#Tbt Cine – “O Intruso” (2004) – Por Valdecy Azambuja
O cineasta independente Valdecy Azambuja* é o convidado da Coluna #Tbt Cine. No radar, O Intruso, de Claire Denis.
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O Intruso. Direção: Claire Denis. País de Origem: França, 2004.
O Intruso (L’Intrus) é um filme sobre Louis Trebor (Michel Subor), um velho lobo solitário cujo corpo está em ruínas. Ele tem a necessidade de um transplante de coração, e, com dificuldade, tenta reconectar-se com seu distante e ilegítimo filho, que pode ou não estar no Taiti. Esse é um rascunho da cronologia objetiva da obra de Claire Denis, embora, sinceramente, essa descrição seja semelhante a dizer que os personagens de David Lynch passam por situações cronológicas e objetivas dentro de suas histórias. Como nos filmes de Lynch, L’Intrus oblitera o binário literal-figurativo: o real e o irreal coexistem em um único nível de realidade narrativa. Um exemplo é Louis que vive com vários cães bonitos em uma cabana na floresta, na fronteira da Suíça francesa. Está sujeito a ataques ocasionais de intrusos mascarados, defendendo-se ferozmente. Isso está acontecendo literalmente, mas esses intrusos anônimos, com suas armas estalantes e movimentos furtivos e fervilhantes também parecem representativos da condição cardíaca crescente de Louis. Quando ele mata um deles, o ato pode ser lido como um ato de desafio interno: seu corpo está evitando o fracasso.
O roteiro de Denis é adaptado do romance autobiográfico do filósofo Jean-Louis Nancy, que escreveu sobre seu próprio transplante de coração como uma metáfora para a “intrusão” – o novo órgão como visitante indesejado. L’Intrus aborda os efeitos alienantes do transplante de coração de Louis, mas também traz a intrusão de estranhos a lugares aos quais não pertencem. A jornada do protagonista ao Taiti inclui uma parada na Coréia, onde ele se relaciona com um empresário bêbado sobre as letras de uma música de Elvis Presley (o pop sempre como o grande denominador comum). A intensidade selvagem de Louis está fora de lugar na Coréia, porém, quando ele embarca em um barco para as fronteiras do Taiti, pode muito bem ser um “alienígena”. É sugerido que Louis tenha passado algum tempo lá quando jovem e que está voltando, no final de sua vida, em busca de um fechamento pessoal, no entanto esse paraíso realmente não o quer: a imagem-chave do filme encontra Louis carregando um colchão através de águas rasas do oceano, uma imagem indelével da humanidade, impondo uma necessidade de conforto dentro de ambientes insustentáveis. Louis é sempre um intruso, seja para o coração que seu corpo rejeita, para o seu filho ou para os lugares por onde passa.
Esta também é uma película sobre fronteiras, tema que transpassa por toda a filmografia de Denis, que, quando criança, viajou por todos os continentes junto a seu pai engenheiro. Para a cineasta, por sua própria criação na África colonial e a condição eterna do exílio (uma terra que nunca pode ser alcançada, um sonho perfumado que vai desaparecendo), o filme trata desses vastos espaços que existem entre países e aqueles dentro das pessoas, transformado em um sonho de sentimentos conflitantes: é ao mesmo tempo lânguido e aterrorizante, erótico e impassível, monumentalmente distanciado e ainda assim íntimo.
Como uma rede de pesca lançada na água, o filme junta todos os seus locais, reais e imaginários, oferecendo pouco sentido de ordem ou até mesmo um olhar para trás. Ressaltando essa sensação de ambiguidade está a trilha sonora de Stuart Staples, sobressalente e perpetuamente não resolvida, que preenche as longas passagens sem palavras do filme. L’Intrus trata nada menos que da experiência do viver. Pouco sabemos sobre Louis, de onde ele veio, mas ao vermos seus olhos inquietos, nos sentimos impelidos por seu coração doentio, nós o conhecemos mesmo assim.
A fotografia de Agnès Godard nos traz um desconforto vago, todo o seu trabalho de câmera busca uma sensação de algo que está próximo, talvez próximo demais. Somos empurrados até a superfície da pele: todos os poros e marcas de uma vida desgastada são expostos e, apesar de sua obstinação rude e áspera, Louis está muitas vezes nu no sentido mais vulnerável do termo.
Na história, personagens vêm e vão, a maioria deles sem nome, aparecendo apenas como embelezamento da paisagem. No entanto, em uma interpretação mais ampla, essa variedade de imagens está relacionada à obscuridade que envolve Louis, que, como figura principal, é também a mais ilusória. O pouco que é revelado dele vem externamente, no colorido e erótico jogo de texturas que ele encontra, sonha e, mais importante, lembra. Sem um coração, sem nada dentro, isso é tudo o que resta dele.
O filme de Denis alcança a dolorosa compreensão de que o intruso é, em última análise, não o novo coração, mas o “Eu”, que estava faltando o tempo todo. Louis é um homem sem coração, frio, como o coração vermelho-escuro descansando em uma camada de neve firmemente embalada. Uma imagem metafórica que Denis coloca violentamente nua.
*Valdecy Azambuja. Corintiano apaixonado por cinema. Cineasta independente, escreveu e dirigiu os curtas-metragens Sísifo (2014), Risos na Madrugada (2015) e Alheio (em pós-produção). Contato: azambujavaldecy@gmail.com