Quatro poemas de Francisca Camelo
Francisca Camelo nasceu no Porto em 1990.
Tem poemas espalhados nas revistas Flanzine, Gueto, Tlön, Nervo, Tutano, na zine MAIS PORNÔ, PFVR, nas Antologias Terceira Margem – Poesia de Portugal e do Brasil, Lluvia oblicua – Poesía portuguesa actual, Poemanifesto 2.0.18, entre outros.
É co-fundadora d’A Bacana e contribuidora regular da Enfermeira 6.
Publicou os livros Cassiopeia (Apuro Edições, 2018), Photoautomat (Enfermaria 6, 2019) e O Quarto Rosa (Exclamação, 2019).
Gosta de ouvir Chavela Vargas, de halloumi e de comprar flores sozinha.
O primeiro poema abaixo foi publicado n’A Bacana – Poemas Reunidos, o segundo na Enfermaria 6 e o quarto no livro Photoautomat. O terceiro é inédito.
***
como apagar um milagre
pesquisar:
milagre
primeiros sintomas
contra-indicações
como apagar um milagre
como acreditar nele
observar os mamilos ao espelho
ainda não escureceram
observar os fantasmas ao espelho
ainda não desocuparam
e como os mamilos
não doem por demais
chá de carqueja
mata tudo
sono leve
tensão alta
milagres avulsos
matar milagres é tão fácil
basta o roma do cuarón
e algum chá de carqueja
mijar para um stick branco
e ver dois riscos
um no ecrã minúsculo
apontando para o c de
controlo / coragem / cansaço
outro atravessado ao longo
dos meus olhos embargados
segurando o nojo
de não lavar a urina
na ponta dos dedos
apertar a tâmara
ver se tem caroço
apertar a garganta
ver se tem amor
espremer com cuidado
ver o que sobra
smiley eggs, dizia
na embalagem de chocolate
rotten uterus, pensava eu
pesando com a mão direita
a papaia demasiado
tocada – tantas viagens
quilómetros transladados
e agora agora
ninguém a come –
encontrar de tudo no supermercado
como no útero
não comprar nada
não nascer nada
o útero ser também
uma cama húmida
para a morte
olha só o que dizia
a mulher duplamente abandonada
do roma
que é um bairro suburbano
no méxico
uma capital europeia
e amor ao contrário
escuta o que ela dizia à grávida
chegando bêbada a casa
depois de se descobrir:
estamos solas.
no importa lo que hágan,
estamos solas
é que para apagar
um milagre
é preciso primeiro
acreditar que ele existe.
*
4:40
comportamento errante
foi por isso que ele a deixou
comportamento errante
e hoje aqui estamos
4:40
num bar onde as casas de banho
se transformam numa espécie de
casa de fados em cocaína
eu só bebo
mas ainda assim
inegável
a beleza destes microclimas:
fados no wc espelhado
de um club onde só passam techno
o saxofonista de jazz
apanhado a dançar
diz que gosta
esta repetição em loop
de alguma forma
recorda-lhe coltrane
hoje vim aqui
à procura de alguém
que não estava
mas há o nietzsche, ele
escreveu qualquer coisa
sobre o desejo da
necessidade a necessidade
do desejo (demasiado tarde
para o citar em condições)
nos fados é obrigatório o desalento
e por isso a elaine dizia
98% dos dias não sei o que faço aqui
a sara dizia
a mim só me apetece chorar
e ela não falava da nostalgia do fado
de beber demasiado e tudo junto
referia-se sim a uma cicuta diária
essa espécie de vazio inconsequente
e por isso
interminável.
teimosamente fingindo
saber o meu lugar no mundo
ignorante de bençãos coroada de
amores sádicos mas tentando
recuperar as tropas
eu agarrava o copo e
explicava, ainda que
pisando armadilhas,
falhamos mas estamos aqui
falhamos mas olha para nós
tantos gatilhos
que nunca chegámos a apertar
isso só pode ser
uma vitória
uma meta
que nunca ninguém anunciou
quem eu queria
não apareceu
mas olha só
estou em casa sã
estou em casa salva
e afinal
não é o amor que resgata
sou eu
e o táxi que conseguiu aparecer
apesar da chuva torrencial
falta dizer
o que ninguém diz
destas mulheres
é que a solidão é o preço
a pagar pela resistência:
às vezes seria mais fácil
aprender a brincar às donas de casa
ignorar o patriarca debaixo do tapete
e os anelares encontrados
debaixo da ponte
mas é mais difícil
matar um potro
que não foge em sentido único
e desse ponto de vista
o que nos mata
será também a única salvação.
sabes, o que não se diz
nunca sobre a errância
é que quando se diz errância
diz-se sobre tudo:
liberdade.
*
amor em tempos de guerra
meu amor
hoje descobri
que morrerei nova
provavelmente atropelada
por um veículo pesado
por estar
demasiado abstraída
enquanto penso
em novas formas
de entrares dentro de mim
ou só no melhor percurso
para atravessar a rua
ainda que isso me impeça
de olhar devidamente
para os dois lados
meu amor
se morrer jovem
será a pensar em ti
e já não serei tão jovem assim
hoje um amigo lembrou-me
que estou perto dos
trinta e tal anos
apesar de ainda não ter trinta
mas ter vinte e oito
é ter quase trinta
e ter quase trinta
é ter quase trinta e tal
e isso será
o mais perto da meia idade
que conheço
meu amor
hoje descobriu-se
que uma mulher argentina
matou alberto elvio naiaretti
é tão estranho que seja
dele o nome inteiro
que aparece noticiado
é até quase bonito
mas se a ideia é celebrar o homicídio
digam-me o nome dela
ela matou-o
com número recorde de facadas
foram 185
a razão foi justa
e podendo, teria dado mais
meu amor
é tão difícil
confiar em homens
ainda assim vejo-me de longe
a deixar que perguntes
se ainda me lembro de ti
meu amor
tenho tanto medo
é difícil reconhecer
que agora pertences à minha
madrugada meu amor
tenho medo de ti
tenho medo do mundo
meu amor
sou um desastre com pernas curtas
espero que saibas
e que não seja surpresa
algo me diz que a morte
não me deixará chegar
à mesma crise de meia idade do meu pai
que fugiu agora para bangkok
a minha mãe diz que ele
é um espírito livre
meu amor
contam que é a ele que saio
no feitio mas sobretudo
na loucura
meu amor
é importante que saibas
que fico
mesmo que voe
meu amor
há crimes no mundo
como no metro
ou em casas de subúrbios
ou na rua paralela à minha
onde um rapaz se esvaiu em sangue
até começar a atrapalhar
o tráfico matinal
o namorado matou-o
usando a faca pequena e curva
com que cortava
uma maçã
vê só
a maçã e o pecado
o éden sempre tão fugaz
e os veículos pesados
têm tendência a não me ver quando passo
tudo isso
tu tens de saber
meu amor
o meu prazo de validade
ameaça a existência
de manhãs aborrecidas
e um ano depois
descobriu-se o assassino
da marielle
apesar de toda a gente já saber
em que mãos coube aquele sangue
e há aqui perto
programas de televisão
com mães que escolhem
a mulher com que os filhos
se devem casar
de acordo com a capacidade
que têm de cozinhar, emprenhar
e calar nas horas devidas
meu amor, tu sabes
fico com tanto medo
tenho medo de ti
tenho medo de mim
tenho medo do mundo
mas depois
há as amendoeiras em flor
e apesar de tudo
acho que te amo.
*
photoautomat
dizem-te que a vida
não tem tamanho
que também não tem
preço mas pedem
que a registes
num espaço concentricamente
isolado dos outros: inscrevem-te
numa cidade com regras
estranhas pedir desculpa
muitas vezes não sorrir
demasiado falar
alto em transportes
públicos nem pensar
quem decide que posso morar
aqui não sou eu
são algoritmos de leis
incompreensíveis quem
escolhe onde arquivar
o meu corpo quem
define onde cabe o meu
tamanho em que casa
fico com o quarto mais
pequeno ocupar o canto
que incomoda menos
pagar para não ser
notada, sim
eu já assinei contractos
que não tinha como ler
e com honestidade,
é mais ou menos isso
estar viva: assinar
acordos nunca
traduzíveis, corpos impossíveis
de cumprir gente desfigurada
porque a solidão fez
de todos
o que quis e
um dia entendemos
quando obrigados a
beijar fronteiras que
há um peso, sim, para
todas as medidas:
a minha vida
por exemplo
pesa setenta e um quilos
distribuídos por cinco
caixotes tamanho L
roupas sapatos livros e o que sobra
– photoautomats
um caderno algum dinheiro –
carrego comigo como quem
dá a volta ao mundo
ou atravessa a rua para
tomar um café. a minha vida
custa cento e quarenta e cinco
euros e noventa e cinco cêntimos
para ser transladada
dois mil e oitenta e quatro
quilómetros, talvez mais,
nunca medi o valor exacto
do desapego. quanto custará
um caixão para um metro e
cinquenta e oito centímetros
sem sapatos? imagino que seja
apesar de tudo
mais barato existir
e como no ringue de boxe
(flash)
alimento a antecipação
de mais um murro
(flash)
bem no fundo do estômago
(flash)
o branco
violento
e imponderável
(flash)
daquela
photoautomat
no primeiro dia de neve do ano
às duas da manhã
em kottbusser tor.