Três poemas de Ágnes Souza
Ágnes Souza nasceu em 1992 e mora em Recife. É formada em Letras e mestre em Teoria da Literatura (UFPE), geminiana com ascendente em libra e o mapa quase todo em ar, professora de Literatura na UPE, alérgica a chocolate e café. Lançou o livro de poemas re-cordis pela Editora Moinhos em 2016.
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I
meu amigo os meninos não têm medo de nada
eles empinam a bicicleta na faixa do brt que nunca será um brt
os meninos só têm medo de morrer de fome
isso é o que eu acho e o que eu acho pouco importa para eles
passo diariamente em frente à casa onde clarice lispector morou no recife
está aos pedaços meu amigo
e os governos não lhe passam uma pá de cal sequer
eles sim não têm medo de nada
as crianças da maciel pinheiro se misturam aos cachorros que acabaram de nascer
mas sem o leite que os cachorros ainda têm para não ter medo de nada
sempre me perguntam meu amigo se eu tenho medo ao passar por lá
não tenho não
eu devo causar mais medo a eles do que eles a mim
eu os enxergo muito bem vez ou outra respondo uma boa noite
mas eles talvez não me enxerguem através da névoa da cola
o que eu evito na praça são os pombos
as pessoas lembram mais dos pombos e do medo
do que dos que moram lá
do que da casa de clarice
por ai não deve estar nada bem
ando lendo uma notícia ou outra
não confio nos jornais
confio mais nos meninos que disputam corrida com o brt
aqui faz um frio estranho para a época do ano
é mais o vento sabe
e todas as noites quando fecho a janela ouço uivos
as pessoas dizem que é o vento
mas são os meninos as mães as crianças e os cachorros já sem leite a morrerem de frio e de fome.
II
essa daqui foi aos 8 ou 9 anos não sei bem
foi o dia em que eu descobri o que era um arrecife
ela disse apontando para o joelho direito
essa aqui foi aos 7
a corrente enganchou no pé
logo abaixo tem a primeira vez que fiz a perna com gilete
e tive duas descobertas
a primeira, que tenho alergia à gilete
a segunda, é que não se deve colocar o corte de imediato na água
subindo um pouco, aqui ao lado da sobrancelha?
marcas de catapora
eu sempre mexo nas coisas ainda cicatrizando
um pouco mais para o meio é um território neutro
poucas escavações do tempo
nas costas cinco constelações que tu pode dar o nome que quiser
ou mapa astral baseado no que eu deixo o sol que levo
raramente desenhar sinais
no meio do pulso direito um planeta que não tem nome
orquestrado por uma queimadura de cigarro de um estranho
ela sai já me queimaram outras vezes
logo acima um ponto também solitário
quer dizer acompanhado por linhas bordadas em paralelo
duas veias estrategicamente posicionadas
no joelho esquerdo
aos 12 a exploração da calçada do vizinho sem azulejo
do mesmo lado só que um pouco mais acima
um ponto vermelho
uma descoberta sempre recente para quem vasculha meu rosto
“é de verdade?”
sempre respondo rindo:
onde já se viu um falso sinal no corpo?
confesso que gosto quando
no exercício de descoberta de um corpo estranho
se pode encontrar algo que não se encontra em outros corpos
isso aqui foi meu corpo mudando de correnteza sem me avisar
marcas de espinhas erupções mensais
embaixo da rasura da minha tatuagem
colisão entre álcool braço e azulejo quebrado na piscina
demorou a cicatrizar
entre os seios
a segunda sinalização que eu mais gosto
dá pra traçar inúmeras rotas
longas ou curtas
essas rotas ficam estrategicamente na caixa torácica
quer dizer vendo agora
também parecem planetas alinhados
também parecem uma cartografia riscada
por uma linha imaginária auxiliada por uma régua
por um compasso
qual sinal que tu mais gosta em tu?
ela me perguntou admirando as estrias
desenhadas um pouco abaixo do quadril.
III
quando eu falo das tuas pintas em voz alta
é para me lembrar o quanto amo tuas pintas
e os caminhos que elas percorrem pelo teu corpo
por falar nisso
tu consegue saber até onde tuas pintas habitam teu corpo?
eu poderia te propor um jogo mas
me obrigaria a ter a mínima noção de geografia
me obrigaria a ter a mínima noção de como manusear compassos
e réguas
e fitas métricas
e pinceis de tinta que saem com água corrente
me obrigaria a ter a mínima noção de descobrir teu corpo de forma imediata
eu não tenho pressa
tu me fez passar a não ter pressa
então, toda semana quando descubro uma pinta nova vasculhando tua pele
anoto em um post-it
a data o mês a cor da tua blusa e
a quantos graus estava a pinta e a quantos com meus olhos estavam dela
claro que faço isso de forma aproximada
a única coisa exata disso tudo seria eu descrever tua cara quando eu falo delas
“tuas pintas são as coisas que eu mais gosto em tu”
eu poderia casar esse poema com o poema que fiz sobre as minhas marcas
desculpa eu não tenho tantas pintas
mas o caso é que eu sonhei esses dias com o jogo que não propus
nem vou te propor
traçar tuas pintinhas de modo que me ajude a seguir de forma linear
sem me atrasar na chegada
traçar tuas pintinhas de modo que eu me acomode com um único trajeto pelo teu corpo
isso não se faz
eu tenho poucos planetas em terra você sabe
mas ao mesmo tempo penso que se eu traçasse não uma
mas tantas rotas para chegar em algum ponto
que eu descobrisse também como preferido pelo teu corpo
me levariam talvez a partes ainda não exploradas pela minha pele
mas eu não tenho coragem
não saber onde as coisas vão às vezes enche o corpo de vida
não saber onde as coisas vão tem sempre um cheiro de início
de novidade
de primeira vez de tudo
ah no sonho eu tremia ao traçar as rotas
e eu lembrei quando acordei de uma entrevista que havia lido há uns anos
de que quando você treme
é porque algo ainda faz sentido
minha falta de coordenação tem respaldo poético
eu poderia te propor esse mesmo jogo
mas eu odeio jogos
eu só observo e observo e observo
quando eu fico te olhando deitada na cama e não falo nada
é porque talvez eu observe a possibilidade do jogo que eu mesma faria
é um jogo do futuro eu diria se te propusesse
é um jogo para o futuro eu poderia também dizer
caso tu se recusasse a jogar comigo
eu minto quando digo que as coisas que mais gosto são tuas pintas
eu não conheço todas elas
eu finjo não conhecer algumas delas só para ter a surpresa
de enxerga-las pela primeira vez
a coisa que eu mais gosto no teu corpo são as pintas do teu ombro direito
todas elas juntas parecem um céu nublado
todas elas juntas têm a forma de um país na ásia que eu não sei pronunciar o nome
e que eu quero ir contigo para adotarmos um gato ou talvez dois.
Eduardo Sol
Muito bom