Quatro poemas de Francesca Cricelli
Francesca Cricelli (1982-) é poeta, pesquisadora e tradutora. Publicou Repátria no Brasil (Selo Demônio Negro, 2015) e na Itália (Carta Canta, 2017) e 16 poemas + 1 em Nova Iorque (edição de autora, 2017) e em Reykjavík (Sagarana forlag, 2017). Organizou as cartas de Ungaretti a Bruna Bianco (Mondadori, 2017) e traduziu, entre outros, Elena Ferrante (Biblioteca Azul, 2016) e Igiaba Scego (Nós, 2018). Doutoranda em Estudos da tradução (USP).
***
Açafrão
Os gatos quando nascem
têm os olhos cerrados à luz
movem-se lentamente no espaço
tacto
pelugem avermelhada
e olfato
deslocam-se tímidos
as patas imensas o corpo macio
cheiram a leite
vivem no sonoro e no escuro
miam silenciosamente para a cegueira do mundo.
É a memória, não o amor, um cão do inferno
unrequited love, I’d say
mas há uma canção de William Carlos Williams que diz mais e melhor:
“Deitado aqui, eu penso em ti: –
A mancha do amor
Domina o mundo!
Amarelo, amarelo, amarelo
o amor devora as folhas,
espalha o açafrão
os ramos feito chifres se dobram
pesam
sobre o suave céu lilás!
Não há luz
só há uma mancha densa feito mel
que cai de uma folha à outra
de um galho ao outro
arrancando do mundo inteiro
as cores —
Tu lá ao longe sob
a orla vermelho-vinho do oeste!”
Outona
e as folhas se dobram sobre o chão
cada coisa se recolhe sobre sua raiz
nas entranhas da terra
os olhos dos gatos
aguardam a primavera
[inédito para Júlia de Carvalho Hansen a partir do seu Ferrugem, 15 de setembro de 2018]
*
Ipês
Nos ramos secos
as últimas três flores amarelas
apontam para o alto,
ainda não é agosto,
mas já definharam,
como meus punhos,
contra a maciça
cancela da vida.
Pedir à lisa superfície
uma resposta.
Esperar que chegue
um clarão
que não cegue.
E se tudo se apagasse agora,
no ruído diurno do aço
de um trem na periferia?
[do livro Repátria, Selo Demônio Negro, 2015]
*
Lençol freático
Epppure resta
che qualcosa è accaduto, forse un niente
che è tutto
(Eugenio Montale)
nada mais do que
uma
linha imaginária
divide da reserva a superfície
o silêncio caudaloso
alimenta as cisternas
tudo que o céu devolve
corpo recolhido
entre as margens
O que resta incrustado
no côncavo da memória?
luz refletida sobre o Arno?
som de córrego?
lua cheia colorindo as artérias da Amazônia
ou o Tietê putrefato?
Só
o hipnótico
incessante movimento
diz:
‘nem tudo termina por aqui’
há tanto curso
até o mar,
nossa existência aquática
há sempre um rio
para medir a sede
do mundo
levo sob os pés
o lençol freático da ausência
[16 poemas +1, edição de autora, NY & SP, 2017]
*
Murmúrio do branco
[a do desenho da cidade de Krumau de Egon Schiele]
Chove sobre as cores,
é um auto-retrato
o amaranhado do ocre e do laranja
uma lança que perfura o olho divino a falta.
Colore a densidade populacional nos mapas, o ocre,
mas as casas andam vazias
e no interior das coisas cantamos nus como Sophia.
Está no murmúrio do branco
o caminho do carvão
e eu o persigo pelas linhas, com os dedos
firmes sobre as janelas e as tuas costelas
as casas andam desabitadas de ti
da desordem vital
que confere têmpera à luz oblíqua da tarde.
Não há sismo
e os jardins são todos internos
os desertos todos interiores e anteriores,
eles resistem ao regar das horas
resistem
ao esmiuçar com os dedos os pastéis a óleo sobre a folha de papel.
Ardem las pérdidas
como na praia as labaredas vulcânicas sob a lua cheia de Reykjavík
e aporta
aporta
aporta também o esquecimento
esta casa velha.
[Poetry comes to the museum, Minsheng Museum, Xangai, China, 2018]