Quatro poemas de Patrícia Cabianca Gazire
Patrícia Cabianca Gazire é paulistana nascida na década de 1970. É escritora e psicanalista, autora do livro Objeto, modo de usar (Editora Blucher, 2017). Possui contos e poemas publicados em antologias coletivas pelo Brasil. Cursou por um ano o Master en Création Littéraire du Havre – ESADHaR, na França. Atualmente, finaliza um Doutorado em Escrita Criativa na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) para o qual apresentará seu romance de estreia, Entre duas línguas, em fevereiro de 2020.
***
Elpenor
nunca soube
na vida
a cor
dos olhos
um dia
sonhou
que eram
marrons
seu amor
louco
era feliz
de morrer
de rir
gostava de vinho
e de tirar os sapatos
sentar sobre
os degraus e
olhar
abelhas
um dia
seus sapatos sumiram
olhou
as abelhas
e mais adiante
viu
que alguém
estava nos seus sapatos
levantou-se de repente
passo a passo
linha a linha
vacilou descendo os degraus
quebrou no meio
ninguém viu
palavras alaram-se
subindo
abelhas
*
eclipse
é fim de
tarde ela passa
ela passa ela passa
roupa
enquanto assiste
à tv
de costas
seu vestido
vermelho
é o calor
faz o suor
escorrer pelas
têmporas
e borrar
de leve
o batom
que
ela limpa
com as costas
da mão
e
então
chove
ela larga
o ferro
e anda
fechar
a janela
nessa hora
esfrego a vista
olho bem:
o que vejo
são duas poltronas
com uma bola
vermelha
no meio
e mais pra cima
o rosto
é o retrato compósito
de alguém
que
não existe.
*
deus
ajoelhar-me diante de deus
e pedir o quê?
que ele não mate o homem
do coração
no mesmo dia
em que a mulher
dá luz à filha
estatelado no chão
ao lado da cama do hospital
onde a mulher por sorte se trata
das coronárias
ajoelhar-me diante de deus
e pedir o quê?
que ele não arranque
do peito da mulher
o bebê
enquanto sua veia
pulsa tanto
que ela não pode
senão sussurrar
socorro
ajoelhar-me diante de deus
e pedir
que o homem suporte
o amor
dividido
ao meio
não, não é possível
é concebível
que deus
tenha mudado
de ideia
e que o homem
tenha se oferecido em sacrifício
para que a mulher ame a filha
duas vezes mais
a trilha de deus tem que saber não aparecer.
*
Dois crimes
Quem se dispõe a escrever
sobre os crimes de Euclides
afunda
por um problema de fatos
(mais de uma pessoa, mais de uma versão)
ou por uma questão com as palavras
(que às vezes dizem pouco)
Canudos
por muito tempo
apêndice de livro
quando reescrita por Euclides
torna-o prisioneiro
(como seu amor por Anna
a perseguir nas entrelinhas.)
mas o passado
quando esquecido
retorna como um longo espectro
obriga a exumação dos cadáveres
e a repetição da autópsia
(não dos corpos
mas da história de amor.)
Euclides e Anna coexistiam às turras
Ele, o marido ausente
denunciava o massacre
“de gravata vermelha”, escrevia,
“os prisioneiros baianos são enterrados um a um”
Anna apaixona-se por Dilermando
jovem cadete
“homem bom é homem novo”,
diziam a ela as primas
enquanto a Euclides,
maldiziam os amantes.
Anna teve filhos com Dilermando
Euclides fez vista grossa
não sem torturá-la
sempre que podia
fazendo-a beber
da água com seu sangue
que cuspia tísico.
Até o dia
em que Anna pede o desquite
e vai morar com Dilermando.
Euclides
num acesso de ciúme
parte para matar ou morrer
atira, fere
Dilermando se defende
e mata.
Anos depois
o segundo Euclides morre:
Quidinho
filho do escritor
meio-irmão dos filhos de Dilermando
tenta vingar o pai
atira primeiro
fere Dilermando
e na reação
é morto.
Eis o desfecho dos crimes:
Dilermando é absolvido
por talentoso advogado
os Euclides estão mortos
O pai, mito nacional
o filho, por ora esquecido.
E o epílogo da história:
um mês depois
da destruição do arraial da Bahia
um desfile militar no Rio de Janeiro
comemora o fim da dita
conspiração monárquica
um soldado surge no meio do povo
para matar o presidente
um marechal vai salvá-lo
e morre
de um punhal escondido.
sobrou a favela
que tem nome do combate na caatinga
e que fica agora no alto
monumento
à entrada do Corcovado
chamam-na comunidade.
Eu que leio aqui atentamente os autos
vejo que o mito prevaleceu sobre os acontecimentos.
Quem se dispõe a escrever
sobre os crimes de Euclides
joga com o destino
(é preciso embaralhar as cartas
para recuperar a verdadeira história
do homem que matou o mito
porque a paixão foi mais forte.)
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