito, interior do Rio Grande do Sul, e sua vida resumia-se em subir em árvores, comer os frutos que elas ofereciam, praticar peraltices sem medo do corretivo do pai severo.
Ele tinha coragem, e isso era o essencial, embora não tivesse uma perspectiva de futuro longe da papelada e burocracia do judiciário, levantou-se repentinamente de seu estado à beira-mar, arremessou sua valise de couro legítimo com seus papéis de processos, que teria de revisar em casa, à noite, mar adentro. Era a coragem do abandono, e buscaria a vida talvez no fim de uma linha de ônibus interestadual, vivendo, quem sabe, uma vida melhor.
Olhou firme para as ondas, que incansavelmente arrebentavam com um estrondo delicioso na costa, e, sem nenhum medo, tirou a roupa toda, e nu, banhou-se de seu banho de renovação e refrigério. As ondas cobriam-no por completo e a efusão de alegria se misturava homogeneamente com o líquido salobre. As ondas lhe permitiam a refrescante bagunça de um fim de tarde, e a total liberdade da simplicidade de ir e vir, e nunca ter a mesma forma, ou o fazer mais do mesmo. As ondas lhe impingiam a liberdade plena. Ele, nu, banhou-se de liberdade que tanto almejava, o amanhã ainda é distante, distinto e irreconhecível. Liberdade, acima de tudo. E o sol se pôs.