Quatro poemas de Julia Bicalho Mendes
julia bicalho mendes é artista, terapeuta, professora de ioga. nasceu no dia dois de fevereiro no rj. publicou os livros de poema para um corpo preso no guindaste (Ed. Patuá, 2012), desde quando deserto (Ed. Patuá, 2014) e azul caixão, que será lançado em breve (Poesia Primata). é co-fundadora da nosotros, editorial e da revista saúva. diáspore há tanto tempo: mistura sotaques, línguas y gêneros. tem apreço por cartas, embora demore a responder: albertajul@gmail.com
O segundo e o quarto poemas abaixo são inéditos. O primeiro está em azul caixão, ainda no prelo.
***
as manhãs seguintes
resta o
movimento da carne
da pele a continuidade da palavra o suor dum instante raro da
esquina dos teus olhos raros uma cor rara a permanência
exausta das tardes um esfolar dos pés nas escadas rolantes no
asfalto uma lembrança um torpor eternamente lento um
zigue&zague de não dizeres um ruído raro um ruminar de
poemas imbecis na chuva as poças cálidas da manhã teu nome
vibrando lúcido impossível reumático sobre o meu n o m e
ainda esquálido vazando conforme eu luto/tento/retornar à casa
um vazio imediato uma distância imediata uma tristeza
imediata e ao mesmo tempo rara
o que é tolerável
para nós dois
amor
o que seria tolerável
que dose de amor
é tolerável
para amanhecer
para morrer
nesta cidade?
[do livro azul caixão]
*
carta sem número
desde que você partiu, querido amigo,
o silêncio retomou seu tom rarefeito
as mãos não se encontram na deformidade
do corpo e nem no inapropriado gesto de afeto
faço desenhos no box do banheiro
com fios de cabelo caídos
tento burlar a insistência da morte
sonho em retornar àquela quinta-série na esperança
de resgatar o
inconsolável amor da nossa professora de infância
olho para o lugar em que você esteve
numa dança de pálpebras que te reinventam diante de mim
[na iminência de esquecer o teu sorriso
na iminência de esquecer o sorriso dos seres que
continuam se aglutinando nas ruas]
aqui, no paísico de merda, estamos todxs cansados de penetrar
o mundo.
[devo confessar que]
eu te ofereço estas palavras com certo ar de zombaria
com certo ar de desespero
com certo ar de amor e de zelo
não há um esforço genuíno em me comunicar
retorno diariamente ao interior dos órgãos
como se houvesse um zíper capaz de recolher a pele por dentro
mas não adianta
vai saber
“são tempos calamitosos, falar é ser contraditório, calar-se é tonar-se cúmplice”
devoro pouco a pouco a nossa língua materna
embestada na infertilidade dos sonhos
respirando tão lentamente que
os pássaros se assustam
a verdade é que
eu gostaria de não investir mais nestes versos,
pelo amplo hiato dos tempos,
você já deve saber que
a poesia em mim criou um abcesso
a poesia em mim causou uma leseira
a poesia em mim sofreu falência múltipla
a poesia em mim mirrou no dia em que levantei a placa da porta:
aqui jaz a/o ex-poeta viva/o.
mas a vida anda teimosa esses dias
como a barata que matei ante ontem e segue rondando pela casa: semi-morta:
a poesia libertou-se da/o poeta
e por mais que nós não a queiramos neste país nesta rua neste governo
a poesia nos visita, com seus fantasmas analfabetos, com o sangue das mulheres assassinadas, ou mesmo muito bem vestida com o famoso fraque de Nicanor Parra pronta para o incêndio final
aqui no paísinho de pobres negros e índios
no ex-país do futebol
a poesia se tornou
horripilantemente inevitável
de cor aberta ocre rubra azulada
a poesia é como o mar
que às vezes nos acaricia a alma e outras nos confronta
com a abundância de um aguaceiro
que nos atira terra acima
(talvez seja por isso
que eu insisto em te dizer algo,
querido amigo,
para dar corpo
aos corpos
que não tenho
e que em nós
se/me arrebentam).
*
hoje
eu me cuspi
entre as gengivas
da boca dolorida
saí
saltando
invertebrado
nunca
parti tão longe
[do livro para um corpo preso no guindaste]
*
[abre parênteses entre as três reuniões do dia]
dia frio – lindo día feo –
rios de sangue no fluxo das pernas
acordei com o coração de gal costa antes da troca dos dentes
mandioca com manteiga y café colombiano
transplante urgente das mil mudas no terreno do guirra
poetas esquecidas no chão da sala vazia do apartamento vazio
pãozinho do templo zulai
preciso ganhar um liquidificador
morreram três moradores do prédio
a abóbora continua intacta e gigante na mesa da cozinha
mimimi nas redes sociais em cima de uma poética duvidosa
eu não costumo deitar nas sessões de terapia mas adoraria poder
sentar no chão
vou abrir clases de yoga com cunho de poeta mexicana que gostaria
de ter sido / com
cunho da galáxia invisível
a galáxia que nunca mais vimos
o envolvimento abstrato dos amores em zaopaolo
nosso amor pula desesperado do primeiro andar e não se machuca
arrancaram o segundo gancho da rede da varanda
o cheiro de mijo me faz lembrar coisas boas e a silenciosa companhia do cão preto
achei um álbum de fotografias de um tempo que preferia ter esquecido
minha memória desaba de cá para lá
mooji diz que esquecer é bom
ela diz que esquecerse é um impossibilitador
nunca gostei de andar de carrossel