Dois contos de Thiago Tenório
Thiago Tenório, nascido em Niterói e batizado em Salvador, é formado em artes cênicas pela Casa de Arte das Laranjeiras (CAL) e história pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Escreveu alguma poesia, dramaturgia e romances de gaveta, entre estes a novela Ausentes, finalista do Prêmio SESC de Literatura 2011/12. Também integrou a coletânea Haja-nos com o conto O dossiê da personagem, editado em 2016, com organização do escritor Tiago de Novaes. Atualmente vive em Suzano ao lado da mulher, a misteriosa Karla Miranda, e é o pai da Violeta. Vai no caminho tentando se reconciliar com os poemas, os quais considera artes plásticas.
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Sativa
Nunca o vi, mas o reconheço. Está atravessando a rua e o sol ao redor dele parece enviado de outro tempo, mais ameno. Temos a mesma altura e cor de pele.
Sem compreender os motivos, passo a persegui-lo pela cidade, como uma sombra de verão. Para cada gesto seu, invento que tipo de pessoa ele pode ser. A leveza física no seu fluir pela multidão indica uma alimentação frugal, sem toxinas. O sorriso lírico, exibindo dentes surpreendentes ao cruzar com uma jovem mãe e sua criança de colo, deixa claro que esse homem não fuma e não odeia. Os músculos firmes e as roupas leves, sem adornos, estão me contando sobre trilhas em florestas perigosas, sobre buscas espirituais e a grandeza da solidão.
Depois de perdê-lo de vista entre carros na longa avenida, volto para casa, abatido ou instigado. Não tenho outra opção senão colocar tudo à prova, nada menos do que minha existência inteira. Começo pelos objetos que me cercam. Afinal, a literatura esotérica de massa afirma que arrumar a casa externa equilibra a desordem íntima. Jogo fora as garrafas de cerveja, o pisco chileno, meu uísque doze anos, os maços acumulados de cigarro. Despacho as tralhas de minha ex-mulher. Arrasto na enxurrada dos produtos de limpeza aranhas e outros bichos. No fim do dia, apoiado na vassoura, respiro satisfeito o cheiro de cloro na palma das minhas mãos.
Dias depois, quando reencontro por acaso o homem pela vizinhança, consigo sistematizar minha perseguição silenciosa, porque está claro que ele mantém uma rotina. Pela manhã, medita em uma praça na Angélica; ao meio-dia almoça com os mesmos quatro ou cinco amigos em um restaurante indiano numa travessa da Augusta. Certa vez, sentado numa mesa próxima, cometi a indelicadeza de ouvir a conversa animada entre eles. De qualquer modo, parecem nunca me notar. Falaram sobre retiros em Alto Paraíso, Ganesha, bolsa de valores e carpintaria. E também sobre signos, culinária, paternidade fluida e a senha do Wifi. Entre risadas, escutei quando uma das amigas chamou seu nome: Sativa. Depois de se despedirem, Sativa seguiu de bicicleta para Pinheiros, onde permaneceu até escurecer em uma loja de móveis planejados. Tudo me leva a crer que é o proprietário.
No decorrer da semana evito pensar em meu matrimônio desfeito, ainda que não guarde mágoas, pois sou propenso ao perdão. O que faço é me ocupar de um conjunto de tarefas: workshops de meditação, idas a zona cerealista, verdurão, dentista, loja de ferramentas. E depois leituras sobre a cabala, ocultismo, metempsicose. E ainda: licença de alvará na prefeitura, adesivos contra tabagismo, aulas online de culinária e carpintaria (ando pensando numa reforma para a cozinha). Aos fins de semana, emplaco caminhadas introspectivas em Boituva, Atibaia e na Praça da Sé.
Em uma das minhas noites solitárias no meu apartamento asseado e vazio, algo inconcebível acontece: por um breve intervalo de tempo, acredito que deixei de existir. Sinto-me migrando para outro lugar, um lugar onde me é vedado saber meu próprio paradeiro, ainda que pressinta, palpitante, um último resíduo de mim mesmo. Então me pego pensando em Sativa, em como faz meses que não o vejo, talvez esteja em uma de suas viagens extraordinárias. Ou quem sabe tenha alterado todos os seus horários e eu esteja sempre um passo atrás.
Na manhã seguinte, estou descendo a Augusta de olhos fechados, controlando os fluxos da respiração. Tenho fome, penso. Escolho o restaurante indiano de sempre, na Antônio Carlos. Ao entrar no salão repleto de aromas condimentados, avisto seus amigos que, para minha surpresa, me arregalam os olhos e agora também estão acenando. Estão felizes em me ver. Conforme me aproximo um pouco incrédulo, ouço um deles chamar meu nome e me repreender num tom divertido e afetuoso: “Você está atrasado! Estávamos só te esperando pra começar a comer”.
Durante aquela excelente refeição, conversamos diversos assuntos, falamos sobre retiros espirituais em Alto Paraíso, sobre Ganesha e bolsa de valores e tirei dúvidas sobre carpintaria. E também debatemos sobre signos, culinária, paternidade fluida e, se não engano, um de nós perguntou à simpática atendente qual era a senha do Wifi.
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Bacon65382
Nessa primeira parte da estória, enquanto narro sucedem-se imagens de um jogo virtual feito de pixels meio geométricos, meio humanos.
Hoje faz um ano que já não sonho, coisa que tem me deixado num estado de nervos, pois sonhar sempre me ajudou a manter alguma sanidade. Talvez seja culpa da minha dupla jornada de trabalho frenética e sem sentido. Vivo em um ritmo tão delirante que não me recordo do dia anterior, tampouco poderia afirmar quais eram meus desejos de antes ou localizar com precisão que lugar é esse que estou. Quero dizer, não sei onde tudo isso se passa, em que cidade de qual país, muito menos de qual planeta.
No primeiro trabalho, estou numa esplanada cercada por um céu granulado e imutável. Ando pra lá e pra cá nesse descampado sem fim onde volta e meia surge do nada objetos variados: um ônibus escolar amarelo, um iate encalhado no gramado, um portal. Minha tarefa é construir torres de madeira ou ferro, daquelas do tipo de comunicação, torres que ergo em questão de segundos. A cada uma delas, recebo moedas que logo em seguida uso pra comprar novas áreas desabitadas. Depois tudo recomeça, ergo torres enquanto a minha volta casas, parques e rodas gigantes aparecem e desaparecem num piscar de olhos. Minha outra tarefa é trocar (sempre que posso) meus objetos de trabalho, que começaram com alicates, chaves inglesas, e que depois abandonei pelo machado, arco e flecha, até adquirir as espadas a laser capazes de erguer torres em poucos segundos. É realmente um ofício alucinante.
Meu outro serviço é numa pizzaria. Trabalho ao lado de um sujeito de pele azul. Mal conversamos. Além do mais, ele me irrita por sua burrice inexplicável. Mantenho meu ritmo de produção numa voltagem acelerada e, quando noto, o infeliz desandou com o forno ou esqueceu a massa jogada no chão, coberta de baratas. Iniciamos um cabo de guerra que é jogar a pizza no lixo (eu), enfiar nova massa com recheio pela metade, feito às pressas (ele), então atiro o colega dentro do forno até ele ser incinerado. Não demora muito, me compadeço e apago as chamas com o extintor de incêndio preso na parede da nossa cozinha.
E continuo como se nada tivesse acontecido; ele também. Corro até o balcão, atendo clientes vestindo fantasias, clientes de asas, clientes de terno vindo do banco ou do expediente. Volto correndo para os fundos, retiro latas de refrigerante da geladeira, preparo a massa com os recheios que encontro na mesa, coloco mais pizza no conjunto de fornos dispostos até o alto da parede, jogo outras no lixo e às vezes acerto umas bordadas no meu colega azul ou simplesmente o atiro mais uma vez ao forno.
Em dado momento, muito irritado com minha proatividade e eficiência, ele arranca o uniforme, surge num estalo com roupas de gangue e me desafia para dançar passos de break. Me volto para ele e então deixamos de lado o serviço para sacudir o corpo com dancinhas duras, meio robóticas. Depois arranco um dos cachos do meu cabelo, que é feito de bacon (por isso o meu nome: Bacon65382) e mastigo a iguaria capilar.
Na segunda parte da estória, vemos que, enquanto uma criança de seis ou sete anos está jogando o jogo acima, eu narrava os pensamentos do personagem de pixels que se movia na tela do computador.
Estou sentado ao lado do sobrinho de minha mulher, os dois diante do computador. Ele tem seis de idade.
Perplexo, mais: bestificado, mais que isso: horrorizado, ou seja: inocente, pergunto a ele o que significa aquilo. Ele responde sem tirar os olhos do jogo: Olha quantas moedas eu tenho! Pergunto qual o nome do jogo, onde se passa aquilo, mas ele sacode a cabeça e diz não sei, não sei. Insisto: mas qual é o objetivo disso tudo? Ele explica de modo prático que o objetivo é construir torres e ganhar dinheiro, para depois comprar áreas mais caras e conseguir mais dinheiro. No segundo game, a tarefa é fazer pizzas, cuidar dos negócios e ganhar dinheiro.
Pergunto a ele e depois? Existe um terceiro game onde você gastará o dinheiro que ganhou numa viagem incrível, enfrentando corredeiras ou procurando o mapa de alguma civilização perdida? Ele acha graça porque nem prestou atenção.
Desço as escadas da casa e encontro minha mulher e sua tia sentadas no sofá da sala. Ainda de pé sobre o tapete, melodramático, conto a eles tudo que aconteceu, conto com palavras truncadas, afobadas, que não explicam nada, que não esclarecem o ponto onde quero chegar. Digo: o jogo está preparando o moleque pro mercado de trabalho! Digo: nada ali é lúdico, a não ser o gráfico precário. Sim, pra compensar tanto realismo, só mesmo com imagens de pixels! Claro, ninguém entende patavinas, mas acham o maior barato esse meu desespero divertido. Sinto falta de ar.
Nessa última parte, minha mulher, sua tia e eu lemos pela internet a notícia de que uma série maravilhosa que assistimos foi cancelada sem maiores explicações.
Minha mulher está chocada com o cancelamento da série. Sua tia, incrédula. O motivo do espanto é que a terceira temporada acabou no ápice, repleta de ganchos para uma continuação quente. Elas só acreditam na notícia quando corro o dedo no buscador virtual e encontro uma fala da autora: “Chegamos ao fim não por falta de tentativas, queridos. Mas não existe palavras que vençam argumentos contra economia, algoritmo e ibope demográfico. A dura verdade é essa: arte e comércio não sabem trabalhar juntos”.
A tia da minha mulher quer saber como é possível abandonar uma estória daquela pela metade sem ninguém se opor, fazer barulho, sair às ruas para defender a obra.
Minha mulher responde que ninguém está muito interessado em continuar as coisas, mesmo quem curte a coisa, é só um momento presente que depois não será lembrado no momento seguinte. Sim, eu digo, os fatos não se concatenam mais.
Então me levanto para fumar um cigarro lá fora, diante do portão gradeado, observando na ruazinha de paralelepípedos um senhor se aproximar meio vacilante. Pode ser que esteja chovendo, pode ser que seja noite, pode ser que o céu se volte para a cor rosa, pode ser qualquer coisa.
Ele estaca a minha frente. Usa um jeans e camisa de botão arrumadinha, quer dizer, limpa, com todos os botões ainda na costura. Mas sua pele, sua face, suas rugas, tudo na matéria dele tem um aspecto gasto, judiado, desfavorecido.
Ele me olha com sorriso ameno e tenta dizer algo. Tenta articular algo. Sua expressão é lúcida, olhos vivos; se fosse um filme mudo ele passaria por um avozinho divertido que conta piadas. No entanto, não conseguia dizer as palavras que queria.
– Aqui, a rua né, mora o.
– O senhor tá procurando alguém?
– É. O… como é que é mesmo?
Ele acha graça do próprio esquecimento. Dá uns tapinhas na cabeça, estala os dedos, batuca no peito de leve, enfia as mãos na cintura ou as entrelaça em prece. Um monte de gestos brejeiros ou angustiados bem ali no meio da rua. Me lembra o jeito faceiro do Jair Rodrigues (o grande cantor).
– Qual o nome da pessoa, o senhor lembra? Pra eu poder te ajudar.
– É o. Ômeudeu. Ixi. Essa cabeça né. Vira ali, né, vem por aqui… É o. Sabe? O. A. Como é? O…
Subitamente pareço congelar desde as entranhas (ou foi o tempo que parou), o cigarro cristalizado na mão, meu olhar profundo para o velho, um silêncio! E ele ali, fazendo seus barulhinhos de pessoa, tipo uma máquina enguiçada, engraçada, e eu aqui, atento, delicado, só assistindo, só assistindo.