Oito minicontos de Julia Sereno
Julia Sereno é professora, leitora apaixonada e escritora impulsiva. Doutoranda em Literaturas de Língua Inglesa pela UERJ, sua pesquisa aborda a narrativa diaspórica contemporânea de autoria feminina com foco em Londres, Bangladesh, Jamaica e Nigéria. Atualmente mora em Lisboa, mas seu coração ainda bate pelo Rio de Janeiro. Vive a diáspora com curiosidade.
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Sola
M. passou tanto tempo sozinha que as perdas foram inevitáveis.
Perdeu a vontade de dividir a pipoca do cinema. Perdeu os sapatos de salto alto que nunca gostou de usar.
Perdeu o pudor de se olhar sem roupa no espelho grande do quarto. Perdeu os contatos daquelas que, sem avisar, apagaram os rastros.
Perdeu as contas de quantas vezes se trancou e deixou a chave no bolso da saia.
Perdeu a chance de aceitar um presente sem sabor e um futuro de gosto duvidoso.
Ganhou todas as dores de seu mundo e fez do texto uma mentira sincera.
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Strega
A bruxa que voa comigo escolhi sem saber o nome ou origem. Gostei do seu nariz empinado, do vestido plissado e da meia-arrastão.
A bruxa que desenho nos sonhos voa alto rodeada de corvos. Carrega uma bolsa cheia de doces, bilhetes rasgados e um batom vermelho.
A bruxa que foi embora cansou de esperar na fila. Tinha pressa e um pouco de medo, voava baixo e não acreditava em unicórnios.
A bruxa que quero ser só tem olhos para o que ainda não sabe. Molha os pés no rio Tejo, deita na areia da costa e pede mais um copo de vinho verde.
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Sorriso
Tive um não-sonho ontem. Ruim demais para contar de manhã. Cedo demais para esquecê-lo hoje. Perdia todos os dentes. Um a um. Nenhum sobrava. Nenhum resistia. Todos iam embora. Deixavam-me a boca como fugitivos.
Via-me no espelho e chorava. Quando o meu sorriso voltaria? O sorriso da outra ainda existia. Grande, saindo pelos olhos. No meu sonho ela era o seu sorriso. Sem palavras. Só dentes.
Acordei com soluços e lágrimas. Guardei no peito o medo do não-sonho por horas a fio. Senti a dor da perda novamente. Contei para a fada e mais ninguém.
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Dentro
Hoje acordei dentro da saudade.
Senti seu abraço e o cheiro de seus cabelos.
Fechei os olhos para não despertá-la. Encolhi-me para ser invisível.
Escondi o choro no peito e pedi em silêncio:
“Não vá embora agora, fique um pouco mais”
Acho que a saudade me ouviu.
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Contramão
Erguidos ali um sinal verde e um sinal vermelho. Um ao lado do outro. E o amarelo? Onde estava? Tinha que estar em algum lugar. Como podia haver proibição e permissão e não haver atenção? Para a mulher, não fazia o menor sentido. Precisava de um meio-termo, de um tempinho para pensar, ponderar, sei lá. O sinal amarelo fazia parte da sua narrativa. E agora, o que fazer?
Resolveu pintar o sinal amarelo bem grande e pendurá-lo no meio dos dois, improvisando uma denúncia, um pedido de ajuda, um grito de “calma, porque eu não sei a resposta”! E assim o fez, sem pestanejar. Seguiu aliviada com a iniciativa. Outras agradeceriam, não havia dúvida. Talvez um dia visse o seu nome escrito em uma placa, em preto e branco.
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Feito
De todas as cores da palheta, B. não conseguia escolher nenhuma. Até o vestido ficara dentro da caixa. O cabelo recém-cortado não queria combinar com os planos feitos. Desistiu da data, das flores e do cardápio. Pediu desculpas e devolveu os presentes. Sentiu um pouco de culpa por ter escondido sua música. Sentiu um enorme alívio por ter desenhado a saída. Agora só precisava dirigir, estacionar e sair correndo.
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Domingo
Coloco mais camadas sobre a pele para não sentir frio. Retiro os pedaços de mágoa do peito para sentir paz. Coloco mais livros na estante para não perder mais tempo. Retiro os textos da gaveta para escrever mais. Tenho pressa de beber o cálice da noite à luz de velas. Tenho medo de não conseguir esperar o fim da estória. Acredito que o silêncio do dia vai preencher os espaços da sala. Aceito que hoje já está tarde para falar do agora.
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Amor
Quando deu à luz, a mulher não tinha certezas. Pariu sem anestesia. Respirou sem pensar muito. Confiou no ritmo do seu útero. Olhou para o teto branco e se perguntou como chegara até ali. Nunca havia se imaginado naquela cena. Seu mundo mudou às 21.47 de uma quinta-feira.
Hoje se orgulha do grito. Aceita o presente e a escolha. A mulher caminha a passos largos. Não voltaria no tempo, mas adiantaria o futuro. Não mudaria o encontro, mas inventaria outro fim. Talvez não houvesse fim. Ficariam somente os começos. Tortos, imperfeitos, duvidosos, porém inacabados. A mulher só desejava começar de novo. Desde a primeira linha.
cleildes Santana
Julia sereno
Lindos seus textos – poemas ( escrevendo em caixa alta pq o treco aqui não quer fazer diferente . Risos ).
Bj
Elias Borges de Campos
Amei, de outro escritor apaixonado pelo minimalismo.