Quatro poemas de Andreev Veiga
Andreev Veiga é poeta. Autor de três livros, dois como autor e um como organizador. Como autor: diálogonuvem (FCP, 2016) e O mergulho do afogado (Kotter Editorial, 2019). Como organizador: O vento continua, todavia – dez vozes da poesia contemporânea em Belém (Kotter Editorial, 2020).
Os poemas “o lavador de pratos” e “o 6º andar” integram O mergulho do afogado. Os demais são inéditos.
***
o lavador de pratos
a aurora se desfaz com o café
que desce forçadamente à garganta
e não há sensibilidade para que se perceba
a família que ainda dorme
caminha pelo centro comercial e vê nas vitrines
os tijolos que até pouco tempo atrás
não o deixaram sonhar
chega no horário marcado
veste-se com o branco engordurado
com fissuras provocadas pelo uso constante
o branco que em breve
facilmente confundirá com seu rosto
a conversa no trabalho gira em torno de crimes e
relações amorosas em palavras de calão
uma mulher esfaqueada na mesa de um bar
ou um homem assassinado na entrada de um motel
é um porão de navio
e faz com que o pouco que resta de si
escorra pelas fissuras agora cavadas em seu rosto
dez anos para envelhecer
sobre o pensamento vagante no prato vazio
ou com sobras de alimento
desejos
frustrações
farofa que soprou da boca
solidão
– esse babugem vai pelo ralo
e junto vão-se estes sentimentos e os olhos do proletário
fazendo com que a pia entupa para o próximo na escala
antes do pôr do sol
deixará o centro comercial pensando em álcool
e na possibilidade de mudar de vida
em casa
preencherá o buraco deixado no telhado
para que a lua – que nunca existiu
não veja o corpo-presente
jogado na cama para o destino
*
o 6º andar
a recepcionista se mostra satisfeita
que bom que ela saiu do CTI
eu finjo uma gratidão e lembro o trecho de um poema de mallarmé
um lance de dados jamais abolirá o acaso
isso faz a fumaça do cigarro pesar
e afundar um navio em poucos segundos
entro no elevador
vou para o 6º andar apartamento 606
a viagem é interrompida por um problema técnico
paramos entre um andar e outro
eu e o elevador
e diferente de john malkovich
não há um portal
apenas a labirintite à esquerda
à direita
a porta trancada
passo pelo corredor e vejo pessoas chorando
uma porta aberta. uma senhora pelada no leito sendo higienizada
certo dia uma enorme podridão saiu de uma das enfermarias
e tomou conta do 6º andar
andar detestável
dizem que é o andar onde a esperança é acelerar
com toda a força contra um muro
e esperar para ver o que acontece depois
a família cresce e diminui
já carreguei muita gente doente
alguns tenho certeza que já partiram
mas cada rosto fica para sempre
como se estivessem todos em uma praia
sempre ao chegar da noite
onde a vida pede passagem
e cada tumor é uma estrela encoberta por uma nuvem
chego no 606. lavo as mãos. passo álcool. calço as luvas
esse é o procedimento para que eu possa tocá-la
e apesar de sua memória já não ajudar
conversamos um pouco
mas passamos a maior parte em silêncio
e eu não sei o que passa em sua cabeça
mas na minha sei que pode alcançar todas as docas
só o lugar que encurtou
*
noite
a noite é como um camaleão no escuro
um luto ausente da morte
que peregrina junto à canção
que o vento traz do paraíso
*
e não somente um irmão
para marcílio caldas costa
meu irmão morreu
foi assim que fiquei sabendo da dor que meu amigo sentia
confesso que não lembrava o nome de seu irmão
e quanto mais me esforçava
mais a chuva castigava lá fora
podia comparar
a quantidade de água que caia
com o desolar no coração de marcílio
que agora
feito motor à manivela
bombeia as lembranças do inerte corpo
sendo carregado para o centro da casa
espero dar-lhe um abraço na passagem do tempo
dizer-lhe qualquer coisa que o faça sorrir
mas sei que não é fácil
não há inverno que escape à memória quando os ponteiros se quebram
pés e mãos se enrugam às aguas quando o telhado é levado pela tempestade
queima a última lâmpada
a luz que fica
não serve pra nada
meu amigo há de dizer-me daqui a alguns dias
que está suportando a barra
mas sei que
por mais forte aparência
talvez tenha morrido em meu amigo
algumas palavras tão doces quanto o silêncio do corpo tombado
e não somente um irmão