Cinco poemas Rafael Lima Miranda
Rafael Lima Miranda nasceu em Cubatão/SP, no ano de 1990. Escreve poemas desde os 13 anos e se formou em Letras na Unesp de Araraquara. Integrou a coletânea 100 poemas 100 poetas volume 2 (Literacidade, 2013). Os poemas abaixo integram seu segundo livro Espectros da inação (Patuá, 2019).
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O ciclista estático
A bicicleta ergométrica
pulsa estática –
pedala estocadas rumo ao nada
em frente à porta de madeira
e sua placa de PARE,
seu semáforo vermelho
asfixiando o voo.
O mundo só se descortina
pela janela fechada –
o sol pode até fritar um ovo
e o cronômetro mede os quilômetros
de paralisia.
Sobre a escrivaninha os óculos,
mancas muletas pros olhos,
me fazem perceber
que a humanidade é cega
quando vejo um livro ao lado –
macrocosmo
entre as pequenas paredes
do quartinho abafado.
*
Greve
O saber lega a ação
a construção de pontes
tendo o conhecimento como fonte
mas também lega a paralisação
que é o oposto da inércia
a luta por meio das ideias
pelas quais as vozes
soterradas sob soturno olvido
passam a ser ouvidas.
Um professor distribui a bússola
contida em suas palavras
– divide com o próximo
como quem doa para si –
fermentando a reflexão
no nascedouro das mentes.
Mas há os sanguessugas
munidos de canetas
que subtraem direitos
com a úlcera de uma assinatura –
assinam pensando em si
em um faustoso banquete
feito sobre as cinzas
do injusto ganho dos professores.
Por isso os braços cruzados –
livros enlutados se dissolvem
na poluição política
que enevoa a cidade
enquanto a fala dos poderosos
aveluda a verdade
e atira míseros centavos
sobre o sangue derramado
por estes mestres mártires.
*
Paralisação
Os sacos de lixo beijam
o cimento de minha cidade
descasos copulando no ar
parindo um lixão em cada rua
fedores se incrustando
batendo na porta dos narizes.
O lodo escorrendo
como ejaculação sadomasoquista
da prefeitura que ao invés
de jogar a âncora pro povo agarrar
atira sobre quem sofre
a capa da invisibilidade.
Embaixo dos sacos de lixo
há resíduos de pessoas
população sem face
conduzindo desilusões
enquanto os bebês pombos
balançam os chocalhos dos bicos
dentro da banheira de esterco.
Os lixeiros parados –
tratados pelo sistema
como extensões do lixo que carregam –
despejam a expectativa
nas retinas da cidade
e têm a tranquilidade de quem
derrama sangue e suor honestos
mostram as mãos limpas
diante dessa fedentina administrativa.
*
Classificação de asas
Vislumbra-se o voo da ave:
o azul num elo com o verde
compondo a aquarela de penas
e as nuvens cortadas à faca
no movimento aéreo.
Avião natural
ligando o pulmão do motor
e espalmando o volante das asas
em um apelo certeiro
ao sangue e suas engrenagens.
Pelas grades da janela
um homem com olhos de pedra
entre remotas cores múltiplas
e o chão forrado de ervas daninhas
chora asas enclausuradas.
De costas arqueadas
o menino escondido no homem
tateia alavancas de voo
procura chaves para o céu
perfumado em paletas de cores.
Talvez a própria ave,
acima dos tijolos fixos
que compõem o homem sedentário,
sinta algum tipo de parede
dentro das asas carnais.
Talvez as asas mais importantes
sejam mesmo as invisíveis
aquelas que não enxergamos
e ainda assim regem tudo
no deserto de nossas vidas.
*
Fazendo histórias
Nunca é tarde demais pra se fazer história:
papel e caneta na mão, armas em riste,
o céu sem nuvens de um futuro em branco
apenas esperando pra ser preenchido.
A história é escrita todo dia nos jornais
e servida fresca em manchetes garrafais:
vencedores soltam verbos e brindam verbas
perdedores são citados e ignorados.
Flashes limam a privacidade de estrelas
pra multidões sedentas pela vida alheia.
Fora do caos de luzes ofuscantes
está o mendigo que mora embaixo da ponte.
O meu melhor amigo é o meu cachorro
com ele esqueço a maldade dos homens
mas talvez o mendigo debaixo da ponte
esteja precisando de um melhor amigo.
A tocha olímpica surfa nas mãos de um famoso
enquanto famílias morrem nas mãos da fome –
a história é feita todos os dias
porém não são todos que fazem história.
Os costumes de estruturas tentaculares
incidem luzes sobre o papel em branco:
não sou grande o bastante pra mudar o mundo
mas posso começar mudando a minha história.