Quatro poemas de Priscilla Campos
Priscilla Campos nasceu em Recife. Escreve e pesquisa. Mestre em Teoria da Literatura, jornalista, crítica literária e poeta; estuda literatura hispano-americana e as relações entre corpo e linguagem.
***
I
ventosas e gosto de sal
cobertores brancos são
como um tipo de caverna
não sinto que o tentáculo
do desejo tenha atingido
qualquer ponto parece
muito difícil a volta do
corpo sem sintomas
ou das mãos com astúcia
mas eu ouço o seu nome
e repito como em oração
nós somos invencíveis
porque nossos pulsos
são capazes de dobrar
os dias e as noites
mesmo os mais temíveis
trajetos do tempo
nós somos capazes de
envergar juntos
todos os caprichos
dos nativos de territórios
distantes eu repito
nós somos invencíveis
porque temos os movimentos dos
moluscos agarramos a terra com
tanta força os apêndices do corpo
ao lado de nossa boca para nos
lembrar que o alimento se faz
muito perto da guerra
sempre com a certeza de que
o vácuo é onde eu te vejo inteiro
o instante em que o seu nome
brilha e ambos sabemos
vamos desistir da camuflagem
dos jatos de tinta e da autotomia
de nossos membros para dar espaço
às manhãs de domingo
idênticas em suas lentidões
e coleções de pés gelados
também para nós os mais valentes
argonautas da madrugada silenciosa
*
II
do abismo estreito
ao traço simétrico
no peito
nado sincronizado
no aquário do
coração ferido
cumpro os mandamentos
das noites de inverno:
três vezes você
cigarros delitos metrô
duas bombas à esquerda
lojas de flores artigos de
construção atenta
ao movimento
dos músculos
cochilo em salas de
hospitais ausente
em minha cama
agora você
escolhe a outra costa
onde é verão o ano inteiro
onde eu posso capturar ouriços
e calcular cada queda das pedras
como um poeta de sucesso
ouvir o que você lamenta
para enfim organizar
o padrão dos números
quantas vezes a gente mede
com precisão o tombo
quantas vezes a gente troca
o desespero da linguagem
pela mão fria de alguém distante
*
desvios no calendário
calculo mil e oitocentos dias desde o primeiro encontro com o meu amor durante à noite em que os cardumes de corvinas organizam o caminho para a estação dos movimentos invisíveis – a primavera não escolhe as vítimas porque quem sobrevive ao inverno está preparado para o horror do aumento progressivo das temperaturas
e para a presença dos fantasmas pois só eles aguentam a ideia arbitrária de renovação. quem continua a navegar após tantos dias de tormenta compreende que a viagem não vale nem um parafuso torto o que importa está por vir está na baía ou nas luzes do Alto da Sé está em definitivo naquele último degrau da nossa escada do engano porque todo amor faz parte da ordem dos crimes toda saída de si está nos dias de muito sol nos dias em que celebramos as translações da Terra ou nos dias em que estive apaixonada pela sua ausência
eu acho bonito observar ao longo de mil e oitocentos dias você empunhando a espada como alguém que diz: o combate sempre será nosso mesmo que você desista
*
anotações de combate
Ana esteve comigo na formação
da trincheira de número um
composta por nós e mais
dois Octavio e Roberto
ambos soldados experientes
dispostos a entender as armas
como extensões do corpo
e a aceitar o cano como
um túnel para o futuro
o espaço de transição
entre esta carne e a outra
ali nós aprendemos que a bala é
apenas o que nos une aos nossos
horizontes as nossas fúrias
aprendemos também que
o campo aberto é apenas
início de uma guerra
qualquer chuva prestes a cair
torna-se a possibilidade
de lama fina e movediça
as luzes são sinônimos
de nossos corpos expostos
inconveniente claridade
a pista certeira para
o inimigo que se aproxima
o homem desconhecido que
vai cortar os meus pulmões
destruir os nossos úteros
dilacerar a minha orelha
ou ainda a minha mão
aquela que Ana segurou por acidente
minutos antes do silêncio da orquestra
no instante em que dois sujeitos na plateia
abriam um sorriso pois a música
ela salva me disse Ana
nós voltamos distraídas para casa
ela pensando sobre como gostaria
de ter a postura de uma violinista
eu pensando sobre como a palavra
não sustenta o transe
no primeiro tiro Ana vestia
uma camisa amassada vermelha
eu estava seminua fazia calor
nós pretendíamos nadar
a tarde inteira e sua boca
estava cheia de peixe frito
então eu disse para o Roberto
me ensine a atirar como Tinajero
enquanto o primeiro a cair foi Octavio
Roberto gritava pela janela
vocês são uns dementes
essas balas são um golpe
miserável eu sentia que
o diabo mais brilhante
lambia as espinhas
do peixe e a de todos nós
Ana tremia muito
suas pernas brancas
estavam moles e frias
seus óculos destroçados
seu cabelo mais bonito
do que nunca
ela mordeu a minha mão e
sussurrou eu menti a música
é um equívoco horroroso
seus olhos permaneceram
abertos por longas horas
assim como na tarde
em que corríamos pela avenida
movimentada e ela me disse
uma cama te espera
da mesma forma que os
peixes aguardam a próxima maré