Seis poemas de Wander Lourenço
Wander Lourenço é Pesquisador de Pós-doutorando em Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, Diretor dos documentários Carlos Nejar – Dom Quixote dos Pampas e Nélida Piñon, a dama de pétalas, Cronista do Jornal do Brasil (www.jb.com.br). Doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (2006); Mestrado em Literatura Brasileira; Especialização em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense (1996); e Graduação em Letras (1994) e Cinema (2007 – Incompleta). Autor dos livros O Dramaturgo Virgem (2005); Com licença, senhoritas (2006); Iniciação à Análise Textual (2006); Literatura e Poder – Org. Lucia Helena e Anélia Pietrani (2006); O Enigma Diadorim (2007); Solar das Almas e outras peças (2008), Eu, psicógrafo / Teatro (2011), Antologia Teatral (2013), As aventuras da Bruxinha Lelé (2014), Dramatologia (2019).
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Toada negra
“– Por que vós não ides s’embora p’ra bem longe das comarcas desses engenhos das terras de lavoura e roçado de cana-de-açúcar e algodão, co’as vossas malignas crendices e superstições sincréticas d’Áfricas, homem de Deus?”
“– Eu anasci nessa humilde tapera de sesmaria do sertão, patrão-sinhô, que pode inté ser de propriedade vossa, mas for’é chão cruento que acolheu mortalha de carcaça da mi’a finada mãe negra em sepultura, ó sinhô-patrão.”
“– Ide-vos co’as vossas alforrias de liberdades ilusórias p’ra junto dos seios negros de vossa Mãe África d’além-mar sertão, co’as vossas batucadas de macumba de cativeiro, ó negro aleijão.”
“– Eu não vou m’embora, não, sinhô-patrão, porque eu hei de dizer a vosmencê a toada-lamento de sunzala, extraída destes imensos brasis chãos, terra-raiz da Promissão de mi’a gente preta, ó patrão-sinhô.
“– Ide-vos, negro cativo, em embarcação de partida por regresso de vossos navios-negreiros fantasmagóricos, p’ra bem distante da vista e memória destes brasis-colônia, co’o pejo de vosso negrume d’escravidão, ó navegante dos porões.”
“– Essa tumbém há de ser a mi’a terra de nascituro, patrão-sinhô, apois aforam meus irmãos que puseram as mãos sangrentas em coito de enxada e eito, p’ra módi que abrolhasse da lida negra us benefício de sustento e privilégiu de vossa famí’a branca de boa estirpe e serventia, ó sinhô-patrão.”
“– Eu, senhor de engenho, que não hei de admitir revoada p’ra distante das paragens idílicas deste Terrae brasilis, que, por governo de progresso e civilização, d’onde se desbravara mato adentro a fundar vilarejos co’a ermida caiada de cristianismos e pelourinho, ó ladino quizumbeiro.”
“– Então, vosmencê, patrão-sinhô, em vosso embornal do coração de pedra, que se abisma da mi’a liberdadi que, conquantu aprisionada pela agonia da corrente e do açoite, não se indigne a calar-me perante o silêncio atroz e absurdo que, por ódio e covardia, me impusera ensejo maligno de ordem e religião, ó sinhô-patrão.”
“– P’ra arrebentar co’o açoite de couro-boi e co’a corrente de ferro sobre o vosso Corpus Christi negro, hei de rezar amém de prece mais cingida com água benta e cruz de madeiro; porém, haveis de fazer juramento, diante da imagem de Nossa Senhora Virgem Santíssima, que haveis de carregar convosco p’ra bem longe o vosso degredo de expiação, ó Barrabás d’Áfricas.”
“– A vosmencê, sinhô, hei de dizer a toada negra feito a noitim de luar que desaba sobre sunzala em lamentação, sinhô-patrão, entoada sob manto d’estrelas alvas p’ra arrebentar co’os grilhões d’alma em mi’as mãos pretas, entranhadas nesse terço de pedra d’ouro que, se aproxima vosmencê de Deus, se forja em humana escravidão, ó patrão-sinhô.”
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Receita para um poema de amor
A Vinícius de Moraes
Para escrever um poema de amor,
cuide de se inspirar no alvorecer de um sentimento magnífico, raro e nobre, a se instaurar pela singeleza de um ato de contemplação da musa idolatrada, que há de ser matéria-prima da receita subscrita em forma de ode, epopeia, soneto ou elegia.
Ingredientes:
1 kg decostela-de-adão macho ou fêmea;
700 g de ilusão fatiada por lâmina de encantamento;
½ xícara de diálogo recheado de compreensão, reticências e silêncios;
Um pote de fermento do afeto, nacional ou estrangeiro, fabricado por engenho de artesanato humano;
Uma colher de ternura líquida misturada com afã de carícias e ciúme implícito reservado em banho-maria;
Três molhos de saudade orgânica (ou nostalgia) cultivados em horta da dedicação e da amizade;
Um ramo de arruda, sal grosso e uma figa de guiné.
Modo de preparo
Colocar a costela-de-adão em recipiente sem métrica ou rima, com ramo de arruda, sal grosso e figa de guiné, até que se dissolvam em camadas de sinceridade os resquícios de indiscrição sobre passado, máculas de egoísmo desmedido, resíduos de avareza de espírito e dinheiro, detritos de intransigência de ideias, réstias de arrogância e indelicadeza, substratos de maus agouros e fragmentos de olho gordo ou inveja alheia.
Logo a seguir, pôr a ilusão fatiada, separando a mágoa de um gesto inoportuno ou palavra atirada a contragosto, misturando-a com ternura líquida, fermento do afeto e molhos de saudade orgânica.
A partir daí, pôr o tempero da fantasia para cozinhar em fogo baixo de fogão à lenha, que é o segredo da boa culinária amorosa.
Passo a passo
É de bom alvitre inserir os ingredientes desde que, em primeiro momento, se despeje diálogo fresco colhido em jardim de prosperidade, eliminando medo da perda repentina.
Cozinhar por tempo indeterminado em panela de barro até engrossar o caldo da poesia, sem se descuidar de mexer com colher de pau, antes que o Diabo enfie o garfo, para não encruar agradável convivência e fortuna.
Acompanhamentos
Generosidade, companheirismo, cumplicidade, afeição, fidelidade, arrebatamento e cordialidade.
Modo de servir
Preparar a mesa com orquídeas, begônias, jasmins, dálias e bromélias em vaso de barro, por sobre toalha de renda bordada pelas artesãs do espírito da afabilidade.
Talheres de prata, taças de cristal e vinho de sedução.
O prato principal deverá ser apresentado por declamação ao pé do ouvido à luz de velas artesanais da alma lírica, a fim de que seja abençoado por Eros, Vênus, Santo Antônio, Cupido e Afrodite.
Degustação
Eis o poema a ser acompanhado pelas cítaras, acordeons, flautins, harpas e charamelas da orquestra dos serafins, fadas, querubins, feiticeiras e duendes, ávidos por adentrar o inviolável mistério dos enamorados.
Em estado de ansiedade e gratidão, habituamo-nos a festejar a silente e estrondosa chegança de Amor, a deslizar-se por um raio de sol ou traço de luz.
Face a face, o recital dos segredos da escrita se declamará sob a égide de fadários satélites dos instintos apaixonados, de modo a se decantar a incidência entre um ser humano que, de sua costela, fez-se fêmea (ou vice-versa), para banquetear-se, por simbólica antropofagia, mediante comunhão com a imagem e semelhança de um Deus-mulher.
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Tristeza de palhaço
Findada a noite sob o real espetáculo
Quando descerram rubras as cortinas
Da fantasia com a qual eu me disfarço
A lágrima escorre por mímicas retinas
Desce o picadeiro a tristeza do palhaço
Que encobre passado o véu de estrelas
A pantomima ao luar em descompasso
Desfolha-me ao tempo pétala por pétala
Ao intento da risada sobre o corpo lasso
As vestes descoloridas fincadas ao chão
Do camarim onde eu de mim me desfaço
Cubro-me com o velho paletó de algodão
Que me desabriga a ribalta o frio cansaço
Da lida que floreia vida pela imperfeição.
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Cais da eternidade
No instante em que, de repente, a vida se perfaz por um triz
A escorrer-se qual raiz a adentrar pelo ventre da terra afora
Que por entre tantos corpos absortos em cais de eternidade
O Homem sangra como tempo a se embrenhar por entre nós
Consoante pousasse em mãos de querência a implícita cicatriz
Do suplício agônico d’alma a se abreviar pelo fulgor da aurora
Que se entronizou, abstrata, por uma fresta cínica de liberdade
A instaurar-se pelo indício do gesto da partida qual rio em foz
Da imensidão profícua da lida a esbarrar-se por sobre cadência
Do intento como se o vento soprasse em morada de pedra o luar
Como se olvidasse da noite negra com o manto branco d’estrelas
Se forjasse, impávido e atônito, a debulhar-se longínqua alvorada
A romper-se por entre o arrebol e a serenata da vida em essência
Dos timbres-solfejos da existência humana de modo a se abeirar
Dos lúgubres matizes que em si flamejam entre fúlgidas aquarelas
Em rito mímico da tela a aportar-se por sobre as mãos silenciadas.
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Apalavração
P’ra se tornar um trovador, quiçá seja preciso descobrir debaixo da pedra de rio
A infância a se reinventar pela memória moldável em barro de tempo-oco do buritizal
Que há de se alinhar co’o bordado de lã e versos, por sobre pergaminho de pele de ovelha
Da imaginação mais lúdica e fértil, em brincadeira de faz de conta de se estar face a face
Co’o Deus anônimo e palpável, apto a hastear o pôr do sol por dentro da noite negra
Por entre frestas duma primavera enluarada a se indagar se a constelação celeste
Inda (a)floresce em meio à frágil existência em intento de depurá-la em sublimação
Efêmera do instante mágico e ilusionista da humana criação.
P’ra se tornar um trovador, creio que, quiçá, seja aconselhável capturar co’o rede de caçar
ideias-borboletas cor de sol, co’a fragrância mais ínfima da essência
De um lírio azul a se aninhar em vozes de ternura, que afloram em crucial momento
De se decidir por um vestígio de curupira e saci-pererê; e, quiçá, seja factível investigar
O percurso das formigas operárias, decifrando partituras das cigarras prazenteiras,
A fim de que se descubra orquestração da sobrevivência, que se perfaz ou se liberta
Por arranjos serafínicos de flautim, a partir de um instante de eternidade a se perpetuar
No canto orfeônico de um sabiá pousado à mão direita dum ipenzeiro amarelo.
P’ra se tornar um trovador, quiçá seja imprescindível adivinhar a cor dos olhos
Duma estrela-cega ou o olfato dum vilarejo longínquo a se homiziar por paragens-confins
Dum reino equidistante onde se abriga a flor do olvido que se apropria do aroma
Da alvorada em tácito gesto de encantamento co’os tons sete-colores do arco-íris,
De modo que a inspiração se emoldure por traços que se traduzem pela pregação inglória
Dum louva-deus ou pela labuta pacífica dum bicho-da-seda sobre a tela de pintura dar à luz
A um desenho esboçado por Querubim rebelde a esquadrinhar-se por aquarelas híbridas
Ou mímicas de cada qual ser em si por entre-manhãs entardecidas.
P’ra se tornar um trovador, quiçá seja inevitável se lambuzar co’o mel vívido
Das abelhas quilombolas ou alumiar-se co’o lusco-fusco dos pirilampos orvalheiros
A sublinhar imagem duma aurora navegante, por sobre arrebol afeito aos alvores do luar
Em rabiscos e timbres imemoriais em obra de enobrecimento do mistério do alvorecer
A sobrevoar remoinho ávido por alcançar rabo de vento que conduz ao infinito
A arvorar-se por desenredos e sombras de lucidez em beiral de ribanceira do precipício
Ou trapézio às margens do abismo apalpado de andorinhas solícitas a remendar-se
Pelo ritmo freático do assombro de vida a se beneficiar dum sopro de alumiação.
P’ra se tornar um trovador, enfim, quiçá seja indispensável se insinuar
Pelas palmas ciganas das mãos sôfregas por apalpar segredo de celebração a germinar-se
Ao movimento d’um girassol sobre a órbita da terra de cuja lavouração prosaica
Se há de extrair cerne da lida subscrita em mensagem mais abissal ato de libertação
Que, deveras, se instaura na alma de artista que se aventa a (des)equilibrar-se
Por sobre a ribalta do vocábulo mítico em metafórico ritual de escrevinhamento
D’alma em cais de encantaria aportada sem âncoras, astrolábios ou bússolas
A arrimar-se por silêncios inauditos que inscrevem por Apalavração.
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Talvez seja tarde para se ler um poema
Talvez seja tarde para se ler um poema
Se a noite anda longe sem aguardar pelo luar e as estrelas
Em firmamento-fátuo que se dissolvem abruptas em pétalas escarlates
Incandescentemente.
Talvez seja tarde para se ler um poema
Quando o luar e as estrelas despencarem feito aves cadentes abatidas
Pela roca mímica do tempo com espingardas lúgubres em cortejo pétreo
Funestamente.
Talvez seja tarde para se ler um poema
Se os pássaros emudecem o descanto lírico ao gorjear da aurora
Em silêncio tácito e absurdo sobre o que não se cala por míticos abismos
Dissolutamente.
Talvez seja tarde para se ler um poema
Quando o silêncio se sobrepõe aos homens por estúpida opressão justaposta
Ao grito mímico submergido pela lassidão ou covardia que aprisiona
A alma por cárceres invisíveis e impalpáveis
Alucinadamente.
Talvez seja tarde para se ler um poema
Se a opressão se conjuga como se fosse hóstia proibida ao discernimento
Por sobre tíbio percurso de profanação do rugido cego e alienado
Em gesto de sublimação mórbida e (holo)cáustica
Impudicamente.
Talvez seja tarde para se ler um poema
Quando o Verbo se petrifica pela ignorância fatídica sobreposta à mesa
Dos vermes esfomeados e pútridos da república insana e súdita
Descaradamente.
Talvez seja tarde para se ler um poema
Se o aforismo naufraga mediante o dilúvio cíclico da bestial insensatez
E do perjúrio ritmado e aplaudido pela plateia atônita e obstupefata
Acovardadamente.
Talvez seja tarde para se ler um poema
Quando a estupidez se oficializa para além-diálogo entre a voz premida e a ruidosa
Eloquência da iniquidade se adversa ao ímpeto de rouca liberdade
Atavicamente.
Talvez seja tarde para se ler um poema
Se o colóquio promiscuiu-se em razão da sordidez do açoite que estala
No picadeiro da consciência da plebe incógnita e bestificada
Alienadamente.
Talvez seja tarde para se ler um poema
Quando o vocábulo se coaduna ao degredo intelectual não havendo
Quem se submirja ao que se evapora feito água em fogão à lenha humana
Estapafu(r)gidiamente.