Três contos de Giovana Madalosso
Giovana Madalosso nasceu em Curitiba, em 1975, e vive em São Paulo. É autora de A teta racional, livro de contos finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional, e do romance Tudo pode ser roubado, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.
Os contos abaixo fazem parte do livro A teta racional.
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Instantâneos
Um homem corre na esteira de uma academia vazia. Uma garota dança com os olhos fechados imaginando que o cara que está pegando nas costas dela é outra pessoa. Uma mulher pega o telefone e diz: volta, seu filho da puta!, e desliga em seguida. Um neon acende faltando duas letras. Uma mulher tira a blusa da amiga e diz: ele não vai saber. Um homem olha pela janela e fuma um cigarro e sente saudades do tempo em que ninguém dependia dele. Uma senhora compra mais uma joia pela televisão enquanto o marido não chega. Um amigo e uma amiga fazem sexo porque estão bêbados e há muito tempo não transam com ninguém. Uma mãe balança um bebê e pensa que também queria estar sendo balançada por alguém. Dois caras que se chamam André e gostam de ter o mesmo nome se beijam numa praça. É uma da manhã.
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Jardim
A filha mora em outra cidade, está só visitando. Depois do jantar, senta com uma revista no jardim da casa dos pais. De repente, ouve os passos do pai atrás dela, a água do regador caindo nas plantas. Ela continua olhando para a revista, mesmo na penumbra, mesmo não enxergando direito o que está escrito, porque tem essa necessidade de quem mora sozinho de às vezes ficar no seu canto.
O pai chega mais perto dela e olha para cima e comenta sobre o céu, como o céu está limpo. Ela diz que tinha até esquecido a quantidade de estrelas que existem, onde ela mora são tão poucas por causa das luzes. O pai diz que ela deveria visitá-los mais. Ou, melhor ainda, voltar a morar com eles. Ela diz: quem sabe, pai, quem sabe um dia. Depois os dois ficam em silêncio, só a água caindo numa planta e na outra, uma cigarra chiando lá longe. Até que o pai termina o que estava fazendo e diz boa-noite para a filha. Antes de ele entrar, ela pergunta se ele sempre faz isso, regar as plantas tão tarde. Ele diz que não, nunca, e os dois sorriem um para o outro.
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Idiota outra vez
A coisa toda começou com um livro que apareceu quando eu trabalhava numa seção de achados e perdidos. Era muito comum as pessoas perderem livros, mas esse chamou a minha atenção porque a capa não tinha quase nada, só uma palavra escrita num canto. E dentro tinha a imagem que, por muitos anos, ficou na minha cabeça: um homem girando com um chapéu cônico e uma saia branca.
Não sei de onde veio o meu fascínio por essa foto — se eu soubesse, acho que o fascínio deixaria de existir —, só sei que às vezes eu ficava muito tempo olhando para ela, investigando cada detalhe, como se ali houvesse algum segredo. A partir desse livro, acabei procurando outros e, alguns anos depois, quando consegui juntar dinheiro para fazer uma viagem, me mandei para a Turquia.
Eu tinha só vinte e quatro anos e essa era uma das primeiras viagens que fazia, a última coisa que eu queria era descansar. Cheguei em Istambul no fim do dia, larguei minha mochila num albergue e fui para a rua. Depois de me perder um pouco, cheguei até o Chifre de Ouro, até uma das pontes que ligam uma parte da cidade a outra. Era difícil saber para onde olhar, porque tinha a paisagem, com aquelas mesquitas enormes, mas também tinha uma gentarada espalhada pelas ruas, subindo e descendo de barcos, ônibus, trens e comprando e vendendo desde burcas e sutiãs com enchimento até camarões vi- vos para servirem de isca.
Atravessei a ponte em direção a Beyoglu. Eu sabia que naquela noite tinha um ritual praqueles lados, e eu estava disposta a chegar cedo não só para conseguir um lugar, mas para especular tudo que pudesse. Embora tivesse o endereço, me bati um pouco para chegar. Quanto mais me aproximava, mais as ruas se torciam, se estreitavam, se aturcavam, indicando que eu estava em uma das regiões mais velhas da cidade.
Acabei encontrando o lugar quase por acaso. A porta estava aberta. Dava para uma antessala com algumas cadeiras e trechos do Masnavi, o maior poema sufi, escrito à mão nas paredes em várias línguas. Quem escreveu tinha uma caligrafia bonita. As letras, abstraídas de seus significados, pareciam ornamentos. Tirei umas fotos. Sentei, esperei. Outras pessoas chegaram. Depois de um tempo, um sujeito com um baita nariz apareceu nos fundos da antessala e disse: bem-vindos, a entrada é oitenta liras.
Avançamos atrás do narigudo por um corredor que dava num pátio. Em uma das laterais do pátio, tinha uma sala. Entramos. Estava escuro. Um menino de uns quinze anos começou a acender velas em castiçais espalhados pelos cantos. A luz foi descortinando o ambiente. A sala tinha um teto alto e abobadado e um tablado de madeira no centro. Sentamos todos em volta do tablado. De repente, ouvimos uma palma seca vinda não sei de onde. Os músicos entraram. Em seguida, entraram os outros, vestindo uma capa preta e o chapéu cônico. Um deles recitou alguma coisa que eu não entendi, e todos tiraram os casacos, revelando a saia que ia até os tornozelos. Depois formaram um círculo e, acompanhando a música, começaram a girar em torno do próprio eixo, cada vez mais rápido, as saias subindo com o movimento, até ficarem esticadas como mesas em volta de suas cinturas. Senti inveja deles, porque eu tinha lido que à medida que os dervixes iam girando, iam alterando seu estado de consciência, libertando a mente do corpo e sentindo aquilo que todos nós gostaríamos de sentir: que podemos ser eternos.
Quando a cerimônia acabou, eu estava emocionada. E puta, porque não tinha conseguido filmar nada, as câmeras eram proibidas lá dentro. Fiquei de olho neles: todos saíram por uma mesma porta, fechada logo a seguir. Dei mais uma andada pela sala, depois fui para o pátio. Me esgueirei para dentro de uma porta que estava entreaberta, mas, para a minha decepção, era só um banheiro. Quando já estava quase desistindo de travar algum conta- to, vi um deles passando. Apesar da barba, que dava a ele um ar de mais velho, logo vi que devia ter no máximo trinta anos. Puxei assunto, perguntando se morava ali. Ele me disse que não falava sobre sua vida pessoal porque isso não tinha nenhuma relevância. Depois se desvencilhou de mim de um jeito meio brusco e sumiu.
O narigudo, que era uma espécie de segurança, veio até mim e disse que eu precisava ir embora. Eu era a única visitante que ainda estava lá dentro. Fui para a rua. Sentei no meio-fio, debaixo de um poste, e acendi um cigarro. Depois dei uma olhada no mapa da cidade, tentando descobrir onde eu estava e para onde iria. Alguns minutos depois, senti alguém passando por mim. Era o cara que eu tinha abordado lá dentro, agora vestido com jeans e camiseta. Fiquei olhando ele avançar pela rua. Depois de um tempo, ele se virou e gritou: você precisa de ajuda? Preciso sim, eu disse, você conhece algum lugar pra comer aqui perto? Ele pensou um pouco e falou: tô indo num, quer vir junto? Catei o isqueiro e corri em sua direção.
Ele me disse que se chamava Tirmik (não entendi se esse era o nome ou o apelido). Depois me perguntou de onde eu era, o que fazia, essas coisas. Respondi tudo, mas não devolvi as perguntas. A última coisa que eu queria era azedar de novo a nossa conversa. Quando ele ficou sabendo que era a minha primeira vez em Istambul, resolveu me explicar sobre a cidade, onde estávamos, quais eram as coisas que eu devia ou não devia fazer.
Acho que andamos bastante. Depois de descer uma ladeira, chegamos numa rua cheia de bares, de mesas com toalhas coloridas na calçada. Ele acenou para três caras que estavam sentados numa mesa. Fomos até lá, sentamos junto com eles. Eram amigos de Tirmik, pareciam gente boa. Esforçaram-se para conversar comigo, mas o papo não foi muito longe porque eles quase não sabiam falar inglês. Não achei ruim. O fato de eles falarem uma língua que eu não entendia me libertava de prestar atenção na conversa para observar tudo o que estava acontecendo à minha volta.
Lembro, e me sinto ridícula ao lembrar disso, de ter deduzido que, entre eles, Tirmik era o único dervixe. Nem sei bem por que deduzi isso. Talvez porque dois deles disseram que trabalhavam o dia todo e porque o outro, que se chamava Sercan e parecia o mais próximo de Tirmik, usava uma camiseta justa (e falsificada) escrita Dolce & Gabana.
Depois de comermos, Tirmik me disse que eles estavam indo para um outro lugar e perguntou se eu queria ir junto. Saímos os cinco a pé. As ruas estavam cheias. Boêmios indo e vindo ou apenas existindo parados na calçada. Entramos numa viela que tinha uma corda de varal esticada de uma calçada à outra, cada ponta presa na janela de um apartamento. O varal estava cheio de camisetas e calcinhas. Fiquei imaginando o desprendimento daquelas donas de casa, muçulmanas resignadas à vida urbana, exibindo peças íntimas para uma população de treze milhões de habitantes. Quando passamos por baixo do varal, Sercan chamou Tirmik, deu um pulo e bateu numa das camisetas. Tirmik tentou fazer o mesmo, mas, como era bem mais baixo que Sercan, não conseguiu, e os dois deram risada.
Logo depois, no final dessa viela, tinha uma boate. De fora, já dava para ouvir a música eletrônica, um bate-estaca duro e estéril, sem vozes nem efeitos para aliviar as cacetadas. Achei estranho quando, no hall de entrada, Sercan e os outros dois tiraram as camisetas. Ao entrar, vi que isso era normal. Quase todo o público da boate eram homens, mais da metade com o abdômen à mostra. O resto eram mulheres ou pessoas difíceis de rotular, como uma morena de vestido de franjas, muito mais feminina do que eu, exceto pelo bigode. A princípio, fiquei um pouco intrigada com tudo aquilo, depois passei a olhar para Tirmik com ainda mais admiração, porque eu sabia que, ao contrário das outras correntes do Islã, o sufismo, dos dervixes, respeitava a pluralidade.
Fomos para a pista. Eu queria interagir com Tirmik mas estava difícil. Ele e Sercan não paravam de conversar, mesmo enquanto dançavam. Como a música era alta, eles precisavam chegar muito perto um do outro, tipo boca na orelha, o que para eles não parecia um problema, e sim um prazer. Também reparei que Tirmik estava animado. Uma hora saiu e voltou com bebidas para todo mundo, fez Sercan virar a dele de uma só vez. Bebi a minha e fui ao banheiro. Fiz xixi suspensa sobre um assento imundo (a noite é a noite em qualquer lugar). Quando voltei, Tirmik e Sercan não estavam mais na pista. Os outros dois estavam conversando com outros dois. Fiquei um pouco por ali, sem saber o que fazer, depois fui dar uma volta.
Um tempo depois encontrei, em uma sala de paredes estofadas atrás do bar, Sercan com uma mulher de uns sessenta anos. Tinha a pele meio despregada, uns olhos expressivos, e usava uma pulseirada que ia até o cotovelo. Não sei quem era ela, acho que alguém im- portante, a dona da boate ou alguma atriz, porque tinha um garçom ali perto só para servi-la. Ela deu um gole na champanhe e passou o dedo em um dos mamilos de Sercan, e depois enfiou o dedo na boca.
Fui procurar Tirmik, ele não estava em lugar nenhum. Passou um tempo e então encontrei-o saindo do banheiro, com as pupilas dilatadas e uma cara de quem tinha levado uma surra. Life is shit, me disse. E perguntou se eu queria tomar mais uma. Fomos até o bar. Ficamos encostados no balcão, bebericando e olhando as pessoas, até que resolvi ir embora. Ele esticou o pescoço para trás mais uma vez, para a sala onde Sercan estava, e disse que também estava indo.
Lembro da sensação boa que senti ao sairmos da boate: o ar fresco, o silêncio, o dia nascendo na cidade que eu mal tinha começado a descobrir. Falei para Tirmik onde ficava o albergue, perguntei como fazia para chegar até lá. Ele me disse que era muito cedo, o ônibus que eu deveria pegar ainda não estava rodando, eu teria que tomar um táxi. Eu disse que não tinha grana para isso. Ele disse que também não tinha para me dar, tinha gastado tudo em bebida. Falou que morava perto dali. Sugeriu que eu fosse para a sua casa e desse uma descansada até a cidade começar a funcionar.
Continuamos subindo as ladeiras do bairro. Eu já havia reparado que Istambul tinha muitos cachorros vira-latas, mas agora que as pessoas tinham se recolhido, vi que era muito mais do que eu havia percebido, era uma verdadeira população paralela. Naquela hora, a cidade era só deles, e eles aproveitavam, deitando nos bancos, no meio das ruas, mijando nas colunas, bebendo nas fontes, revirando os lixos. Perguntei para Tirmik de onde vinha tanto cachorro. Ele me disse não saber ao certo o porquê daquela cachorrada, mas tinha uma teoria: os navios. Todos os dias centenas de navios aportam em Istambul, praticamente todos trazendo algum cachorro na tripulação. Animais de estimação que saem com os marinheiros do porto de origem ou cães vagabundos que os marinheiros pegam nas cidades por onde vão passando. Quando o navio aporta, alguns fogem de bor- do, outros são despachados, aumentando o contingente de vira-latas na cidade. Olhei para um casalzinho que estava trepando na soleira de uma loja, ele com as patas bem cravadas nas costas dela. Pensei que talvez ele fosse espanhol e ela chinesa, que talvez não estivessem entendendo nada do que o outro estava latindo, e achei romântico.
Logo depois chegamos no prédio de Tirmik. Ficava no alto de uma ladeira e estava caindo aos pedaços. Enquanto subíamos, ele me contou que, um dia, haviam sido bons apartamentos. Depois foram picotados, transformados em quitinetes, mas ainda tinham uma vantagem rara. Ao abrir a porta, apontou para a janela. A janela ia do chão ao teto e era circundada por uma varanda muita estreita. Passamos para o lado de fora. Tive a impressão de estar no ponto mais alto da cidade. Dali dava para ver um monte de casas, prédios e mesquitas encarapitados nos morros e, cortando tudo isso, o Bósforo, azul na luz do dia.
Ficamos um tempo olhando para fora. Depois ele entrou, foi pegar alguma coisa para gente beber. Virei-me e percebi que no canto da sala tinha uma saia branca em um cabideiro. A saia parecia uma cúpula de um imenso abajur. Aproveitei a oportunidade para finalmente tocar no assunto. Apontei para a saia e disse: te admiro por isso. Ele deu uma gargalhada. Você acha que sou dervixe, não acha? Claro, eu disse. Sou só um bailarino, um bailarino pago pra fingir que é dervixe. Acho que olhei para ele com cara de quem acordou de repente, porque, em seguida, ele disse: desculpe te decepcionar. E depois de um tempo, continuou: sei que não é um trabalho muito honesto, mas a grana é boa, e eu tô juntando dinheiro pra mudar daqui. Você sabe como é a Turquia. Se até as mulheres sofrem preconceito, imagine uma bicha bailarina.
Depois, vendo que minha curiosidade ainda não estava saciada, ele me contou um pouco mais sobre os dervixes. Disse que tinham sido banidos da Turquia por Atatürk, em 1925, como parte das reformas para ocidentalizar o país (até aí eu sabia) e que, desde então, a situação deles nunca mais se normalizou, eles só praticavam os rituais em casa ou em lugares muito escondidos. O que eu tinha visto eram os shows que rolavam por uma questão de demanda turística e que nunca incomodaram ninguém, de tão falsos que eram. Olhei bem para ele: então quer dizer que você não acredita… Nem em Deus, ele me disse. Me debrucei na varanda. Acendi um cigarro. Fiquei ouvindo as vozes que vinham dos alto-falantes das mesquitas, chamando os fiéis para a primeira oração do dia. Puta que o pariu, tô me sentindo uma idiota, eu disse, e não é a primeira vez, sempre caio em tudo que é história. Ele riu. Depois disse: melhor ser das pessoas que acreditam em tudo do que das pessoas que não acreditam em nada. Tentei formar uma opinião a respeito, não consegui. Já eram quase sete da manhã e eu estava chumbada. Apaguei a guimba num cantinho da varanda, fui até o sofá e capotei.
Roberto Monteiro
Uma dúvida: o último texto, é um conto ou uma crônica de viagem???