Pandepoesia: “contágio descontrolado”
“Pandepoesia: ‘contágio descontrolado'” é uma curadoria realizada por Divanize Carbonieri. Na semana em que o Ministério da Saúde declarou que o Brasil está entrando na fase de aceleração descontrolada de contágio do coronavírus, como está o humor des poetas? Nesta seleção, temos onze poemas, respectivamente, de autoria de Chris Herrmann, Marcelo Bamonte Seoane, Cintia Gushiken, Maya Falks, Tito Livio Lisboa, Tatiane Silva Santos, Marli Walker, Wesley Correia, Helena Arruda, Gabriel Morais Medeiros e Andri Carvão.
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Epílogo
Partia sempre de que o fim dá origem a um novo começo
Ou, talvez, nem soubesse mais identificar, olhando pra trás
qual foi o ponto de partido exato
O acuar dos cães na antemanhã revela a incontingência e o acaso
que me abraça como o amor seu que jamais tive,
ou como aquilo que devia ter sido e jamais chegou a ser
Mas isso também chegou, e você não soube nem agir,
era o primeiro voejo de uma andorinha indefesa
Humano, tão racional que beira a irracionalidade, transforma-se
atordoado em algo que também jamais chegou a ser
Quarantena, a um passo do caos e um quarto de distância,
da cena da eliminação do despossuído, da peste
ou de ambos
Enquanto isso, a bátega álgida tomba lá fora
valsando ao som dos clamores de panelas,
orquestradas por mãos besuntadas de gel
As paredes encaram-lhe como se estivessem incubando
a própria peste privada de um sopro de toque
O transporte do ser a si, alcançando o lugar que jamais chegará
Sozinho
Você fica tão sozinho às vezes que até faz sentido.
(Marcelo Bamonte Seoane)
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O mundo!
A vida na porta aberta para o mundo
Pássaros lá fora
Abelhinhas sem GPS
O branco devagar das nuvens sem chaves
Flores reacionárias no lugar das horas corridas
Jornal com café da manhã
O “Olá” de um amigo distante
Crianças soltam pipas no papel
Fotografias para florescer memória
Asas que voaram
a grandiosidade histórica
Livro, lápis, vinho, óculos e álcool em gel
É tudo no bastante de um pensar profundo!
(Cintia Gushiken)
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Celas caseiras
Ecoam os sinos das catedrais
Para as missas de sétimos dias
Acendem-se as velas dos castiçais
Ajoelham-se ao chão de barro os fiéis
De pedra, de mármore, de madeira
Tocam imagens de santos em prantos
Mistura de gesso, tinta e lágrimas
Que mancham livros sagrados
E engasgam cânticos de fé
O inimigo invisível escolhe quem quer
Culturas, farturas ou pratos vazios
Vilarejo ou metrópole, mares ou rios
Não importa o riso do palhaço central
Não importa se acha que está acima do bem e do mal
Nos carrões em avenidas pedem o fim do cuidado
Querem o lucro sobre o pobre coitado
E acham que as cifras os deixam imunes
Mas contra a natureza ninguém sai impune
Que nossas celas caseiras de hoje
Nos privem do túmulo amanhã
(Maya Falks)
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Quarentena
O que pensa o pássaro
Pouco antes de voar
Há entre a asa e o vôo
Um instante de sonhar?
O que cabe na lida?
O que roreja no ar?
Um tantinho de vida?
Um pouquinho de mar?
Um espaço de fuga?
Uma imensidão de altar?
Aquilo que vira curva?
Um tanto que vida âmbar?
Na sacada em antemanhã
Na murada em pré-amar
Na lua feita de lã
No cais prenhe de mar?
O que explode em plumas
O que se borrifa no ar
O que se esparge em brumas
Na dança meio solar?
O mesmo que pesa ao homem
No espelho ao se mirar
No efêmero que contém
Um abismo a se lançar
O que pensa o pássaro
Pouco antes de voar?
(Tito Livio Lisboa)
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Quem nasceu como eu
na década de oitenta
cresceu ouvindo
dois mil não chegará
isso na infância
pesa muito
mas estavam enganados
ele chegou
[que seja! ]
em 2012
quando falaram
que havia outra profecia
outra
tanta coisa
passando
passou
em 2020
previsões
de um ano bom
me surpreenda
este ano eu não morro
e hoje
é domingo
amanhã também
vejam só
o buraco é realmente fundo
e não sabemos nada
nunca soubemos de nada
não melhoramos.
minha última viagem
foi para a Polônia
e famílias ainda
tiram selfies em Auschwitz
não sobra nada da gente.
o melhor disso tudo
provavelmente
serão as narrativas das crianças.
(Tatiane Silva Santos)
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Sentença
primeiro infestamos a terra em toda sua extensão
depois (porque a nós,
degredados filhos de eva,
foi reservada a razão)
empesteamos as bocas que mugem e ruminam em pasto viscoso
contaminamos o cerne de todas as palavras (estão dispostas como armas ao alcance dos dedos)
acusamos
condenamos
vociferamos uns contra os outros
tontos
variados
perdidos
estupidamente infectados
atiramos para todos os lados
rastejamos como vermes
em cova rasa e mastigamos
(um dia de cada vez)
o ser abjeto que somos
(Marli Walker)
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Monstro invisível
No silêncio empalhado
dos cômodos,
agiganta-se
o monstro invisível.
Penso na desventura
de suas multiplicadas presas,
se à ideia da mínima força
da mais frágil delas
tomba a insólita empresa
do meu corpo de poeta.
Penso em meus pequenos
sustos crônicos nutrindo
o riso do monstro mudo:
tanto maior que o mundo
quanto menor que tudo.
Penso em suas garras afiadas
ao desafio do visgo
que lhe escapa,
quase como quem o nega,
no rastro sem cor,
sem cheiro ou substância,
e penso na vida avessa,
sua presença Viva de instância.
Penso nos mil olhos de sombra
deste monstro prolongável,
em seus tentáculos perturbadores,
e no seu modo de testemunhar,
assim onipresente,
o desespero com que me armo,
disposto a alvejar o nada,
nos dias da guerra inglória.
Penso no monstro aritmético
em quem a pulsação indissolúvel
cumpre certa didática amorosa,
a de afetar, no exílio, que é
seu método e mistério,
a existência rancorosa.
O manto de símbolos,
se aquece o monstro,
parece enfurecê-lo ao sabor
da loucura mais letal
onde habita
o sintoma universal
do que somos o monstro e eu.
Tudo ao dissabor se cala,
não há assepsia que valha,
nem há porque chorar.
(Wesley Correia)
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quarentena
hoje o tempo escorre entre meus dedos,
que esfrego e enxáguo sem cessar
na esperança de encontrar as
lembranças da minha infância distante.
o tempo morno, estático, dos relógios –
duram uma eternidade, e, zás!
o ponteiro muda a direção da minha vida.
penso então
[a cada mudança do ponteiro]
naquilo que vivi, mas não queria.
acelero o ponteiro em direção ao futuro.
cambaleio entre ficar ou partir.
me dissolvo nas entrelinhas
pingando lágrimas escuras e borrando o caderno
que se abre ao vento de outono
das minhas janelas pesadas, maciças.
de novo o ponteiro, e
tenho uma saudade enorme do meu pai.
sonho que corro como louca para seus braços,
protetores,
porque preciso do seu abraço,
de ficar bem dentro dos seus laços.
zás! o ponteiro acelera e me faz ver
que estou confinada,
com uma estranha sensação de liberdade,
conquistada a duras penas: mulher madura.
o ponteiro muda de novo e eu acordo suada
do sono nauseado,
entorpecida de tristeza, e então
eu choro todas as mortes da minha vida:
morri tantas vezes,
tantas. hoje eu morri de novo.
e choro todas as mortes do mundo.
choro a minha morte, porque às vezes é preciso,
porque, às vezes, é preciso chorar. anoiteço.
amanhã eu vivo de novo. amanhã o ponteiro muda e
eu acordo. amanhã eu vivo de novo.
só amanhã.
(Helena Arruda)
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Viagem e internação hospitalar
[escrito em Istambul, em março de 2019]
Os chineses e os não-chineses, em fila indiana, seguindo a bandeirinha do guia turístico, no grande bazar, usam máscaras de proteção. Evocam, com isso, o mundo hospitalar: são pacientes do entretenimento. Blindam-se do contágio, da multidão, do ar podre, ao mesmo tempo que desejam o ecossistema. Ou melhor: fingem que se blindam, e sabem disso.
A máscara nasal é a membrana intermediadora entre a terra e o sujeito de estímulo. O erotismo está nas leves contrações de gaze e ar quente que expandem e retraem essa membrana defensiva. Parece a contração de uma barbatana que, ao ser decepada, exponha as raízes de uma guelra aerada. A máscara é escudo, dentadura de lã, freio bucal de feltro, asbesto e cartilagem. A outra membrana vital ao metabolismo dos turistas, obviamente, é a lente da câmera. Esta é projetiva, ao contrário da máscara, que sempre se introjeta, sempre se repuxa em direção à boca de quem passa, numa chupada.
Sendo projetiva, a câmera rouba algo do meio, como um tentáculo. Isso já foi dito muitas vezes. E foi dito muitas vezes que a câmera nutre quem tira fotos com o que furta da ambiência. É um bumerangue. Logo, é um soro fisiológico a câmera, e é sempre fascinante que todos finjam não saber disso.
Mas um soro fisiológico contrabandeado da maca ao lado, por detrás da cortina e do biombo. Como na pornografia, a surpresa e até a graça de toda a viagem está em fingirmos que ninguém sabe nada, seja sobre o futuro ermo, seja sobre os próximos cinquenta segundos. Sem essa graça, tudo é igual: neblinas e pavilhões.
(Gabriel Morais Medeiros)
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||ÚLTIMO FIM||
Tarde da noite
depois de mais um dia cansativo
exaustivo como todos os outros
com o sono acumulado de noites maldormidas
deito na cama sozinho
minha mulher fica no quarto das crianças até que elas peguem no sono
umas vezes não durmo
desmaio
outras vezes me viro e reviro pra cá e pra lá
de um lado pro outro da cama
como a me encaixar entre o colchão
a coberta o edredom e o travesseiro
da forma mais cômoda possível
e tento relaxar o corpo
me lançar no abismo macio
mas é em vão
independente do lado que me deito
fico com uma narina tapada
viro e me reviro de um lado pro outro
a narina destapa top e logo tapa a outra
e isso me angustia
a ponto de povoar minha mente com pensamentos mórbidos
um pesadelo real
a morte é o fim
a morte é sempre o fim de tudo
não há remédio
para todo mundo
reino animal e reino vegetal
microrganismos vírus
todos os seres vivos
incluso os vermes pra quem vou servir de repasto
falta de ar
de oxigenação no cérebro
e fim
uma morte horrível
uma luta inútil consigo mesmo
a morte assistida
as vias aéreas obstruídas
morrer morrer até cair
os que vou deixar aqui vão me deixar pra trás
começa a garoar
documento derradeiro o atestado de óbito
a burocracia da vida dominando a morte
último fim
contatam familiares e os amigos mais próximos
que se encarregarão dos mais distantes
para o velório e o enterro cristão
a cerimônia solene e simples
as piadas a meia voz
o choro sincero dos mais íntimos
a coroa de flores e a chuva de pétalas
uma última homenagem
a chuva começa a apertar
os coveiros descem o féretro às pressas
as pessoas abrem seus guarda-chuvas pretos
como morcegos silvestres
bandeiras sinistras de navios piratas navios fantasmas
asma
eu tenho asma
o ambiente ao ar livre fica carregado
ainda mais pesado
as árvores sopram um vento gelado
as pás de terra põem um fim a tudo isso
o fim é um recomeço
só os tolos acreditam nisso
estou preso trancafiado fechado no caixão
embaixo de quilos de terra
a sete palmos do chão
e ainda rezam pra que minha alma ganhe o reino dos céus
justo eu que nunca tive religião
não consigo me mover
não posso respirar
faz frio lá fora
faz muito frio lá fora e aqui dentro idem
estamos em pleno inverno
gelado polar glacial
um inferno de estação
mas não
eu não aguento mais
e tiro a roupa quase toda
não consigo dormir com um monte de pano me prendendo
isso me sufoca
boca seca
preciso de um copo d’água urgente
salto da cama
não aguento mais
vou até a cozinha sem acender a luz da sala
tomo meio copo d’água
descalço e sem camisa nem calça
respiração opressa
atravesso a sala esbarrando nos móveis
escancaro a janela e ponho a cabeça pra fora:
Epidemia
P a n d e m i a
P a n d e m ô n i o
(Andri Carvão)