Três minicontos de Washington de Paula
Washington de Paula é artista de teatro, dramaturgo, arte-educador e preto. Diretor da Cia. Quadro Negro, onde colabora nas escritas dramatúrgicas, pesquisador de teatro negro e contemporaneidades da cena. Ribeirão Preto/SP.
***
Eu, conto
Fui ao teatro, acontecia em um espaço não-convencional. Não tinha caixa preta, nem a relação italiana do palco com os presentes. Era latino, não me recordo se chileno ou boliviano. No meio do galpão, uma estrutura que era uma mistura de arquibancada, circo de bairro e barraco de madeira. Umas vinte pessoas estavam ali, éramos os públicos. Falado em espanhol, quer dizer, bem pouco falado. As traquitanas narravam, variadas formas de animação. Os outros públicos e eu, fomos imersos no universo da oficina extraordinária. Por trás de nós, saindo do alto de nossas cabeças, desceu deslizando e se equilibrando em fio fino quase transparente, uma bicicleta de papel. Era perceptível que era de papel, feita de folha de caderno, pautada com pequenas linhas azuis que giravam lentamente, minimalistas e imponentes. Apenas um ator comandava aquele emaranhado de fios, madeira, plásticos e inventividade. Ele ainda trocava o CD a cada cena, não uma música, mas um disco para cada cena. Nessas transições, ele falava espanhol e arriscava algumas palavras em português. O momento não era para ser entendido. As histórias manipuladas pelas formas vivas, eram fragmentos de algumas permanências que habitavam em mim. Suspirei eu e outros, ao mesmo tempo, eu era manipulado. Quase ao fim do espetáculo, o último ato ecoou fundo. O ator com um espelho na mão e um outro CD rodando, narra espanhol, português, manipulação. O espelho mirando expõe os públicos. No fim, ele reivindica que alguém público conte uma história sobre espelhos, reflexos. Eu tenho uma história de espelho. Dúvida. Ele, o manipulador, sentencia que, se não contarmos, ficaríamos eternamente com o sentimento de que deveríamos ter contado. Dúvida, medo de ser exposto, medo de ser público. Não conto. Ninguém conta. Saio com o sentimento de que deveria ter contado. Eterno. Um dia, eu conto.
*
Garatuja
Eu tenho uma boa memória. Algumas lembranças são bem antigas, outras são uma espécie de borrões com sensações. A lembrança mais antiga e mais completa que eu tenho é da festa do meu aniversário de três anos. Eu me lembro do momento em que o bexigão foi estourado. Havia muitas crianças e um balão enorme cheio de balas, doces e pequenos brinquedos de plástico. Lembro da minha mãe me colocando no chão bem embaixo do grande balão vermelho. Vejo meus pés pequenos com um par de tênis azul jeans, em contraste com o piso de cerâmica marrom. Na sequência, me recordo de muita gente em volta de mim, uma mão com um isqueiro aceso próximo do balão, um estouro. Todos faziam movimentos rápidos, coisas caiam no chão e batiam na cerâmica marrom. De repente, tudo desacelera, as lembranças ficam em câmera lenta. Olho para os lados e observo as pessoas recolhendo coisas aleatórias que estão pelo chão. Há uma grande ânsia, um desejo desenfreado de possuir aqueles pequenos objetos. O desejo de possuir é tão intenso que as pessoas não olham para o que suas mãos pegam. É só acumular o máximo que a mão é capaz, guardar e recomeçar. Eu não entendia, não tinha a mínima ideia do que estava acontecendo. Fiquei parado por alguns segundos sentindo tudo aquilo. No auge da minha sabedoria de três anos de vida, percebi que talvez fosse um jogo, eu também deveria recolher as coisas do chão. Foi então que me dei conta, eu estava perdendo o jogo. Se eu não me abaixasse naquele instante, não haveria mais o que recolher. Fiquei de cócoras e percebi que havia um pirulito de sabor abacaxi ou uva, bem próximo ao meu pé, nas periferias da imagem, uma confusão entre mãos e pés. A memória permanece desacelerada e agora também desfocada, em foco apenas o pirulito. Olho para o pirulito de abacaxi ou uva. Eu não tinha certeza se queria, se devia, se poderia pegar o pirulito. Por que as pessoas recolhiam tudo, exceto aquele pirulito? A lembrança termina neste exato momento. Eu de cócoras, com o pirulito perto do meu pé e esperando, talvez esperasse ter certeza. Esperava que algo ou alguém me dissesse “pega o pirulito”. Nas extremidades da memória, eu de cócoras em modo de esperança.
*
Quietinho
Meu pai sempre me levava para cortar o cabelo. Uma vez por mês, de mãos dadas, íamos até a sede do sindicato dos metalúrgicos onde o corte era gratuito para os sindicalizados. Foram muitos anos, muitos cortes de cabelo e o nosso recorte de tempo do corte. Quando me lembro de momentos felizes da infância, minha mãe é protagonista, mas o corte era nosso, só eu e ele. Meu pai sempre trabalhou muito, sem vaidade e sem muito tempo, ele sempre priorizou os nossos prazeres cotidianos. Um certo dia, de um certo mês, não sei precisar a data, nem o ano, talvez eu tivesse 12, talvez 13 anos. Lá fomos de mãos dadas, entramos, sentamos e aguardamos. Eu fui primeiro para o corte, sentei defronte ao enorme espelho, que era grande de verdade, de uma margem à outra da parede. Havia algumas cadeiras de barbeiro, daquelas antigas, de ferro com assento de couro. O barbeiro cortava meu cabelo. Meu pai sentado atrás de mim em uma cadeira de plástico. Pelo espelho, reflexo, meu pai sentado, folheando. Pelo espelho, eu também via uma mãe e um menino, talvez ele tivesse 5, talvez 6. Eles chegaram logo depois de nós. O menino chorava e, às vezes, gritava estridentemente, não queria cortar. Um outro barbeiro, em uma cadeira ao meu lado, tentava acalmá-lo. A mãe falava com ele, fazia promessas. O menino chorava e gritava mais alto. Eu assistia a cena pelo espelho, meu pai lia uma revista. Eu observava, meu olhar cruza com o da mãe, ela aponta para mim e diz: “Você deveria ficar quietinho igual ao moço!” Ela se referiu a mim como “moço”. O moço soou tão grande quanto o espelho, eu não sabia se o moço cabia em mim. A cadeira ficou menor, eu cresci. Olhei no espelho, tentava perceber todos os detalhes daquele reflexo, os detalhes que a levaram a me enxergar como moço. Talvez eu fosse moço, não sei, eu entrei ali menino, não sei. Pelo espelho, vejo meu pai lendo a revista, vejo o topo da sua cabeça, que tem cabelos brancos. Pelo espelho, vejo duas cadeiras de barbeiro, um menino e um recém-moço, sentados. O barbeiro me avisou, fim do corte.
ROZANA gASTALDI cOMINAL
CONTO? não conto? Minicontos que trazem fragmentos refletidos no espelho. reflexos do “medo de ser exposto”, “de cócoras em modo esperança”, “o menino”, já “moço”, agora, sem medo, se enxerga.
FABIO AUGUSTO VENTURA
Sensacional! uM RETRATO DO COTIDIANO DE UMA FORMA POÉTICA, SIMBÓLICA. PARABÉNS!