Quatro poemas de Rafael Zacca
Rafael Zacca vive no Méier, no Rio. Poeta e crítico. Professor de Teoria Literária na UFRJ. Doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Colaborador do jornal Rascunho e da revista Escamandro. Ministra oficinas de criação literária na COART/Uerj. Publicou Mini Marx (7Letras), Mega Mao (Caju) e A estreita artéria das coisas (Garupa). É co-autor do Almanaque Rebolado, livro de oficinas escrito a 20 mãos.
Os quatro poemas abaixo estão no livro A estreita artéria das coisas, editora Garupa (2018). Integram, com outros poemas, o capítulo “Pequeno manual de zoologia sentimental”.
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instruções de uso
[dos cupins para invejar livremente]
como a pornografia
dos bichos assim
na primeira chuva
da estação
as aleluias
os siriris
os ararás
educam
na revoada invertebrada
a distribuição de areia seca
nas coisas
longamente depois
os cupins temperam
a paranoia
conspiram um cupinzeiro
cuja elevação sobre a terra
se equiparasse à corcova do camelo
ao tentáculo do polvo
e fabulam uma arruaça frígida
como tática de pilhagem
*
antes de ligar, procure saber
[como fazem as formigas quando se sentem humilhadas]
as formigas
não demoram
esquecem-se depressa da polícia
trabalham duro
no edifício dos séculos
uma vingança
não choram
por detrás dos azulejos
nem aguardam o dilúvio
para suportar os dias
as formigas abrigam-se
na pele dos velhos
e inalam a gordura
por isso os velhos não têm cravos ou espinhas
se se aglutinam tais insetos
formam não só fábricas
mas cidades inteiras
cada velho um conglomerado
por virtude de classe
operária
as formigas
tomaram há muito
de caronte
o pedágio dos aflitos
desde então
as cabeçudas as lava-pés
as cabeças-de-vidro
desde então
as que apanharam
e as que assistiram
desde então
as carpinteiras as acrobatas
as cortadeiras
as tributadas
e as que venderam sua força
as saúvas e também as mineiras
as que perderam
suas horas mais bonitas
desde então
as formigas costuram
o livro
o livro armado
de 6 patas
e carapaça vermelha
inventam um deus
todo antenas
e escavação furiosa
e o mobilizam
*
recursos de armazenamento
[do amor no comprimento da Tênia]
as tênias não conhecem o amor só podem comê-lo e por isso
alojam suas crianças no porco o mais demorado dos eróticos
esparramado na lama o amor invade barroso as narinas
e depois as gentes o comem no porco a tênia faz brincar
os seus filhotes eles perguntam você acha tudo isso nojento?
você tem certeza de que não quer me tocar pela manhã? são
solitárias as crianças de corpos alongadinhos e escuros brincam
tripas na barriga do porco e depois as gentes o comem no porco
a promessa de tênia vive como no boi ela morre a tênia ocupa
sempre a morte no tempo dos bois pois é isto o amor no campo
está o boi infectado e ele devolve à terra os ovinhos como
devolvem os muitos parentes os amantes se vomitam uns sobre
os outros ou se cuidam de suas desgraças se acobertam seus crimes
calçam-lhes os chinelos amor é uma tênia alojada no sistema nervoso
central você pensa que é o inconsciente lá está a tênia decidindo tudo
por você atravessando a rua distraído ou esquecendo de pagar as
contas dizendo o nome da pessoa amada fora de hora interrompendo
o curso das coisas com sua fome homérica o amor é uma tênia
comandando a fome de centenas nos navios de guerra a fome
é a retirada dos heróis as tênias comandam nas trincheiras a poesia
a dança os movimentos precisos as frases bem articuladas
os negócios humanos a tranquilidade dos mamíferos tudo é devorado
e devolvido até que cem mil ovos explodem multiplicam a festa
aniquilam o amante e longo vive um porco doente
*
termos de garantia
[de curiosidade entre os pinguins]
no coração
dos pinguins
armam-se
os nomes
como um trinco
uma boca cerrada
como um cubo de gelo
e não os diz
o pinguim
aprendeu
que o nome
desfaz a coisa
e a coisa viaja sem amor
como a bomba arremessa a chave
a polícia, o segredo
como o fogo perde o caldo
aprendeu, o pinguim
que se desfaz a coisa
que não tem nome
por isso o guarda, no coração
enquanto não a vê
até que a veja
e o nome se desfaz
na coisa amada
impercebido
como a fissura
abre os lábios
como a gota
precipita a água
como alguém que olha
a fechadura