Quatro poemas de Fábio Saravy
Fábio Saravy é biólogo em tempo integral e poeta nas horas vagas. Vive à cata de besouros e palavras.
***
A NÁUSEA ENQUANTO BRINQUEDO
me lembrei
do engulho que te arrepia as tripas ao ver uma lasca de osso humano jogado casualmente em algum quintal nessa vizinhança.
das janelas dos prédios que gradualmente se apagam, obliterando os mosaicos verticais dessa cidade em cujas ruas
nos fitamos por um átimo e desviamos olhares,
ato contínuo.
dos estranhamentos que temos mesmo com nossos parentes mais próximos, nossos estranhos mais íntimos.
da turgidez da sua jugular pulsando ao ritmo de um jazz mais antigo que os fósseis do cambriano.
da vaidade atrelada às cordas da lira,
como um buraco negro no peito que corrói,
cintilando.
daquilo que ousamos esquecer neste absurdo conluio mútuo,
me lembrei
por engano.
*
CONSTELAÇÃO
para minha Mãe
é bífida a espada fria que se alinha
na minha e na tua espinha.
uma farpa que funda brota e se enraíza,
envolve como chuva a chaga que se anuncia.
e não perco de vista a esperança
de que ela suma como apareceu
por magia.
vou tentar vibrar as membranas translúcidas
dos astros surdos
enquanto na pele da nuca batuco os dedos bêbados.
a muralha que evoco vem de dentro,
do quente da chama que se acende com a tua.
e não perco de vista nunca a tua guia,
macia e pura como a água que não bebo.
é triste pensar se amanhã eu te perco.
o veredito jamais pode ser dela,
sagaz,
não haverá trégua contra essa donzela precoce
até nós estarmos
em paz.
*
O AUTÔMATO EM NEGAÇÃO
existe um tempo exato
para que a capa do crânio se forme
e se feche sobre o universo
vedando a dor que irradia de algum ponto indefinível.
existem condições distintas
– cordas, roldanas, labirintos e pedrinhas –
para que você se mova sem tropeçar em si mesmo
e o equilíbrio teso te fixe sob a abóbada
azul de terror
e mesmo quando contrações antagonistas te impelem à corrida
para um lugar onde nada exista
ainda assim tudo estará lá para te lembrar que não há rota de fuga definida
para quebrar o contrato que você não assinou.
existe um meio específico
para que a cítara inútil
presa na tua garganta
te faça perceber, nas noites mais frias,
que as estrelas são surdas
e que as palavras são pedras atiradas a poças de lava.
existe um tempo bem curto
em que você deve se acostumar
a contentar-se com o inaceitável
e aceitar o que todos fingem, atolados na loucura,
com os cinco sentidos aguçados
e a todos os sentidos enganando
quando sabem, em determinados segundos de lucidez não consentida
que não existe tempo que basta.
*
CASULO
antes que os milípedes sapateiem sobre as órbitas dos seus olhos
as mil pernocas na tua retina baça
preciso te dizer algumas coisas:
que o tempo é um chicote
sobre peles insensíveis, sozinhas
enquanto vão sendo encarquilhadas por vergões do açoite
e os grãos de terra preenchem as gretas das feridas
até que sucumbam sobre o peso do barro.
é possível vê-las, em tempo de chuva,
as pessoas
cobertas de lama.
e na seca o vento quente e forte não remove os torrões:
cimenta.
e por dentro
com o passar dos dias os corações se esfarelam em limalha de sangue
já preto do ocaso
a borra da indiferença.
e que assim é melhor.
já pensou se você chora
e o corpo argiloso se descobre
sobre o peso das gotas grossas
revelando-te nu
o zumbi de avenida
o cadáver das matas
o fim de toda alegria?