Quatro poemas de Fabiano Calixto
Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns (PE), em 8 de junho de 1973. É poeta, editor e professor. Vive na cidade de São Paulo com Natália Agra. Doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Publicou os seguintes livros de poesia: Algum (edição do autor, 1998), Fábrica (Alpharrabio Edições, 2000), Música possível (CosacNaify/ 7Letras, 2006), Sanguínea (Editora 34, 2007), A canção do vendedor de pipocas (7Letras, 2013), Equatorial (Tinta-da-China, 2014) e Nominata morfina (Córrego/Corsário-Satã/Pitomba, 2014). Fliperama, seu próximo livro, será publicado pela editora Corsário-Satã no segundo semestre deste ano.
O último dos poemas abaixo foi já publicado na antologia 50 poemas de revolta (Org. Alice Sant’Anna. São Paulo: Companhia das Letras, 2017), e todos sairão no livro inédito Fliperama.
***
Cadáver esquisito
o poema está com problemas gástricos
vísceras atacadas por sílabas anômalas
apirexia apneia algia anemia
o poema está em maus lençóis
sofrendo de poesia
o poema está com as hemorroidas
latejantes, as varizes inflamadas
o poema sofre de tumores e terçóis
esperança e burrice infectam o poema
todo dia é dia de pneumonia
pelos mil quelônios dos demônios!
o poema está lascado
não consegue pagar o aluguel
nem há comida no seu prato
pé quebrado, fígado estraçalhado
o poema alheia-se à estrela puérpera
“quem diria, nem parece o mesmo poema
está um trapo, irreconhecível”
taquipsiquia no real infernal
ábaco do balacobaco – polaroide
o poema é um androide
ao poema recusaram o
benefício de prestação continuada
porque o poema não presta pra nada
acabaram com o poema, mente e alma
na fila da unidade básica de saúde
o poema pensa nas ironias cósmicas
na identidade nacional (o poema aguarda
doação de sangue no hospital municipal)
o poema está fodido
*
Onde andará Derrida?
(c.1968)
na noite dos tempos
a lua acesa dos céus de verão
ilumina os orgasmos dos amantes
dando à carne de seus sonhos
saúde existencial
no instante de pesadelo, de trevas táteis,
a ferida faz eco,
se repete, ressangra, ida
e mais ida, ferida falando (pela pele
translúcida do vento)
de ferida
noite da noite escura, roda-viva ávida de carne moída
a espreitar, como cobra acossada,
mordida,
o quase nada
da nossa vida
apontam o dedo – toda a polícia
atiram em você – toda milícia
carniça e sevícia
a serviço do servil
camarote fascista
por saturação, a salamandra
desencana de suas cores
num desencanto radical
torna-se cio de cinza
e frio
agora é tarde, estão já
à porta os assassinos
à sinfonia de rifles,
os tiros rasgam as artérias
os tijolos úmidos do coração
*
República Federativa dos Morféticos
este é Espinheira
Espinheira é, além de uma garrafa pet imprestável,
ministro chefe da casa civil
servil recém-nomeado
grande Espinheira! – diria seu pai, Espinheirão,
deputado federal pela puta-que-o-pariu e
larápio inveterado limpador dos cofres públicos
Espinheira, filho de Espinheirão,
neto de Espinheiraço e bisneto de Espinheiração,
é o orgulho da nação
esta porta aí se chama Wilssa
foi designada ao cargo de ministra
da justiça pelo governo fascista
muito culta, a Wilssa, sabe falar
inglês, grego e alemão rústico
adquiriu alguns MBAs e mestrados
muito dos falsos mundo afora
dona de uma multitrilhordária
cadeia de lojas de inutilidades gerais,
Wilssa quer batizar, agora,
com dinheiro e petróleo,
toda a fauna e flora
Wilssa, mente policialesca,
cristã da capela cretina, diz que o diabo
(marxista cultural da mamadeira de piroca)
vai vazar do país – e é agora!
Jessandira, esse CD da america online 5.0 with 250 free hour,
é uma grande admiradora das ideias de Adolf, o Hitler,
jamais escondeu que votaria no homem-de-bem Trump
caso tivesse tido a bênção de ter nascido em Miami
nossa atual ministra da cultura
ficção de si mesma, cova da própria sepultura,
fã incondicional de sertanejo universotário
e de patetas instapoetas colaboracionistas
diz que o brito fará o quadro do novo grito
do país fascista (bomba de devir cafona)
Jessandira é um amor! – diz sua madre matrona
já Comodoro, o palito de fósforo usado,
é agora presidente do banco central
típico cargo técnico-boçal, Comodoro
vive a pregar para sua imunda plateia
(que reza pelos salmos da economia de mercado)
as mentiras mais cretinas
as lorotas mais calhordas
nunca faltou, ao Comodoro, dinheiro
(grana bufunfa money tutu cobre)
sabe tudo de numismática
para o bem do bolso avaro
de sua família parasítica
e de sua particular matemática
assim, ao assovio murcho de ventos poluídos,
nos quatro cantos de uma nação apodrecida,
onde desaba a tempestade da globalienação do capitaclismo,
sob as ordens de frenéticos apopléticos
escalafobéticos caquéticos
caminha a república federativa dos morféticos
*
Memórias de um homem-bala
não sobrou muita coisa mesmo
pouca gente, pouca vida
uns restos imensos de ruínas
paredes e muros, farelos
pessoas e animais, carne estraçalhada
colônias de infecções e pestilência
quando tudo estava no olho do furacão
ninguém quis muito saber
inconsciência da tragédia em plena tragédia
o colapso chegou sem dizer palavra
arrombando a porta
quando fomos tentar consertar
já era tarde
muito tarde
ficamos todos muito cabreiros
mas o câncer crescera tanto
que sua cura tornara-se impossível
tudo começou a desmoronar
com a catástrofe hídrica
e, logo na sequência, a
queda planetária de energia elétrica
rio após rio após rio após rio
mortos, arruinados
das bacias hidrográficas
apenas longos caminhos de sujeira e lama
o agronegócio desgraçou os biomas
décadas e mais décadas de soja
soja soja soja soja soja soja soja soja
décadas e mais décadas de mineração predatória
rejeitos contaminados
arsênio alumínio manganês bário
mercúrio chumbo cromo cádmio
gado
pastando por tudo quanto é lado
gado
imensas quantidades de nitrogênio e fósforo
nas fezes animais
infectaram os cursos d’água
suas carcaças em putrefação, a terra
com a total escuridão e
com a imensa seca, a convulsão chegou
sangue-show
travaram-se batalhas violentas por água
a luta por água exterminaria
uma parcela inimaginável da população
sem água, tudo começa a faltar
comida, medicamentos, produtos de higiene
a fome se alastrou
as instituições viraram pó
o puro creme do caos, anunciava o cavalo-do-cão
a completa desarticulação dos quadros temporais da história
do planeta que existira
restou apenas esse corpo celeste doente
cheio de mazela e imundície por toda parte
os cancerosos supurosos, resultado dos alimentos transgênicos,
caminhavam urrando seu sofrimento bestial
pelas vielas escuras das cidades destruídas
sem remédios e com a baixa imunidade,
as doenças, das mais simples
às mais complexas, mataram outra
parcela gigante da população planetária
nada mais funcionava
voltamos ao tribalismo
o dinheiro foi desaparecendo
em poucos meses
já não servia para nada
as cidades, vestidas de linho fino,
de púrpura, de escarlata,
adornada com ouro e pedras preciosas
e pérolas, viraram praças de guerra
fome, sede, sangue e saques por todos os lados
tudo morre agora no solo ante carros velhos
a urrar, crispando as mãos no pó sanguinolento
bestialidade e terror
as milícias propagaram-se como peste
os anjos camponeses, com seus olhos rurais e
a terceira luz, resistiram como puderam
mesmo com o ativismo planetário
lutando bravamente
não foi possível deter o poder do capital
os megarricos partiram para outro continente
levando tudo que saquearam do planeta
e os mercenários do Blackwater (que fariam
a segurança do continente – junto aos vendidos
exércitos dos países invadidos)
de lá, os megarricos apenas se protegiam
de todas as maneiras que podiam
mas isso, claro, não durou muito
a falta de tudo chegaria também à Oceania
ainda que fechados por imponentes
muros e milhares de mercenários,
os megarricos foram
estraçalhados
e devorados
pela imensa fome
dos caminhantes da miséria
ninguém está protegido,
ninguém
na Era do Crescimento, engrenada
pela dinheirolatria de imbecis de todo o planeta,
tudo foi privatizado, monetizado
cada parte da vida havia de dar lucro
as cidades tornaram-se domínio das grandes corporações
que controlavam todas as instâncias existência
a religião, as eleições, o futebol,
o que a população pode ou não comer,
pode ou não vestir, ler, assistir
aonde ir
de onde vir
nos tornamos pobres reféns sofríveis
levando uma vida sofrível
burros, cegos e imbecilizados
celebrando nossa bandeira
nosso passado de absurdos gloriosos
nocauteados avassalados pisoteados
por todo tipo de humilhação
hoje, todos fodidos
habitando o mesmíssimo inferno
pobres reféns sofríveis
levando uma vida sofrível
foram chegando os ratos, as lacraias,
os assassinos, estupradores, mercenários,
as baratas, escorpiões, aranhas,
os ladrões, torturadores, fanáticos,
as pulgas, percevejos, traças, carrapatos
as bactérias, os vírus tornaram-se
superbactérias e supervírus
e exterminaram mais uma parte
incomensurável da população
até que as notícias pararam
de chegar
as pessoas pararam
de chegar
as raras informações que ainda
circulavam
chegaram em caligrafias vacilantes e minuciosas
em papéis muito velhos
como maços de cigarro ou papel-moeda
dentro de garrafas jogadas ao mar
que faziam dos oceanos
nossa maior biblioteca
memórias cruzadas pelos
infinitos cantos noturnos das baleias
no fim, no meio desse existir aleijado,
o planeta completamente destruído,
sobraram poucas pessoas
impossível saber ao certo agora
acredita-se que tribos nômades
cruzam todos os continentes
é assim que vamos vivendo
um tempo aqui, outro ali
não ficou nada, de fato
nem um botão, nem um rato
todas fontes secaram
ninguém
nunca mais
tocará
os seios da sereia
Cobertura do edifício Martinelli, Trevas de Abbadon, Comunidade Marduk, primavera de 2222
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Fotografia de Natália Agra.